Sem-abrigo? "É muito assustador, não só a vergonha, mas também o medo"

Renata Alves, diretora-geral da Comunidade Vida e Paz, é a entrevistada desta terça-feira do Vozes ao Minuto

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Márcia Guímaro Rodrigues
21/11/2023 09:05 ‧ 21/11/2023 por Márcia Guímaro Rodrigues

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Comunidade Vida e Paz

Renata Alves assumiu, no início de 2020, o cargo de diretora-geral da Comunidade Vida e Paz, uma instituição que se dedica ao acompanhamento de pessoas em situação de sem-abrigo em Lisboa Desde então, o mundo enfrentou uma pandemia e uma guerra na Europa, que tiveram como consequência o aumento da inflação e do custo de vida. A todos estes problemas, soma-se a crise na habitação vivida em Portugal, sobretudo na capital do país, que tem contribuído para o aumento do número de pessoas em situação de sem-abrigo.

Ao Notícias ao Minuto, Renata Alves explicou o atual panorama das pessoas em situação de sem-abrigo em Lisboa, que, nos últimos anos, deixaram de ter o "típico" perfil. Há cada vez mais jovens, idosos e migrantes. E em 2024 o cenário pode piorar, caso não sejam tomadas "medidas preventivas" para as famílias que se encontram em risco.

A responsável falou ainda das dificuldades da Comunidade Vida e Paz, uma instituição que "não tem como missão dar uma refeição", mas sim "ajudar a reconstruir sentidos de vida". 

Para o futuro, fica a “esperança” de que sejam tomadas medidas mais eficazes e a mensagem de que “todos temos um papel, todos somos responsáveis” pelo próximo e que “nunca nos esqueçamos que hoje são aquelas pessoas e amanhã podemos ser nós”. 

A Comunidade Vida e Paz foi fundada há quase 35 anos. Quais são as principais diferenças do trabalho da comunidade entre essa altura e agora?

Há algumas diferenças, sobretudo no que diz respeito à população que é alvo da nossa intervenção. Se formos olhar para os últimos tempos, tem havido uma alteração do perfil das pessoas em situação de sem-abrigo. Face às necessidades de que nos vamos apercebendo, vamos também consolidando a nossa intervenção.

A Comunidade foi fundada há 34 anos e, na altura, pretendia-se acompanhar as pessoas em situação de sem-abrigo. A nossa missão é exatamente ir ao encontro das pessoas. Acolher as pessoas em situação de sem-abrigo ou em situação de vulnerabilidade social, ajudá-las e, através de um projeto integrado de prevenção, reabilitação e reinserção, devolver-lhes dignidade e a ajudá-las a construírem um sentido de vida.

Neste período, foram desenvolvidas várias respostas para permitir que as pessoas pudessem reabilitar-se e voltarem a ser inseridas na sociedade. Grande parte das pessoas que nós acompanhávamos na rua - e mesmo aquelas que vinham ao nosso encontro - eram pessoas que apresentavam um diagnóstico de toxicodependência e alcoolismo. Por isso, a própria instituição entendeu que devia criar respostas para o tratamento destas doenças. E assim foi. Foram-se criando comunidades terapêuticas e comunidades de reinserção.

Nestes últimos três anos, e também no decorrer da pandemia e de toda a necessidade de adaptação e de repensar a intervenção para que não fosse posta em causa a segurança e a saúde das pessoas que estavam a depender de nós, fomos criando também outras respostas, sobretudo respostas de primeira linha. 

A nossa missão não é dar uma refeição. É sim, através da refeição ou da ceia, chegar à conversa com a pessoa que está naquela situação de sem-abrigo e conseguirmos ter uma relação de confiança, com o propósito de a motivarmos para que mude e para que saia daquela situação 

Que respostas são essas?

Com a pandemia, houve um aumento de pessoas em situação de sem-abrigo e nós quisemos ter uma ação bem integrada com o objetivo de podermos integrar pessoas. Então, criámos uma estrutura para acolher pessoas em situação de sem-abrigo. É uma estrutura para nós algo inovadora na medida em que podemos acolher todos os géneros de pessoas, homens, mulheres, transgéneros, casais e pessoas acompanhadas dos seus animais. 

Trata-se de um centro que funciona mediante um protocolo que temos com a Câmara Municipal de Lisboa, com capacidade para 40 pessoas, cujo objetivo é escutar as pessoas, desenvolver um projeto de vida para cada uma delas e onde prestamos serviços desde o alojamento e refeições aos serviços de saúde. Existe uma equipa multidisciplinar que acompanha estas 40 pessoas e que as ajuda a encontrar um sentido diferente para as suas vidas, algumas podem ser integradas e encaminhadas para comunidade terapêutica, se tiverem a problemática aditiva, como é o caso da toxicodependência e do alcoolismo, e outras podem ser encaminhadas para um apartamento partilhado, dependendo das suas necessidades. 

Depois da pandemia, criámos outras estruturas, como os apartamentos partilhados na Amadora, Loures e Odivelas, também protocolados com a Segurança Social, no âmbito da Estratégia Nacional para a Integração das Pessoas em Situação de Sem-Abrigo.

A Comunidade Vida e Paz assenta a sua intervenção em três grandes eixos: a primeira linha, que é ir ao encontro e acolher as pessoas em situação de sem-abrigo ou de vulnerabilidade social, a recuperação e reabilitação e a reinserção social.

A Comunidade muitas vezes é conhecida porque tem as suas viaturas a circular na rua à noite, a propósito das 'voltas da noite', que realizamos todos os dias. Vamos a mais de 100 pontos na cidade de Lisboa e também na Amadora com os nossos voluntários e distribuímos uma ceia. Mas a nossa missão não é dar uma refeição. É sim, através da refeição ou da ceia, chegar à conversa com a pessoa que está naquela situação de sem-abrigo e conseguirmos ter uma relação de confiança, com o propósito de a motivarmos para que mude e para que saia daquela situação.

Muitas vezes a nossa intervenção é conhecida apenas pelo trabalho das equipas de primeira linha, mas a Comunidade tem um projeto integrado, que vai desde a rua até inserirmos a pessoa na sociedade. Estas respostas, que estão integradas no segundo eixo ou no terceiro, não são tão conhecidas pela sociedade em geral. 

Já não nos podemos restringir ao perfil daquela típica pessoa em situação de sem-abrigo, que se deslocava pela cidade de um local para o outro 

Como é o perfil do atual sem-abrigo em Lisboa?

Nos últimos tempos, temos assistido a alterações do perfil. Encontramos jovens na rua, mas também pessoas com muita idade. Temos aqui os dois extremos. 

Depois, encontramos muitas mais pessoas a consumir substâncias psicoativas e em locais por onde passam pessoas, a céu aberto, sem qualquer pudor. Houve um grande aumento na questão dos consumos.

Temos também a questão dos migrantes, que veio contribuir bastante para o aumento de pessoas em situação de sem-abrigo em Lisboa. Temos a questão da doença mental, que continua a agravar-se e a aumentar e, obviamente, temos os casos que são motivados pela crise e pelo contexto social e económico que estamos a atravessar. 

Temos pessoas que ficaram desempregadas e pessoas que ainda conseguem manter a sua habitação, mas não conseguem obter orçamento para suportar as suas despesas familiares e também elas estão em grande risco de poderem ficar em situação de sem-abrigo. 

Temos uma série de variáveis que nos permitem perceber que já não nos podemos restringir ao perfil daquela típica pessoa em situação de sem-abrigo, que se deslocava pela cidade de um local para o outro, muito em função da procura, e que era toxicodependente e tinha problemas relacionados com o consumo.

Neste momento, é como se tivéssemos recuado uns anos, em que as pessoas estão a consumir a céu aberto sem qualquer pudor 

Referiu que há consumo de droga a céu aberto em zonas de Lisboa. Quais são as regiões mais flagrantes?

A Avenida de Ceuta, onde se verificam muitas pessoas a consumir debaixo do viaduto. Há ainda a questão da Gare do Oriente. Neste momento, é como se tivéssemos recuado uns anos, em que as pessoas estão a consumir a céu aberto sem qualquer pudor.

Na minha perspetiva, houve um desinvestimento nas políticas da área de intervenção das dependências, bem como nas políticas a propósito dos migrantes.

Também há muitas pessoas que acabam na rua porque terminam penas, saem da cadeia e vão parar diretamente à rua porque não há um projeto de reinserção social. Ou jovens que estavam em centros de acolhimento e que também acabam por ir parar à rua. Pessoas que saem do hospital, têm alta, mas não há um contexto de proteção social e então vão parar à rua.

Temos todos estes casos que, de alguma forma, vêm contribuir para este aumento. 

Número de pessoas em situação de sem-abrigo não para de aumentar e muitas famílias que estão em situação de grande vulnerabilidade podem vir a ser as próximas. (...) Se não existirem medidas preventivas, se calhar o primeiro trimestre do próximo ano vai ser muito crítico

Que medidas considera que deviam ser tomadas a curto prazo para diminuir o número de pessoas em situação de sem-abrigo?

Temos de apostar muito na prevenção primária. Temos de ter medidas que impeçam que este tipo de situações aconteçam. Precisamos que as pessoas que terminam a sua pena tenham um projeto de reinserção, tenham para onde ir, possam voltar ao mercado de trabalho. Precisamos que haja um investimento na empregabilidade. No caso dos jovens que saem das instituições de acolhimento aos 18 anos, a mesma coisa. 

Há o caso dos migrantes, que muitas vezes vêm à procura de novas oportunidades e se deparam com uma realidade completamente diferente daquela que lhes é apresentada.

O que acaba por acontecer é que muitas pessoas, também numa situação de desespero, acabam por ficar na rua e vir a desenvolver uma toxicodependência ou um alcoolismo. 

A nossa grande preocupação neste momento é que este número de pessoas em situação de sem-abrigo não para de aumentar e  muitas famílias que estão em situação de grande vulnerabilidade podem vir a ser as próximas.

Deve haver um acompanhamento destas famílias que já estão em risco, que têm despesas de rendas em atraso ou que estão a passar por processos de despejo. Que ajuda é que podem ter para que não saiam de uma habitação e fiquem na rua? Que acompanhamento é que é dado a todos estes casos que podem ser os próximos casos de pessoas em situação de sem-abrigo?

A prevenção passa por perceber quais são as pessoas que estão em risco e impedir que aconteça. Muitas vezes precisam de um suporte para que consigam ser mais empoderadas e ingressar no mercado de trabalho. Deve haver outro tipo de medidas ao nível da empregabilidade e também na questão da Habitação, que é um drama, sobretudo em Lisboa. Não há habitações e as pessoas não conseguem manter uma prestação ou uma renda com o ordenado mínimo. 

Há uma série de aspetos que mostram que, se não existirem medidas preventivas, se calhar o primeiro trimestre do próximo ano vai ser muito crítico. Já está [a ser crítico], mas ainda se vai agravar. 

Quantas pessoas são ajudadas diariamente pela Comunidade?

Acompanhamos, pelas equipas voluntárias de rua, que são quatro todas as noites e funcionam com quatro rotas diferentes, cerca de 500 pessoas. Temos verificado um aumento, comparativamente ao ano anterior, de 25%.

Neste momento, contando essas 500 pessoas mais as pessoas que estão nas nossas outras respostas, são mais de 800 pessoas por dia que dependem da instituição, instituição esta que conta com mais de 600 voluntários para a intervenção de primeira linha, nomeadamente as 'voltas da noite', as preparações das ceias e o banco de roupa. Há ainda um grupo de profissionais que estão distribuídos por todas as respostas de diferentes áreas, num total de cerca de 170 profissionais. 

A crise na Habitação, a pandemia, as guerras e o aumento da inflação vieram contribuir para esse aumento.

Sim, sem dúvida. Todos esses fatores. 

Há pessoas que até já tiveram um modo de vida bastante razoável e a vergonha impede muitas vezes de pedirem apoio. (...) Muitas vezes, famílias que têm filhos receiam ficar nessa situação e que lhes retirem os filhos. É muito assustador, não só a vergonha, mas também o medo 

O sentimento de vergonha está muitas vezes associado a pessoas em situação de sem-abrigo e faz com que muitas vezes rejeitem pedir ajuda. A Comunidade Vida e Paz consegue intervir nestes casos?

A nossa missão não está direcionada para o acompanhamento das famílias, apesar de termos algumas famílias, sobretudo de ex-utentes que acompanhámos, e outras que muitas vezes nos solicitam apoio.

Tentamos apoiar aquelas que conseguimos identificar como sendo pessoas que já conhecemos ou que já acompanhamos. As novas tentamos encaminhar para estruturas que dão resposta ao nível alimentar, entre outros.

Mas é dramático quando pessoas se dirigem à nossa equipa e à nossa viatura e pedem uma ceia para que possam ficar com essa ceia para o pequeno-almoço do dia seguinte ou revelam que ao longo do dia não conseguiram fazer grandes refeições.

Percebemos claramente a vergonha. Às vezes até nos dizem: "Olhe, estou eu aqui, mas lá em casa estão uma série de elementos da família". Isto é assustador. Procuramos sempre encaminhar este tipo de casos, mas há pessoas que até já tiveram um modo de vida bastante razoável e a vergonha impede muitas vezes de pedirem apoio. É muito difícil conseguirem aceitar a realidade em que se encontram, devido a todos os sentimentos que estão associados, não só a vergonha, mas também a frustração e o medo. Muitas vezes, famílias que têm filhos receiam ficar nessa situação e que lhes retirem os filhos. É muito assustador, não só a vergonha, mas também o medo.

Em dezembro, antecipou que 2023 seria "um ano ainda mais duro". Confirmou-se? Que desafios enfrenta a Comunidade Vida e Paz?

Sim. Confirmou-se não só nos números que aumentaram em relação às pessoas em situação de sem-abrigo, como também nas dificuldades das próprias instituições que atuam nesta área, como é o caso da Comunidade Vida e Paz. 

A Comunidade está a passar por sérias dificuldades a nível financeiro porque cerca de 45% das suas receitas provêm dos protocolos e dos acordos que tem com o Estado, como o Ministério da Saúde, o Ministério da Segurança Social e municípios, mas os outros 55% das receitas provêm de empresas e benfeitores particulares e, sem esse apoio, não seria possível a Comunidade manter toda a sua estrutura, serviços e respostas.

É uma preocupação numa altura em que as instituições necessitam de mais recursos para fazer face à realidade que estamos a encontrar. Cada vez mais as instituições têm menos recursos e os donativos, em géneros ou numerário, diminuíram. É muito difícil as instituições conseguirem manter a sua atividade e satisfazer as necessidades que a população em situação de sem-abrigo apresenta.  De facto, 2023 foi pior e tudo indica que 2024 venha a piorar ainda mais.

O que se pode fazer para ajudar e financiar o trabalho da Comunidade Vida e Paz?

Podem contribuir com donativos em género e em numerário. Temos no nosso site várias formas de ajudar. Também vamos realizar a 35.ª Festa de Natal para as pessoas em situação de sem-abrigo, nos dias 16, 17 e 18 de dezembro, na cantina da Cidade Universitária. É um evento que envolve muitas pessoas e muitos recursos e, por isso, todo o apoio que conseguirmos é determinante.

Nesta festa procuramos receber os nossos convidados, que são as pessoas em situação de sem-abrigo e em situação de vulnerabilidade, que já receberam um convite entregue pelas equipas voluntárias e equipas técnicas. Durante esses três dias, têm a oportunidade de vivenciar um ambiente de festa, de Natal e de família. Temos momentos lúdicos, mas também temos serviços que prestamos às pessoas, desde banho, barbeiro e cabeleireiro. Temos a área da Saúde, onde temos médicos e enfermeiros, e a área da Cidadania, em que as pessoas podem ter um atendimento na Segurança Social. Estará também o Instituto do Emprego e Formação Profissional (IEFP), a Santa Casa da Misericórdia e o  Instituto dos Registos e do Notariado (IRN), onde podemos fazer um cartão de cidadão para as pessoas que não têm. Depois temos as refeições, as roupas e os espaços de animação para as crianças que vão com os seus familiares. 

Nesses três dias prestaremos serviços que, na maioria das vezes, as pessoas estão privadas. Muitas vezes as pessoas não conseguem deslocar-se aos locais para tratar das situações ou problemas que têm por não estarem empoderadas.

Por último, o grande objetivo da festa é podermos estabelecer uma relação de confiança. Existe uma área constituída pelos nossos profissionais, em que vão escutar as pessoas e vão procurar motivá-las para que possam sair da situação em que se encontram. Costumamos dizer que, se nos três dias de festa conseguíssemos contribuir para que uma - nem que fosse apenas uma - pessoa conseguisse sair da rua, já teríamos cumprido o grande objetivo. Felizmente, conseguimos encaminhar e ajudar mais pessoas.

Este é também um evento que está no primeiro eixo e faz parte da primeira linha e só possível graças a todos os benfeitores e todos os apoios das empresas e dos particulares, mas também de todos os voluntários, que são cerca de mil, que acompanham as cerca de 500/600 pessoas que podem ir à festa todos os dias. Acreditamos que este ano possam ir mais pessoas, atendendo ao aumento dos números e às necessidades que percebemos que as pessoas estão a atravessar.

A pessoa não está [na rua] porque quer, se a pessoa pudesse escolher, com certeza que não escolheria a rua e se escolhe a rua é porque não está capaz de tomar uma decisão adequada, do ponto de vista psicológico. É muito importante que possamos perceber que a pessoa não é "o sem-abrigo", mas sim "a pessoa em situação de sem-abrigo"

O Presidente da República afirmou que o país tem de fazer um esforço para "reduzir drasticamente" o número de pessoas em situação de sem-abrigo até 2026 - objetivo que tinha estipulado anteriormente para 2023. Parece-lhe realista?

De facto, a meta seria 2023, mas nós nunca vamos conseguir erradicar as pessoas em situação de sem-abrigo. Por mais que queiramos unir esforços. Mesmo que existissem esforços de todas as entidades e todas as instituições privadas ou públicas, seria muito difícil.

No entanto, tem de existir uma estratégia robusta para que efetivamente possamos diminuir estes números. Se não houver um investimento na estratégia de intervenção, seja a nível nacional ou dos municípios, tudo indica que isto se possa vir a agravar devido às consequências das guerras e do facto de muitas pessoas não terem conseguido recuperar da pandemia.

Temos de estar preparados porque são necessários todos os esforços e é necessário considerar as instituições que atuam nestas áreas porque muitas delas correm o risco de deixar de ter recursos.

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Tem esperança de que possam surgir por parte do próximo governo medidas mais eficazes?

Nós não podemos deixar de ter esperança. Não podemos deixar de acreditar. Mas também temos de ser criativos e apelar à sociedade em geral, apelar a todos, para que nunca nos esqueçamos que hoje são aquelas pessoas e amanhã podemos ser nós. 

Há também aqui um grande trabalho no que diz respeito à consciencialização das pessoas para que o preconceito seja eliminado. Muitas vezes ouvimos pessoas a dizer: "Ah, estão naquela situação porque querem. Estão na rua porque querem". Isto é errado. A pessoa não está porque quer, se a pessoa pudesse escolher, com certeza que não escolheria a rua e se escolhe a rua é porque não está capaz de tomar uma decisão adequada, do ponto de vista psicológico.

É muito importante que possamos perceber que a pessoa não é "o sem-abrigo", mas sim "a pessoa em situação de sem-abrigo". Este é um trabalho que fazemos constantemente. Não são os "sem-abrigo", as pessoas não têm aquela identidade associada, estão naquela situação. Todos nós, como sociedade, somos responsáveis por contribuir para que as pessoas deixem de estar naquela situação. Às vezes conseguimos perceber que alguém ao nosso lado está a passar sérias dificuldades e, se pudermos encaminhá-la para alguma resposta ou entidade, podemos evitar que essa pessoa venha a ficar numa situação pior. Todos temos um papel, todos somos responsáveis.

E em Lisboa, por ser uma cidade tão grande, regista-se essa indiferença pelo próximo?

Temos de tudo. Tanto temos pessoas que manifestam indiferença, como temos muitas pessoas solidárias, que se preocupam e que querem ajudar. Felizmente, assistimos também a gestos fantásticos, às vezes até de pessoas que também elas passam dificuldades, mas que estão disponíveis para ajudar e para contribuir, mesmo que o seu contributo seja mais pequeno. Estão ali com esse gesto de preocupação e solidariedade e isso é notável. 

Por exemplo, quando se instalou a pandemia, a Comunidade Vida e Paz foi provavelmente a única instituição que nunca deixou de ir à rua e de acompanhar as pessoas em situação de sem-abrigo. No início de março [de 2020], estávamos a ir ao encontro de cerca de 370/390 pessoas e distribuíamos cerca de 400 ceias e, no final desse mês, estávamos a distribuir 800. Com os confinamentos, não havia a possibilidade de as pessoas obterem dinheiro ou uma refeição porque a restauração estava fechada e não havia carros para arrumar e, então, havia fome. Muitas pessoas pediam-nos que não as abandonássemos e nós conseguimos, com o apoio de particulares, empresas e instituições, garantir o acompanhamento de todas estas pessoas. 

Este aumento significativo [de apoios] foi, sem dúvida, uma campanha solidária que nos permitiu conseguir fazer face [às necessidades] e também alocar verbas para conseguirmos ter outro tipo de respostas para estas pessoas. Foi um movimento solidário muito significativo porque as pessoas conseguiram colocar-se no lugar do outro e isso é muito importante.

Que objetivos traça para 2024?

Nós temos um plano estratégico que vai até 2026 e que passa muito por consolidarmos as respostas que temos e tudo fazermos para as manter. O que pretendemos é manter a intervenção e o número de respostas que temos e torná-las mais robustas, mas para isso precisamos de recursos. Se não os tivermos, será muito difícil.

Será muito difícil até manter os profissionais e as pessoas que colaboram connosco. É também sempre uma preocupação garantir que as pessoas que trabalham connosco possam, de facto, ter condições e sabemos que muitas vezes não conseguimos corresponder às suas expectativas porque somos uma Instituição Particular de Solidariedade Social (IPSS) e não conseguimos ter apoio financeiro para todas as respostas que temos.

As equipas voluntárias de rua, constituídas por 600 voluntários que todas as noites distribuem as ceias, não é uma resposta financiada por qualquer organismo público. Tudo depende do orçamento da instituição e está a cargo do que a instituição conseguir angariar.

Um objetivo para 2024 é que possamos ter recursos para garantir que não vamos ter de abdicar de algumas respostas e de algum tipo de apoio que prestamos às pessoas. Como já disse, a nossa missão não é entregar comida, é sim ajudar a reconstruir sentidos de vida, é ajudar a pessoa a sair da situação de sem-abrigo e ajudá-la depois a reinserir-se na sociedade e a devolver-lhe a dignidade que qualquer pessoa merece. 

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