"Há uma adesão mais precoce de crianças a grupos de pré-delinquência"

O intendente Hugo Guinote, coordenador do Policiamento de Proximidade da Polícia de Segurança Pública (PSP), é o convidado do Vozes ao Minuto desta segunda-feira.

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© Hugo Guinote/PSP/Notícias ao Minuto

Carmen Guilherme
19/02/2024 08:45 ‧ 19/02/2024 por Carmen Guilherme

País

Escola Segura

Hugo Guinote, oficial de Direitos Humanos na PSP e chefe da Divisão de Prevenção Pública e Proximidade, é responsável pela coordenação, a nível nacional, no que diz respeito aos programas de policiamento relacionados com as vítimas especialmente vulneráveis.

Responsável nesta força de segurança pelo programa Escola Segura, fala-nos, nesta entrevista ao Notícias ao Minuto, de violência em contexto escolar, mais precisamente da prevenção da delinquência juvenil e da dissuasão ao recurso a armas brancas por parte dos jovens. 

O fenómeno do uso de armas por parte dos jovens "não é novo no mundo", mas chegou mais recentemente a Portugal, tendo havido uma subida "significativa dos dados" no período da pandemia de Covid-19, sobretudo, acredita-se, devido às redes sociais. 

Hugo Guinote, que participa também na Comissão de Análise Integrada da Delinquência Juvenil e da Criminalidade Violenta, alerta que "andar armado" revela, além de "insegurança", um "sentimento de inferioridade". Para o intendente, é necessário "desconstruir a ideia da inimputabilidade", sendo "muito importante" desmistificar "a ideia de que levar uma criança a um tribunal" é "um castigo". 

O responsável admite ainda que "estamos a assistir a uma adesão cada vez mais precoce, em termos etários, de crianças a integrarem grupos de pré-delinquência" e alerta que "é falso pensarmos que é apenas nas comunidades socialmente mais fragilizadas ou mais vulneráveis onde existe" este comportamento.

É muito importante para nós dar aos jovens instrumentos para poderem gerir melhor os seus relacionamentos

Decorreu, entre 29 de janeiro e 2 de fevereiro, a 2.ª edição da operação 'Violência? Hoje Não, Obrigado!'. Foram mais de 300 ações e 7000 pessoas sensibilizadas, segundo dos dados da PSP. Sai um balanço positivo desta campanha?

Sim, ainda que sejamos pragmáticos nas análises que fazemos. O que aconteceu nas escolas, nas últimas semanas, foi uma parte do puzzle. Neste, especificamente, o que as equipas do programa Escola Segura foram fazer foi, no âmbito do pilar preventivo, sensibilizar os alunos para a adoção de comportamentos de autoprevenção e de autoproteção, visando ensiná-los a identificar os momentos de conflito, as fases em que o conflito se encontra e a forma como podem sair dos conflitos, geri-los e abandonar a fase do conflito. Isso é muito importante para nós, dar aos jovens instrumentos para poderem gerir melhor os seus relacionamentos. Mas esta é apenas a parte preventiva.

O que efetivamente nos satisfaz, mas isso só podemos fazer no final do ano escolar, é uma análise de que o comportamento dos jovens se modificou. E tivemos uma descida significativa, a rondar os 56% das ocorrências em que os jovens tinham uso ou porte de armas. Isto é muito importante, comparando os dados do ano letivo 2020/2021, com o ano letivo 2022/2023. E essa, sim, é uma informação que, de facto, nos satisfez. Vamos ver como corre este ano.

Quando um jovem acha que é normal para se divertir à noite ter de sair armado, alguma coisa tem de mudar

Segundo aquilo que está a dizer e tendo em conta que esta foi a segunda edição, ou seja, é uma operação recente, o que é que levou a PSP a sentir que tinha de intervir em áreas tão específicas que são abordadas nesta campanha, nomeadamente a delinquência juvenil e o uso ou porte de armas?

O fenómeno em si, do uso de armas por parte dos jovens, não é novo no mundo. Começou na década de 80/90 no Reino Unido, isto falando do espaço Europeu, e depois transitou rapidamente para a Europa continental, sobretudo, para a área Central. Felizmente, em Portugal demorou muito tempo a chegar, mas nós, de acordo com os estudos que vamos sempre realizando e a monitorização que vamos fazendo dos fenómenos, já estávamos preparados para que mais ano, menos ano, isto viesse a acontecer. E, por isso, já tínhamos os nossos materiais pensados para que assim que ocorresse uma subida significativa dos dados do recurso a porte de armas, desencadeássemos este tipo de operações.

Foi isso que aconteceu no período da Covid - surpreendemo-nos um bocadinho-, mas, provavelmente, porque os jovens ficaram com mais tempo para consultar as redes sociais e deixaram-se influenciar por esses conteúdos, mimetizaram estes comportamentos no seu espaço e tivemos então esta mudança de comportamento.

O que nos preocupa porque aumenta muito o risco das consequências e, infelizmente, qualquer jovem hoje, podendo replicar este tipo de comportamento, está a correr riscos em momentos que era suposto serem de lazer, como é uma saída à noite para conviver com os amigos ou um passeio. Quando um jovem adota como um comportamento normalizado, quando um jovem acha que é normal para se divertir à noite ter de sair armado, alguma coisa tem de mudar.

Fomos percebendo que existiam comportamentos provocatórios entre diferentes grupos de jovens, entrando especificamente no espectro da delinquência juvenil e na criminalidade grupal

Falava-me aí das redes sociais, percebe-se então que muitos destes comportamentos e esta ideia da necessidade de andar armado pode ser alavancada por desafios que nascem na Internet? Porque é que surgem estes comportamentos? Além disso, abordou também a monitorização, como é que é feita esta monitorização?

A monitorização acontece com as relações que temos de espectro internacional, com as nossas congéneres. Temos redes formais e informais em que estabelecemos troca de informação e já sabíamos que este fenómeno mais cedo ou mais tarde chegaria, invariavelmente, a todos os países do mundo. O que percebemos é que, provavelmente, a causa foi de facto as redes sociais porque é no momento em que a convivência no espaço físico está restringida em função do período Covid, portanto, a maioria das atividades letivas presenciais terem sido suspensas ou, pelo menos, diminuídas no seu calendário escolar. É expectável que tenha sido isto que esteve por trás do fenómeno.

Mas, além disso, da monitorização que vamos fazer nas próprias redes sociais, e através do que outros jovens nos vão reportando daquilo que acontece aos pares, fomos percebendo que existiam esses diálogos e, muitas vezes, comportamentos provocatórios entre diferentes grupos de jovens, entrando especificamente no espectro da delinquência juvenil e na criminalidade grupal. Foi isso que fez espoletar, primeiro, apenas a adoção deste tipo de comportamentos por parte dos jovens afetos a estes grupos delinquentes, mas, depois, - e isso é que se tornou mais preocupante - a generalização do porte de arma por qualquer jovem que fosse sair à noite. Isso começou a ser considerado banal e é o que não queremos, porque aquilo que procuramos ensinar aos jovens é que o facto de sentirmos necessidade de levar uma arma é sinónimo de que não estamos confortáveis para a situação para que estamos a ir. Uma pessoa normal não anda armada. 

Andar armado não é um sinal nem de inteligência, nem de bravura, muito pelo contrário, é um sinal de pouca inteligência, de intranquilidade, de insegurança e, provavelmente, é um sentimento de inferioridade

Podem, também, estes fenómenos nascer de um determinado sentimento de impunidade, ou seja, por serem jovens e por acharem que pode não lhes acontecer nada quando, na verdade, não estão bem informados sobre o assunto?

Na ação de sensibilização que levámos para as escolas, além de falarmos sobre o dia da Eliminação da Violência e da Paz, que é o mote a 30 de janeiro que dá início a esta campanha, o forte conteúdo desta ação passa por, primeiro, explicar o que é a delinquência juvenil e, depois, explicar que os conflitos nascem, maioritariamente, de uma dificuldade que temos em gerir a nossa insegurança. Aquilo que abordamos com os jovens é desconstruir a ideia de que andar armado é um sinal de valentia, é precisamente o oposto. Eu só sinto necessidade de estar armado se viver com medo e eu só sinto que estou com medo se me colocaram numa posição em que me estou a sentir vulnerável. Portanto, andar armado não é um sinal nem de inteligência, nem de bravura, muito pelo contrário, é um sinal de pouca inteligência, de intranquilidade, de insegurança e, provavelmente, é um sentimento de inferioridade.

Aquilo que procuramos é depois desconstruir todas estas ideias pelos jovens e terminamos o momento elucidando-os, especificamente, de que o conceito ou a ideia de que só a partir dos 18 anos é que passam a ser punidos pela lei é falso, é completamente errado. Qualquer jovem pode receber, ser destinatário, de medidas para a educação do Direito a partir dos 12 anos e, a partir dos 14 anos, pode, inclusivamente, ser decretada uma medida de internamento. Portanto, há que desconstruir a ideia da inimputabilidade e essa é também uma mensagem que vincamos fortemente nas ações que fazemos. Provavelmente, isso também esteve na génese da mudança de comportamento que fomos observando, pelo menos, no espaço escolar. 

Além destas ações de sensibilização, também há contactos individuais com casos sinalizados. Como é que é feita essa sinalização e que acompanhamento é este?

Os contactos individuais são um indicador que introduzimos há, sensivelmente, 10 anos e visam contabilizar todas as reuniões que os nossos polícias têm em que estão a abordar um caso específico de uma das crianças. Podem ser reuniões com os pais, com os professores, com psicólogos, com elementos das Comissões de Proteção de Crianças e Jovens (CPCJ) e, em qualquer dessas reuniões, eles estão, especificamente, a tratar do caso daquela criança. É nisto que consiste o indicador e o objetivo é trocar informação para se conseguir apurar o conhecimento que temos, quer daquela criança, quer do contexto em que aquela criança está a viver, para se tentar, o mais rapidamente possível, decretar as medidas que vão ao longo do superior interesse da criança. Portanto, aquilo que mais importa para proteger o mais rapidamente possível aquela criança.

Há pouco dizia-me que, no ano letivo de 2022/2023, comparativamente ao ano anterior, quando começaram a fazer esta avaliação, tinha havido um decréscimo das ocorrências relacionadas com posse e/ou uso de armas por jovens (foram registadas 34 ocorrências em 2022/2023). Vamos a meio deste ano letivo, já há dados?

Não. 

Vamos estando atentos e sempre que há ocorrências de maior impacto somos alertados de imediato para desencadear um conjunto de respostas

Não há uma tendência? Isto é, não conseguem fazer já uma avaliação?

Não, não temos feito essa monitorização. Por regra, fazemos só no final do ano. O ano começa, nós temos esta operação sensivelmente a meio do ano letivo e depois vamos fazer o comparativo no final do ano letivo. Estar aqui a fazer avaliações à semana, ou mesmo ao mês, é relativamente curto porque, felizmente, as ocorrências com armas não são muitas. O ano passado [entre setembro e dezembro de 2023] houve uma e, portanto, não há aqui grande base de comparação. Estamos a despender tempo a fazer monitorizações quando, felizmente, os números são tão baixos. Acaba por ser um esforço que não se justifica. Mas vamos estando atentos e sempre que há ocorrências de maior impacto somos alertados de imediato para desencadear um conjunto de respostas.

Mas, por exemplo, disse-me que de setembro a dezembro de 2023 houve uma ocorrência, olhando para as 34 do ano letivo passado e se já estamos a meio deste ano letivo, pode significar que, de facto, poderá haver, novamente, um decréscimo. 

 Vamos esperar pelo final do ano. 

Os jovens estão a denunciar o conflito numa fase mais precoce

Além destas ocorrências, que outras situações associadas à violência escolar é que são mais reportadas?

As situações que são mais comummente reportadas são as ofensas à integridade física simples, portanto, as agressões, e, depois, as injúrias e ameaças. E esse fenómeno tem apresentado uma tendência muito interessante. Sensivelmente, nos últimos 10 anos, estamos a observar uma tendência consistente para a descida do número de participações por agressões, de agressões à integridade física simples, e, ao contrário, uma tendência igualmente consistente, mas ascendente, do número de participações por injúrias e ameaças. E, curiosamente, quando fazemos o somatório de ambos os indicadores, eles dão, sensivelmente, o mesmo número, todos os anos. 

A conclusão que vamos formulando disto é de que os conflitos, que são inerentes àquilo que é a convivência entre os jovens, mantêm-se, mas aquilo que acontece é que os próprios jovens estão a denunciar o conflito numa fase mais precoce, quando ainda estamos na fase das injúrias e ameaças e ainda não chegámos à fase das agressões. O que, no fundo, é tudo aquilo que queremos. É passar a mensagem aos pares de que devem estar sensibilizados para a necessidade do respeito dos direitos de todos, dos Direitos Humanos, e quando começam a existir os primeiros indícios de que o conflito se pode agravar, eles denunciam - ou diretamente aos agentes da Escola Segura, que estão sempre lá presencialmente, podem comunicar nas esquadras, através do email escolasegur@psp.pt ou, então, contactam com os restantes elementos da comunidade escolar, como os auxiliares de educação ou mesmo os professores. 

Acha que isso acontece porque hoje em dia os jovens também já estão muito mais sensibilizados e alerta para termos como, por exemplo, o bullying?

Absolutamente.

É falso pensarmos que é apenas nas comunidades socialmente mais fragilizadas ou mais vulneráveis onde existe a delinquência

Voltando à questão de delinquência juvenil, há zonas geográficas mais preocupantes do que outras?

Há zonas que vamos monitorizando, mas o fenómeno de delinquência juvenil, especificamente, é transversal. Não apenas geograficamente, mas, sobretudo, nas faixas socioeconómicas e culturais. É falso pensarmos que é apenas nas comunidades socialmente mais fragilizadas ou mais vulneráveis onde existe a delinquência. Isso não é real. Agora, em função dessa fragilidade, podem existir indicadores que levam o jovem a ser delinquente que são diferentes, ou causas que levam esses jovens a entrarem numa espiral de delinquência que podem ser diferentes das causas que levam outros jovens, em outros contextos, a entrarem nos mesmos circuitos de delinquência. Mas não é exclusivo de áreas mais vulneráveis. 

Então, pelo que me diz, também não será possível traçar um perfil. 

Não, de todo. Isso é um erro. É um erro porque nos faz abrandar a vigilância em relação a todos aqueles que não encaixam nesse perfil. Até porque parte destes jovens têm uma personalidade manipuladora e, portanto, é fácil, quem for ingénuo, pensar que só o jovem com determinado perfil é que é um delinquente jovem ou que vai ser enganado.

Estamos a assistir a uma adesão cada vez mais precoce, em termos etários, de crianças a grupos de pré-delinquência

E em relação às idades? Sei que o fator idade também entra nesta questão do perfil, mas confirma que há cada vez crianças mais novas ligadas a este tipo de casos? Ou a idade manteve-se sempre na mesma linha?

Não, isso é um facto. Estamos a assistir a uma adesão cada vez mais precoce, em termos etários, de crianças a grupos de pré-delinquência, se quisermos, com comportamentos marginais, com dificuldade em continuar inseridos no meio escolar com a assiduidade que se pretenderia e a manter uma sã convivência com os seus pares. Se antes estes problemas eram verificados aos 15, 16 anos, hoje, já começamos a ter jovens, crianças, com 11, 12 anos, que já começam a ter alguns comportamentos que nos preocupam porque vão sendo persistentes e, rapidamente, em um ou dois anos, começam a entrar em comportamentos criminosos que nos preocupam porque percebemos que são crianças que, por si só, não conseguem ter capacidade para abandonar este percurso de marginalidade, precisam mesmo da intervenção do Estado.

É muito importante que toda a comunidade compreenda que é relevante desmistificarmos a ideia de que levar uma criança destas a um tribunal para receber uma medida educativa para o Direito é um castigo. É precisamente o contrário. Boa parte dos que eram crianças há alguns anos e entraram no sistema de educação para o Direito, hoje, adultos, são unânimes. Essa foi uma das conclusões que a Comissão de Análise Integrada da Delinquência Juvenil chegou neste ano e meio, sensivelmente, quase dois anos, em que estivemos reunidos, em que os próprios, agora adultos, que passaram por esse percurso testemunhavam que a melhor coisa que lhes podia ter acontecido na vida foi, realmente, terem recebido uma medida de internamento, porque fora do sistema não tinham referências parentais, uma família estruturada, um apoio socioeconómico. E, através desses instrumentos, que, neste caso, o Estado lhes providenciou, foi possível de facto reorganizarem a sua vida. Sendo que, e isto é algo que é incontornável, depois aos 18, 19 anos, começaram a ser chamados a tribunal para responder pelos atos que tinham feito nos anos anteriores e isso foi um obstáculo à sua inserção na vida.

O facto de as dinâmicas terem passado do espaço físico para o espaço virtual potencia as hipóteses de conflito

E quando olhamos para o facto de serem cada vez mais novos, isto também surge associado a terem cada vez mais acesso a tecnologia, redes sociais, ou que causas é que identificam?

O facto de as dinâmicas de conflito terem passado do espaço físico para o espaço virtual potencia as hipóteses de conflito. Existe um maior diálogo provocatório e, sobretudo, há uma muito maior exposição. E como estas crianças, como a maioria das crianças, mas estas, particularmente, são especialmente vulneráveis, em função de um conjunto de várias características, como se sentem muito expostas nesse mundo virtual e porque se comparam muito com os que estão ao seu lado, ao se sentirem diminuídos, porque se sentem humilhados, questionados nas suas capacidades, porque se sentem injuriados, têm uma necessidade de responder com agressividade para provar que não são merecedores daquela desvalorização pública. Ou seja, quando nestes diálogos provocatórios alguém os desafia para determinado comportamento marginal, eles sentem uma necessidade tão grande de demonstrarem que são capazes de fazer frente, que esquecem-se de que devem adotar medidas de autoproteção, de bom senso. E, o facto de haver 300, 500, 1000 visualizadores a acompanharem aquela novela no espaço virtual exerce uma pressão ainda maior para terem de demonstrar a esses mesmos visualizadores que são capazes de dar resposta. Isto potencia imenso uma escalada de conflito. 

Sendo que estamos estamos sempre a falar de crianças. Portanto, ainda que eles pensem que têm maturidade suficiente para conseguir gerir tudo isto, mesmo emocionalmente, e que se queiram fazer de fortes e digam que nada daquilo lhes afeta, tudo isso é absolutamente falso. Todos eles sentem muito medo intimamente, confessem-no ou não, sofrem imenso com todas estas interações emocionais e as consequências são, muitas vezes, muito prejudiciais, para todos.

Parte destas crianças, ou por dificuldade da família, ou por questões de personalidade, acaba por não encontrar na estrutura familiar a referência que precisava para uma educação equilibrada e para um crescimento também equilibrado

E se eu lhe perguntar qual é o papel da família nestes cenários e neste tipo de casos? Muitas vezes a família não é um pilar, mas qual deve ser então o papel da sociedade? Sejamos pais, professores, ou outra coisa. Isto é, se tivermos conhecimento de algum caso, como devemos agir? Como podemos fazer a diferença?

A necessidade, conforme refere a legislação, de analisarmos caso por caso é fundamental para que possamos ser justos e céleres na atuação em socorro destes jovens, que estão em perigo. Na dúvida, caberá sempre a um tribunal, porque é aquele que tem a autoridade do Estado para mobilizar um conjunto mais vasto de recursos. Caberá sempre a um tribunal decretar as medidas de proteção para estas crianças, ainda que possam ser medidas que passem pelas medidas de educação para o Direito. Mas o objetivo é sempre o de proteger esta criança.

É verdade que, parte delas, ou por dificuldade da família, ou por questões de personalidade das próprias crianças, acaba por não encontrar na estrutura familiar a referência que precisava para uma educação equilibrada e para um crescimento também equilibrado. Como pelo contrário, buscam essas referências em outras pessoas que não são os melhores exemplos para as orientar, estão mais expostas a riscos.

O papel de cada um dos intervenientes, seja a escola, a polícia, a própria família, os amigos, entidades desportivas em que possam estar inseridas, etc., vai depender, muitas vezes, da importância que a própria criança vai dar a cada um deles. Porque, não sendo linear que todos valem a mesma coisa, enquanto um adulto consegue reconhecer a importância do que pode significar uma intervenção da polícia ou de um diretor, ou de um juiz, para estas crianças isso não é claro logo à partida.

O primeiro passo que qualquer pessoa que está preocupada com alguém que está a entrar num percurso de delinquência deve dar é participar à polícia

Então, essa abordagem deve ser feita como? Imaginemos que não estamos ainda na fase de ação, podemos estar até numa fase de sensibilização, como a própria polícia faz. O que é que pode ser feito? O que é que eu posso fazer para tentar sensibilizar, tendo em conta que, como dizia, cada indivíduo é um caso muito específico?

O essencial é, quando têm conhecimento de um caso destes, denunciar à polícia, porque a polícia é aquela entidade que consegue mobilizar um conjunto de respostas de imediato. Quando as crianças estão em perigo, temos facilidade de mobilizar vários recursos de forma imediata. Depois, vamos tentar perceber, isto sempre sob a tutela do tribunal, em coordenação com as comissões, e avaliando o caso, que tipo de respostas é possível dar o mais rapidamente possível e se elas vão ao encontro daquilo que a criança precisa.

Se, pelo contrário, se perceber que nas diferentes entidades que fazem parte da rede das Comissões de Proteção de Crianças e Jovens, essa resposta não é encontrada, ou se a situação em que a criança está é de um perigo tão elevado que não são essas instituições que conseguem dar a resposta, então, conforme estava a dizer há pouco, o tribunal vai desencadear essas medidas. Mas, o primeiro passo que qualquer pessoa que está preocupada com alguém que está a entrar num percurso de delinquência deve dar é participar à polícia. 

E acredito que esse seja também o conselho para um jovem que esteja a entrar nessa espiral. Se este jovem quiser procurar ajuda, a quem deve recorrer?

A mesma resposta. Ainda que possa parecer que os polícias não são capazes de dar este tipo de respostas, e de facto não temos a capacidade para dar todas as respostas que a criança possa necessitar, nós temos a capacidade de desencadear junto de todas as entidades parceiras essas respostas - e de uma forma célere, que é aquilo que é mais importante, atuar rapidamente e, sobretudo, garantir que, simultaneamente, aquela criança vai ser apoiada e protegida. As instituições que servem no último caso para proteger são as polícias.

Aconteceu, recentemente, uma agressão sexual numa escola de Vimoso, no distrito de Bragança, que gerou uma grande onda de choque. Como é que a PSP age perante estes casos, sobretudo casos tão mediatizados?

Aquilo em que agimos é sempre na resposta em coordenação, neste caso com o tribunal. Portanto, estamos a falar de um crime com uma moldura penal significativa, o que quer dizer que, na generalidade, se forem jovens que estejam já com mais de 12 anos, portanto, a partir dos 12 anos de idade, já são todos destinatários para a aplicação da Lei Tutelar Educativa. Portanto, o que vamos fazer é rapidamente identificar todos os intervenientes, comunicar o caso ao Ministério Público, que o Ministério Público vai, com certeza, chamá-los e tentar perceber o que é que efetivamente aconteceu. No entretanto, vamos falar com as famílias, em coordenação sempre com o tribunal, e naquilo que for possível de nossa parte para aumentar a proteção dessa vítima vamos fazê-lo.

Agressão sexual? Quando são crianças a cometer este tipo de crimes, todos vão precisar de auxílio, porque não é normal uma criança cometer atos desta natureza. Há ali qualquer coisa que de facto não está bem e precisa de ser auxiliada ou corrigida

Mas, por exemplo, sente que este tipo de caso também leva a que a própria PSP repense os seus métodos de sensibilização?

Bom, felizmente, os casos de violência sexual reportados nas nossas escolas são relativamente reduzidos. Não obstante fazermos todos os anos, várias vezes ao ano, 11, 12 operações nacionais, desde a operação do bullying, até àquela que está precisamente a decorrer esta semana, que é 'No Namoro Não Há Guerra', que começou na quarta-feira, às operações que abordam o respeito pelos direitos das crianças e que abordam especificamente a parte da importunação sexual, para ajudar as crianças, desde o primeiro ciclo, a distinguirem o que é um toque que possa ser admissível, daquilo que é um toque numa área privada do nosso corpo, que não é admissível e deve ser denunciado. Há todo um caminho que vamos percorrendo, adequado às diferentes faixas etárias, em que vamos explorando estes temas.

E procuramos sensibilizar os jovens para respeitarem os limites dos outros e perceberem quando os seus limites estão a ser respeitados ou quando não estão a ser respeitados e, nesse caso, sejam os meus, sejam os de alguém que eu conheço, se essa pessoa que foi vítima não for capaz de fazer a denúncia, eu devo fazer por ela. E, depois, o sistema deverá operar. Certo que, também temos de pensar, neste caso, quando são crianças a cometer este tipo de crimes, que todos vão precisar de auxílio, porque não é normal uma criança cometer atos desta natureza. Há ali qualquer coisa que de facto não está bem e precisa de ser auxiliada ou corrigida.

Mediatização? Temos sempre muito receio de que o caso possa depois servir para humilhar jovens em outras situações

E o mediatismo em torno destes casos, acha que acaba por ter um efeito de alerta e impedir que os jovens tenham este tipo de comportamento ou precisamente o contrário?

A questão é sempre polémica, mas, através da mediatização destes casos, temos sempre muito receio de que ele possa ser depois servido para humilhar jovens em outras situações, em outros cenários, a ameaçá-los de que 'olha, se não fazes isto ou aquilo, fazemos como fizeram à pessoa A, B ou C'. E, se a maioria das crianças consegue gerir estas ameaças com o relativo distanciamento, outras, porque também são crianças muito frágeis, passam a viver amedrontadas, permanentemente, com que isto se possa tornar realidade. O que quero com isto dizer? Que, às vezes, a mera brincadeira, de muito mau gosto, mas em tom de brincadeira, que possa ser proferida em relação à pessoa A, B ou C é, simultaneamente, um fator de estigmatização e de diminuição dessa pessoa e de ameaça e de medo. Daí que, no âmbito da Comissão Para a Análise Integrada da Delinquência Juvenil, foram proferidas recomendações especificamente para os órgãos de Comunicação Social para tratarem com particular cautela toda estas situações. Julgo que, melhor do que as polícias, os próprios órgãos de Comunicação Social deverão compreender qual deve ser o seu papel neste tipo de situações.

De facto, aquilo que podemos claramente concluir é que, felizmente, hoje há muito maior preocupação social com qualquer tipo de violência

Quase em jeito de remate, gostava de lhe fazer uma pergunta um bocadinho mais ampla, olhando para o caminho que seguimos. O que é que os casos de violência registados nas escolas dizem sobre a nossa sociedade atual?

Essa pergunta é uma pergunta que dava para muitos estudos e para uma conversa muito longa. Isto porquê? Porque, aquilo que me está a sugerir é que compare a realidade de hoje com a realidade de há 20 anos, mas isso não é comparável. Hoje temos muito mais informação do que tínhamos há 20 anos e não é fácil discernir se a visibilidade de determinados fenómenos hoje acontece porque eles existem mais, porque são mais reportados, porque estamos mais atentos para reparar neles.

É recorrente ouvirmos o discurso de 'bom, mas isso do bullying não é novo, no meu tempo também havia. Os abusos não são novos, no meu tempo também havia'. E, de facto, aquilo que podemos claramente concluir é que, felizmente, hoje há muito maior preocupação social com qualquer tipo de violência. Até há alguns anos, a violência psicológica era algo que nem sequer era propriamente levado a sério. Hoje, fala-se em violência no namoro, felizmente, como há 20 anos quase nem se falava de violência doméstica, quanto mais violência no namoro. Fala-se hoje numa expressão muito feliz que 'não é não, quando, antigamente, a forma cultural de gerir um 'não' era diferente. Havia sempre aquela interrogação de 'mas estás a fazer isso para me provocar, ou é mesmo a sério?'. Portanto, felizmente, isso é inquestionável, há um trabalho que tem sido feito de forma consistente para nos educarmos a todos sobre o respeito pelos Direitos Humanos de cada um. E isso eu julgo que é uma mensagem muito clara.

Não tenho dúvidas de que os jovens nas escolas, mas não só nas escolas, já os jovens que estão em idade universitária e mesmo esta geração que foi crescendo nos 30 anos do programa Escola Segura, que foi crescendo no convívio diário com as polícias e no diálogo que têm com os seus direitos e proteção em relação a crimes, tornou-nos a todos mais conscientes da necessidade de segurança e do respeito pelo próximo.

Percebo que já são muitos anos a trabalhar com este tipo de casos. Há algum caso de sucesso que o tenha marcado ou de que se orgulhe especialmente? 

Não. Não há nenhum caso que individualmente eu possa dizer que me marcou particularmente. Felizmente, há vários casos individuais de sucesso, de jovens que começaram com trajetórias de delinquência e de crime e que modificaram o seu comportamento e que tiveram um papel marcante, depois, na forma como se tornaram uma referência positiva. Se calhar, se pedir para lhe dar um destaque, eu colocaria o caso Johnson [João Semedo Tavares, fundador da Academia do Johnson]. Uma pessoa que faleceu em 2022, mas que tinha uma associação na Cova da Moura. Ele tinha tido uma trajetória de uma criança vulnerável na sua infância, mas que depois soube transformar-se. Ele próprio personalizava um percurso de sucesso, de mudança e tornou-se um exemplo para muitas daquelas crianças no bairro. E esse vem-me à memória porque foi uma pessoa que poucos dias depois de ser ouvido na Comissão acabou por falecer.

Mas há casos de sucesso e, infelizmente, também me vêm à memória alguns casos de insucesso, de pessoas que vão crescendo connosco e, depois, cruzamo-nos e eles estão já mergulhados num ambiente de delinquência e de crime e já não conseguiram sair e acabaram também por falecer.

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