Em Portugal existem cerca de 60 mil pessoas que sofrem de alguma perturbação do espectro do autismo. Apesar deste número elevado, o conceito de neurodiversidade é ainda profundamente desconhecido pela maioria dos cidadãos, o que faz com que muitos espaços públicos não estejam adaptados às necessidades destas pessoas.
Uma ida a um centro comercial, por exemplo, pode ser muito desafiante para quem sofre de perturbações do desenvolvimento e autismo, uma vez que envolve estímulos visuais e auditivos, impedindo, muitas vezes, adultos e crianças que sofrem de transtornos neurológicos de fazer compras nestes locais.
Por essa razão, em parceria com a Associação Portuguesa para as Perturbações do Desenvolvimento e Autismo (APPDA), o Alegro Setúbal implementou, no passado mês de janeiro, a 'Hora Silenciosa', uma iniciativa que se repete todos os domingos na primeira hora de funcionamento do centro comercial.
Assim, nesses dias, entre as 10h00 e as 11h00, a música e os ecrãs do centro comercial estão desligados, há menos luz artificial, não há carrinhos de recolha de lixo nem de descarga das lojas a circular, as escadas rolantes de acesso ao piso dois estão encerradas e os funcionários são incentivados a colocar os telemóveis em modo silêncio.
Além da 'Hora Silenciosa', o Alegro Setúbal disponibiliza diariamente abafadores de ruído e lugares de estacionamento prioritários para acolher e promover a inclusão de pessoas com neurodivergências, bem como as suas famílias, e ainda distribui panfletos informativos sobre a iniciativa aos visitantes de forma a sensibilizar a população para um melhor acolhimento.
Para nos dar a conhecer melhor esta iniciativa, o Notícias ao Minuto, falou, esta terça-feira, 2 de abril, dia em que se assinala o Dia Mundial da Consciencialização do Autismo, com Carmen Cristino, vice-presidente da APPDA de Setúbal.
Para a responsável, a 'Hora Silenciosa' "é uma mais-valia importante para as pessoas com Perturbação do Espectro do Austismo (PEA), possibilitando a igualdade de acesso a um espaço, normalmente hiperestimulante e pouco acolhedor" para estas pessoas.
A APPDA mostra-se assim "muito satisfeita com a implementação deste projeto", que facilita "não só o conforto e acesso de muitas famílias", como funciona como "pilar pedagógico para esta realidade".
Perante isso, realça a responsável, seria importante que esta iniciativa fosse "disseminada por outros centros comerciais", assim como faria sentido que outros projetos fossem reproduzidos por todo o país.
"O acesso a atividades culturais também não é fácil para as pessoas com autismo, por isso a APPDA-Setúbal, tem vindo a realizar uma iniciativa de nome 'Cine autismo - Cinema para todos' no Cinema Charlot em Setúbal. Esta iniciativa corresponde a uma sessão de cinema adaptada, nomeadamente com diminuição do som, com alguma luz na sala e em que é possível as crianças jovens ou adultos com autismo, andar livremente pela sala, sair da sala e voltar a entrar, permitindo que as pessoas com Autismo e as suas famílias, possam usufruir de uma sessão de cinema. Gostaríamos que este tipo de iniciativa fosse acolhida pelos cinemas, não se reduzindo estas sessões às que a APPDA-Setúbal tem vindo a realizar”, salienta Carmen Cristino.
Tiago já pode ir às compras com a família
Como pai de um adolescente com austismo, Paulo Anacleto está feliz com a iniciativa da APPDA e Alegro Setúbal. "Projetos como este fazem muita diferença na vida das pessoas com PEA. Seria fundamental que a restante sociedade tivesse a atenção e o respeito que o Alegro Setúbal demonstra com esta iniciativa", sublinha, acrescentando que os lugares prioritários no parque de estacionamento são também muito importantes para o acolhimento das pessoas que sofrem desta condição.
"A sociedade não sabe, mas retirar uma criança do PEA do automóvel nem sempre é fácil. O local escolhido pelo Alegro Setúbal é o ideal. Numa rua secundária, onde passam poucos carros, mas perto da porta de acesso ao Centro Comercial. Aquela pintura feita na parede é maravilhosa. O meu filho adorou", diz Paulo, em entrevista ao Notícias ao Minuto.
Desde que a 'Hora Silenciosa' foi implementada, Paulo já consegue levar Tiago às compras. Mesmo que seja durante apenas uma hora. Até agora, o filho tinha "muitas dificuldades" em ir ao centro comercial. "Tinha de ser uma compra muito rápida. Comprar roupa ou calçado era impossível", explica.
Com a redução dos estímulos no Alegro Setúbal, Tiago já pode ir às compras juntamente com a família.
Paulo deseja agora que a 'Hora Silenciosa' seja replicada em todos os centros comerciais do país e não só.
"Sonho que um dia as grandes cidades possam ser verdadeiramente inclusivas. Imaginem locais onde seja proibido fazer barulho - música alta, viaturas a combustão, obras - durante um período do dia. Quem não tem PEA nem repara no excesso de estímulos que o nosso cérebro tem de processar diariamente. Com uma 'Hora Silenciosa' nas cidades, poderíamo constatar facilmente que vivemos no meio de uma autêntica 'trovoada'", descreve.
Iniciativa estende-se a partir de hoje a mais centros comerciais
Perante o sucesso do projeto no Alegro Setúbal, os centros Alegro, geridos pela Nhood Portugal, "ouviram a comunidade e anunciam a extensão da iniciativa a todos os centros", localizados em Alfragide, Castelo Branco, Montijo e Sintra, para proporcionar "um acolhimento mais inclusivo e transversal a todas as pessoas com PEA".
Todos os centros comerciais Alegro vão passar assim a ter, todos os domingos a 'Hora Silenciosa', entre as 10h e as 11h, "permitindo um planeamento e acesso mais tranquilo a todas as pessoas com PEA e as suas famílias".
No âmbito do Dia Mundial da Consciencialização do Autismo, também os centros comerciais da CBRE lançaram, a nível ibérico, a 'Hora Tranquila', um projeto muito semelhante aos dos centros Alegro.
Em Portugal esta iniciativa terá lugar na 8ª Avenida, Alameda Shop&Spot, Alma Shopping, LeiriaShopping, LoureShopping, RioSul Shopping, Torreshopping, Nosso Shopping, UBBO e Forum Madeira.
"Desta forma, e com o aconselhamento da Federação Portuguesa de Autismo, todos os centros comerciais da CBRE irão adotar um período de uma hora, que dependendo do centro, poderá ser diário, semanal ou mensal, onde os estímulos sensoriais serão reduzidos. Desligar o som ambiente, reduzir a intensidade da luz, disponibilizar auscultadores antirruído, comunicação de equipas feita apenas via auriculares, são algumas das medidas a ser implementadas", de acordo com um comunicado enviado ao Notícias ao Minuto.
O autismo "não tem cara" nem é uma doença
O Dia Mundial da Consciencialização do Autismo, definindo pela ONU em 2007, visa esclarecer a população mundial e relembrar os direitos das pessoas com autismo e suas famílias.
Acredita-se que existam mais de 70 milhões de pessoas com autismo no mundo, uma condição permanente, ou seja, que não tem cura.
A incidência é maior nos rapazes, tendo uma relação de quatro a cinco rapazes para cada rapariga.
Estudos demonstram que terapia precoce e especializada melhoram significativamente o prognóstico ajudando a desenvolver competências que permitam ultrapassar algumas das dificuldades.
Ao Notícias ao Minuto, a responsável da APPDA de Setúbal realça que é ainda “necessário desconstruir conceitos e preconceitos” que a sociedade tem sobre estas pessoas, assim como "compreender e aceitá-las" e "garantir que os direitos fundamentais de inclusão em todas as áreas da vida" são assegurados.
Sobre o autismo é importante saber, segundo Carmen Cristino, que esta condição "não tem cara" e que "a maioria dos autistas não são génios", como tantas vezes é dito. Além disso, não se trata de uma doença, mas de uma perturbação do neurodesenvolvimento, que se manifesta na infância e que se mantém ao longo da vida.
Por essa razão, se vir alguma família a lidar com uma criança ou mesmo adulto autista, mostre "empatia, ofereça ajuda, não julgue". "Estes comportamentos são desafiantes para as famílias e os olhares dos outros são muito desconfortáveis e acrescentam mais ansiedade a estes pais que estão a tentar regular o filho", lembrou a responsável.
Uma em cada 100 crianças têm autismo
A prevalência do autismo varia consideravelmente entre áreas geográficas. As recentes pesquisas dão-nos uma prevalência de uma em 100 crianças têm autismo, mas se formos para as prevalências nos Estados Unidos os valores sobem consideravelmente para uma em cada 40 crianças, que vão desde casos leves a graves.
"Esta divergência pode ter como explicação os diferentes métodos de avaliação existentes em cada país ou existentes por exemplo na Europa e nos Estados Unidos. Portanto aquilo que neste momento prevalece em termos de estudos realizados na Europa é 1 em cada 100 crianças tem autismo", elucida ainda a responsável da APPDA em entrevista ao Notícias ao Minuto, considerando que, apesar disso, "ainda existe muito desconhecimento da sociedade em relação ao autismo".
"É uma problemática complexa e desafiante e para a qual a sociedade em geral ainda não está suficientemente sensibilizada. No fundo, é para isso que que cá estamos e é para isso que esta iniciativa também é importante porque permite sensibilizar as pessoas para o autismo, tanto para as suas dificuldades e características, como para os desafios que estas famílias enfrentam todos os dias", conclui.
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