"Aceitar que o aborto é uma alternativa de irmos ali tomar um café, não"

Victor Gil, membro do Movimento Acção Ética - responsável pelo polémico livro apresentado no início desta semana por Pedro Passos Coelho, é o convidado do Vozes ao Minuto desta sexta-feira.

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© Álvaro Isidoro / Global Imagens

Marta Amorim
12/04/2024 09:40 ‧ 12/04/2024 por Marta Amorim

País

Entrevista

O livro 'Identidade e Família', apresentado esta semana por Pedro Passos Coelho, provocou controvérsia e marcou a agenda mediática nos últimos dias.

A obra reúne um conjunto de textos de várias personalidades da vida pública portuguesa, sendo alguns contra aborto, eutanásia ou ideologia de género. 

Em entrevista ao Notícias ao Minuto, o médico cardiologista e professor universitário Victor Gil, que é membro do Movimento Acção Ética e coordenador do livro, diz-se "chocado" com a crítica. 

Assumindo que não concorda com todos os textos e opiniões ali expressas, frisa a necessidade de discussão destes temas e revela que Pedro Passos Coelho foi convidado para escrever um texto, acabando, por falta de tempo, a apresentar a publicação. 

O que motivou a escrita deste livro? Por que razão é que o Movimento Acção Ética acredita que o conceito de família está neste momento em causa?

O Movimento Acção Ética não nasceu agora e nasceu do cruzamento de pessoas, algumas que até nem se conheciam diretamente, mas com preocupações sobre os valores éticos que estavam um pouco esquecidos na nossa vida, sociedade, empresas. Sendo todos universitários, com o trabalho de formar pessoas, não só técnica, mas também como seres humanos, essa era uma preocupação ética que tínhamos. E sentimos que a temática que é objeto deste livro merecia ser falada. 

Estive do lado daqueles que combateram o antigo regime e as bandeiras que existiam na altura - da liberdade, do desenvolvimento, justiça social - estão, na minha opinião, ainda por cumprir. Entretanto, parece que apareceram outros valores que põem em causa coisas que eram absolutamente impensáveis. E, para nós, estamos a assistir a uma ditadura do politicamente correto. E, portanto, quisemos dar voz a quem tem uma opinião sobre isso. 

Não me revejo em todas as afirmações de todos os textos

Contudo, está-se a conotar este livro com uma determinada linha de pensamento político, o que eu rejeito totalmente. Não tem nada que ver com isso. É um livro de expressão livre das 22 pessoas que escreveram e que são menos de metade das pessoas que foram convidadas a escrever. Tivemos uma preocupação muito pluralista nos convites e na publicação, que foi feita sem qualquer tipo de censura. Pessoalmente, não me revejo em todas as afirmações de todos os textos, mas isso é que é a liberdade: dar oportunidade a estes textos para virem para cima da mesa. 

Compreende a polémica que se instalou em torno desde livro, quando se diz que o que defendem quer retirar liberdades?

Estou absolutamente chocado com isso. Como homem da liberdade - que todos somos, havendo várias formas de entender a liberdade -, estou chocado. Nós somos defensores de alguns princípios, e como, achando-se que o debate e o pensamento sobre esses princípios tem estado muito abafado, queremos dar a oportunidade de que as pessoas se confrontem com eles. Houve realmente um grande ruído, quase que violento, ridicularizando-o, insultando-o. Percebemos também que houve muitas críticas de muitas pessoas que não leram sequer o livro - e houve quem só lesse excertos. E eu garanto-lhe que há ali excertos de que eu também não gosto. Mas há capítulos que são magníficos, e temos de perceber que cada capítulo é da responsabilidade do seu autor. 

E mais: não há ali nenhuma afirmação que ponha em causa os direitos humanos. Agora, há determinadas coisas indefinidas que são discutíveis, por exemplo, a eutanásia, que não foi ainda regulamentada. Acho que essa discussão ainda não terminou. No nosso ponto de vista, a alternativa de cuidados paliativos às pessoas que estão em situações difíceis deve ser implementada na nossa sociedade. 

Notícias ao Minuto © Reprodução Oficina do Livro  

Já percebi que o tema da eutanásia é um dos com que concorda…

Nós somos a favor da vida, e não a favor de encarcerar pessoas. Somos a favor de olhar diferente, de uma forma que garanta um maior apoio, compreensão e alternativa às situações desesperadas que levam as pessoas a cometer determinados atos. Todos temos direito a ter uma opinião e a opinião dominante do politicamente correto tem de aceitar que outras pessoas tenham opinião diferente. 

Aceitar que o aborto é uma alternativa de irmos ali tomar um café, não

Sobre o aborto, o que defende?

O aborto é muitas vezes praticado em situações de grande desespero na vida social e pessoal das pessoas. E relativamente a essas pessoas, há sempre uma atitude de compreensão e compaixão que tem de dominar qualquer outra atitude.  Agora, aceitar que o aborto é uma alternativa de irmos ali tomar um café, não. Portanto, não se pode esquecer que está ali uma vida humana. Há muitas circunstâncias em que tem de se sacrificar vidas humanas, mas esse sacrifício da vida humana não deve ser uma opção e liberdade única da mulher. 

Há mulheres que tiveram filhos de pais ausentes, mas há mulheres que tiveram filhos de pais presentes e esta secundarização e desprezar do papel do pai é qualquer coisa… Um embrião ou um feto que se está a criar não é um tumor, é um ser humano. E isto não quer dizer, como dizem aí, que queremos pôr as pessoas na cadeia. Há muita coisa a fazer entre considerar o aborto uma opção sem reservas e o ter acompanhamento e alternativas. 

Mas defende a criminalização?

Essa é uma polémica que me parece ter pouco sentido, porque já muitas vezes se falou sobre isso. O que nós estamos aqui a falar neste livro são temas que gostaríamos que fossem para cima da mesa, e não os outros temas laterais. Já lhe disse que não defendo qualquer tipo de atitude que levasse a pôr a mulheres na cadeia, valha-me Deus. Mas também não defendo o que se passa neste momento. 

O aborto foi referendado. Portanto, o que sugere que se faça?

Nós não somos políticos. Levantamos aqui questões éticas e os políticos que decidam se se justiça ou não mudanças. Eu não entro por aí. Mas eu até tenho a ideia de que a percentagem [do referendo] que aprovou não era vinculativa. Mas o que interessa mesmo é que há valores que têm de ser repensados. 

Um dos coordenadores alega que o papel da mulher enquanto dona de casa é desvalorizado. Concorda? Se sim, pode explicar?

Acho que isso é absolutamente óbvio. Mas não é só no papel como dona de casa, é em geral. Uma das coisas que nos motiva a escrever este livro é que de facto existe uma quantidade enorme de ameaças à família. Eu tenho filhos e netos e vejo o que se passa. Com pais que chegam a casa às 21h00, com a desvalorização do salário das mulheres relativamente ao dos homens… Uma mulher que tem dois ou três filhos, que opte por interromper a sua carreira para ficar em casa com os filhos não tem nenhum tipo de apoio. Há algum tipo de apoio do Estado?

Há um caminho muito grande a percorrer para as pessoas que querem constituir família, apoiando as famílias e em particular as mulheres. Tenho filhos e netos e as tarefas domésticas são repartidas entre os dois, mas tradicionalmente as mulheres têm tido mais esse papel. As mulheres são mais vulneráveis, mas digo o mesmo para os homens que neste momento têm o papel de educar os filhos. Faz algum sentido que as crianças saiam tarde da escola e vão arrastadas para casa onde jantam e vão para a cama? A família não é só um lugar de partilha, e não há escola que possa substituir a família. 

E sobre este tema, felizmente, depois das primeiras vozes horríveis, que não sabia do que estavam a falar, não sabendo o que foi a vida das pessoas que escreveram, começam agora a aparecer pessoas com outros olhos.  

Não se pode pôr em causa a família tradicional, como se isso fosse mau, uma coisa antiquada

Acha que os casais e as famílias homossexuais podem também ser esse ponto de partilha de que falou?

Nós não somos homofóbicos. Somos pelo respeito absoluto por todas as pessoas e pelas suas escolhas. Nós, o Movimento. Agora, pode encontrar lá nos textos, algumas opiniões mais… que fujam um bocadinho. 

Se, efetivamente, numa casa onde haja amor e de educar nessa base uma criança, com certeza que isso é perfeitamente aceitável. Mas não se pode é pôr em causa a família tradicional, como se isso fosse mau, uma coisa antiquada.  

A família idealizada nem sempre se concretiza, mas isso não quer dizer que o seu valor se perca. Quase que é estranho para mim estar a falar disto. No 25 de Abril não passava pela cabeça de ninguém estar a falar deste tema. Portanto, que seja muito claro. Nós defendemos a família dita tradicional, e que é um bem para a sociedade e para as crianças, mas não somos a favor da perseguição ou discriminação de ninguém. 

É mais enriquecedor para a educação das crianças haver a complementaridade pai e mãe e o modelo de família tradicional

Ainda sobre os casais homossexuais, e porque já me disse que não concorda tanto com algumas das ideias expressas no livro, queria perguntar-lhe qual a sua opinião sobre a adoção por casais homossexuais. 

Eu conheço casos de crianças adotadas por casais homossexuais e as coisas correram bem. E o que eu acho que é que, quando alguém tem as condições adequadas para adotar uma criança e essa adoção lhe é concedida, esse alguém adota a criança, ponto. Se essa pessoa depois quiser ter uma relação com alguém do mesmo sexo, ninguém sabe. Mas é fundamental aqui o princípio de que é mais enriquecedor para a educação das crianças haver a complementaridade pai e mãe e o modelo de família tradicional. É esse o modelo que defendemos. 

Agora, não quero de forma nenhuma ofender as pessoas e o amor que se cria noutro tipo de famílias. 

O que entendem por promoção da ideologia de género na escola pública?

Eu tenho um neto pequenino que me veio com uma conversa de ‘Sabes avô, eu quando nasci era menina, mas depois escolhi ser menino, e agora sou menino’. É isto que se anda a dizer às crianças, que a sexualidade é construída pela cabeça das pessoas, e depois cada um escolhe. 

É óbvio que se a pessoa não se sentir bem na sua própria pele, deve ter uma posição diferente e que isso tem de ser respeitado por toda a gente. Se por razões de disforia, societárias, genéticas, ou se por qualquer razão, alguém quer ser diferente, tem de ser respeitado. Há que acolher a diferença e acolher pessoas. E não se acolhe. Experimente, por exemplo, andar de cadeira de rodas na nossa cidade e vai ver se está preparada para a diferença ou não. 

Que resposta defendem para jovens e pessoas no geral que não se identificam com nenhum dos géneros ou com outro? O que deve fazer a comunidade escolar?

Obviamente explicar às crianças que têm de respeitar toda a gente, obviamente respeitar toda a gente e incluir a criança em todas as brincadeiras. Qual é o problema nisso? É assim que os meus filhos educam os filhos deles e é assim que eu educo os meus netos. A questão só existe se nós ativamente quisermos impor o nosso pensamento. Se, por outro lado, ensinarmos as crianças numa cultura de liberdade e respeito pelo outro, isso deve incluir todos. Parece que estou a repetir as palavras do Papa Francisco. 

A figura convidada para apresentar, sim, é político e gerou um grande ruído. Mas essa figura [Passos Coelho] apareceu porque era um dos convidados a escrever

Já me disse que não são políticos e que o foco não são propriamente as leis, mas gostava de lhe perguntar quais consideram que são as leis que estão a diminuir o que chamam família tradicional.

Como não sou político, não vou agora fingir que sou. Mas o que está dito pelo movimento e sobretudo pelos autores, deve suscitar reflexões. Como lhe disse, li capítulos que adorei e fizeram-me ver linhas de pensamento que ainda não tinha considerado, outros de que não gostei tanto e outros que tinham afirmações nas quais não me revejo. O livro pretende influenciar as linhas de pensamento e, se influenciar políticos, muito bem. Mas não temos uma proposta política. 

Agora, como é óbvio, a figura convidada para apresentar, sim, é político e gerou um grande ruído. Mas essa figura [Passos Coelho] apareceu porque era um dos convidados a escrever, que depois não teve tempo e se propôs a fazer a apresentação. Achámos que tinha piada e que era ótimo para a divulgação do livro. Mas não vamos aqui amanhã começar um novo partido ou grupo político. 

Notícias ao Minuto Bagão Félix, Victor Gil e Pedro Afonso© Álvaro Isidoro / Global Imagens  

O Movimento Acção Ética disse que vai apresentar um programa alternativo para a disciplina de cidadania. Que outros projetos têm na gaveta?

Temos dois, esse e um novo livro, esse sobre a ética no serviço público. Será do mesmo género, com vários contributos. Sobre a disciplina de cidadania, vamos apresentar a nossa visão, e até acredito que coincida em muito com o programa atual. 

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