"Os seus famosos três Ds - democracia, descolonização, desenvolvimento - foram realizados. O seu S - socialismo - foi progressivamente abandonado", afirmou Enzo Traverso, no Congresso Internacional "50 anos do 25 de Abril", na Reitoria da Universidade de Lisboa.
O historiador italiano, professor na Universidade Cornell, nos Estados Unidos da América, interveio no primeiro dia deste congresso promovido pela Comissão Comemorativa dos 50 Anos do 25 de Abril, que termina no domingo.
Num painel intitulado "Ecos de uma era revolucionária", Enzo Traverso apontou o 25 de Novembro de 1975 como "um importante ponto de viragem na revolução portuguesa, como o 'Termidor' da revolução portuguesa, uma viragem política que parou o processo revolucionário mas, ao mesmo tempo, preservou muitas das suas conquistas".
"Uma releitura exata da revolução portuguesa devia tentar compreender os suas potencialidades, olhando não só para as realizações e consequências, mas também para os as suas esperanças, os seus objetivos e os seus valores", advogou.
Sobre a atual conjuntura política em Portugal, o historiador observou que a tentativa contrarrevolucionária de restaurar o antigo regime falhada em março de 1975 "talvez tenha voltado, 50 anos mais tarde", com o crescimento do Chega, que descreveu como "um partido de extrema-direita xenófoba nacionalista neoliberal".
Ao longo de mais de uma hora de intervenção, feita em inglês, Enzo Traverso contestou a ideia de que "a vocação autêntica da revolução portuguesa" era tornar Portugal uma democracia liberal e uma sociedade de mercado integrada no espaço comunitário europeu.
Na sua opinião, esta visão é contrariada pelos resultados da investigação histórica, choca com as recordações individuais de quem fez e viveu o 25 de Abril e com a memória coletiva.
O historiador recorreu também às suas próprias memórias, enquanto jovem estudante "já muito politizado" do ensino secundário em Itália, realçando o impacto que a Revolução dos Cravos teve na Europa: "Por dois anos, Portugal foi o coração palpitante da esquerda europeia, não apenas o coração político, mas emocional. Os nossos relógios estavam acertados pela hora de Lisboa".
"Alguns meses depois do golpe de Pinochet no Chile, as fotografias de soldados com cravos nas espingardas eram absolutamente espantosas. Para os nossos pais, contudo, elas imediatamente despertavam outras recordações: a libertação de Paris em 1944 ou a de Milão em 1945", referiu.
Para Enzo Traverso, "o fim do salazarismo - o mais antigo fascismo continental, com o de Franco em Espanha - colocou a revolução na sequência das resistências antifascistas, como a libertação no fim da II Guerra Mundial".
Ao mesmo tempo, o 25 de Abril "quase naturalmente apareceu um novo passo da onda de revolta aberta pelo maio de 68 em Paris", prosseguiu, notando como "as caras, as roupas, os penteados eram quase os mesmos, mas em Lisboa havia mais fraternidade", com civis e militares do mesmo lado.
"A revolução portuguesa significou a junção da revolução anticolonial em África, em Angola, Moçambique e Guiné-Bissau com uma revolução contra o capitalismo na Europa. Não tínhamos dúvidas, desde o início, de que estávamos perante uma revolução socialista. Parece-me que a historiografia mais rigorosa não questiona esta afirmação", acrescentou.
Enzo Traverso, que se tem dedicado à história das ideias políticas do século XX, enquadrou o 25 de Abril no contexto do "horizonte de expectativas que tinha sido estabelecido pela Revolução de Outubro".
No seu entender, "isto foi imediatamente claro quando no 1.º de Maio de 1974 trabalhadores, camponeses, soldados e marinheiros correram juntos pelas ruas de Lisboa: os espíritos de Outubro pareciam acordar".
De acordo com o historiador, "a dimensão socialista da revolução portuguesa era óbvia" na mobilização popular que conduziu a "ocupação de terras, reforma agrária, ocupação de fábricas, nacionalização de empresas", nos "símbolos e palavras que cobriram os muros e invadiram as ruas durante as manifestações", na "revolução cultural no setor da arte, cinema, música".
"[A dimensão socialista] foi finalmente inscrita na Constituição de 1976. Assim, a pertença da revolução portuguesa à sequência histórica de revoluções socialistas do século XX não foi uma ilusão dos seus atores. O socialismo não era uma fantasia, era parte da realidade das coisas", sustentou.
Enzo Traverso invocou, por outro lado, conversas tidas na altura entre os norte-americanos Henry Kissinger, e Frank Carlucci, com Mário Soares e entre ambos, sobre "como parar o crescimento do comunismo na Europa, porque temiam os efeitos de contágio dos acontecimentos portugueses".
Segundo o historiador, "por fim, a legitimidade institucional prevaleceu sobre a legitimidade revolucionaria", após um período em que as "formas de poder popular que conflituavam com a Assembleia Constituinte eleita nas primeiras eleições livres" e havia um "poder efetivo detido pelo Movimento das Forças Armadas (MFA)".
"O 25 de Novembro significou um regresso à ordem. A revolução teve de ser canalizada para os trilhos da democracia representativa institucional, que prevaleceu face à democracia revolucionária e ao poder popular. O exército tornou-se novamente a força coerciva do Estado, não a vanguarda armada de um movimento revolucionário", disse.
"A revolução portuguesa ganhou, mas as suas esperanças socialistas foram derrotadas", resumiu.
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