A comissão parlamentar de inquérito (CPI) ao caso das gémeas, tratadas em 2020 com um medicamento de quatro milhões de euros, começou na segunda-feira com o depoimento do ex-secretário de Estado Adjunto e da Saúde, António Lacerda Sales, que foi constituído arguido no processo.
Apesar de um pedido de adiamento da audiência, Lacerda Sales foi o primeiro a ser ouvido no Parlamento e, numa declaração inicial, deu conta de que o relatório da Inspeção-Geral das Atividades em Saúde (IGAS) "tem pontas soltas", com "várias contradições" que "colocam em causa as mais variadas conclusões. Considerando que é fundamentado com base em meros indícios e suposições", garantiu não poder "aceitar as conclusões" do documento.
Reiterou ainda que "não houve favorecimento destas crianças" e que "ninguém passou à frente de ninguém, pois não havia sequer lista de espera", salientando que "a administração dos medicamentos é sempre em função do critério clínico".
Por outro lado, Lacerda Sales recusou responder se deu alguma indicação para a marcação da primeira consulta das gémeas - não remetendo "responsabilidades para ninguém" - e disse não ter recebido nenhum ofício de alguém hierarquicamente superior. "No meu gabinete não entrou nenhum ofício vindo do primeiro-ministro, do Presidente da República ou da ministra, nem de ninguém que pudesse hierarquicamente estar acima de mim", afirmou.
Nesse sentido, considerou que "o relatório do IGAS mais parece uma tentativa de responder à pressão mediática" e realçou não estar "disponível para servir de bode expiatório num processo político e mediático a qualquer custo".
A seguir... o "silêncio". Lacerda Sales rejeitou responder às questões da CPI
Por fim, o ex-governante decidiu usar o seu "estatuto de arguido" que lhe confere "o direito de manter o silêncio" para não se autoincriminar.
"Estou proibido de fazer qualquer declaração sobre factos. Vou manter-me em silêncio em todas as questões", asseverou Lacerda Sales, recordando que decorre um inquérito do Ministério Público que se encontra em segredo de justiça.
Ainda assim, durante a ronda de intervenções dos deputados, o ex-secretário de Estado Adjunto e da Saúde deixou 'escapar' algumas declarações, frisando que "nunca falou" com o Presidente da República, Marcelo Rebelo de Sousa, o primeiro-ministro, na altura António Costa, e a ex-ministra da Saúde, Marta Temido.
Além disso, explicou que o acesso ao medicamento Zolgensma, com um custo de dois milhões de euros por pessoa, administrado às gémeas "é da responsabilidade do hospital" e não da tutela.
Pelo meio foi invocando o seu "direito ao silêncio" aquando de diversas questões colocadas pelos deputados, mas ressalvou que não tinha forma de se lembrar de "algo que aconteceu há quatro anos sem documentação".
Quem ainda vai ser ouvido na CPI?
A mãe das crianças, Daniela Martins, deve ser ouvida já na sexta-feira, "em princípio por videoconferência". Em relação ao pai, não está agendada qualquer audição, uma vez que o Parlamento ainda não teve resposta, referiu o presidente da Comissão Parlamentar, o deputado Rui Paulo Sousa, do Chega, em declarações à Lusa.
Constituída por 17 deputados, a comissão terá quatro meses para concluir o seu trabalho.
Na reunião de 4 de junho, a comissão definiu que as audições deverão acontecer pelo menos duas vezes por semana, aprovando os pedidos de depoimento do Presidente da República e do seu filho Nuno Rebelo de Sousa, além do chefe da Casa Civil da Presidência da República, Fernando Frutuoso de Melo, e da assessora do chefe de Estado para os assuntos sociais, Maria João Ruela. No caso do Presidente da República, segundo o regime jurídico dos inquéritos parlamentares, poderá depor por escrito.
Além de chamar os pais das gémeas, para começarem a ser ouvidos na sexta-feira, a comissão ainda aprovou, entre outras, as audições da jornalista Sandra Felgueiras, da ex-ministra da Justiça Catarina Sarmento e Castro, da ex-secretária de Estado das Comunidades Portuguesas Berta Nunes e da ex-presidente do Conselho de Administração do Centro Hospitalar Universitário Lisboa Norte e atual ministra da Saúde, Ana Paula Martins.
Numa fase inicial, a comissão comprometeu-se em ouvir Lacerda Sales, os pais das gémeas (primeiro o pai e depois a mãe), o advogado da família, a presidente do Instituto dos Registos e Notariado, Filomena Rosa, Catarina Sarmento e Castro e Berta Nunes, por causa do processo de naturalização das crianças.
Recorde o caso
Em causa está o tratamento hospitalar de duas crianças gémeas residentes no Brasil que adquiriram nacionalidade portuguesa e receberam no Hospital de Santa Maria (Lisboa) o medicamento Zolgensma. Com um custo de dois milhões de euros por pessoa, este fármaco tem como objetivo controlar a propagação da atrofia muscular espinal, uma doença neurodegenerativa.
O caso foi divulgado pela TVI, em novembro passado, e está ainda a ser investigado pela Procuradoria-Geral da República e a IGAS concluiu que o acesso à consulta de neuropediatria destas crianças foi ilegal.
Também uma auditoria interna do Hospital Santa Maria concluiu que a marcação de uma primeira consulta hospitalar pela Secretaria de Estado da Saúde foi a única exceção ao cumprimento das regras neste caso.
Leia Também: "Bode expiatório" e "arguido". O que disse Lacerda Sales sobre as gémeas