"Vivo sem Netflix, não sem água. Governo tem de intervir perante lobbies"

O recém-eleito eurodeputado Hélder Sousa Silva sublinhou a urgência necessária em colocar o tema da água em cima da mesa europeia, destacando que das "lutas mais fratricidas que o planeta recorda" está relacionada com este bem essencial. Apontando algumas soluções, Sousa Silva ressalva ainda que, por cá, o Executivo deve ter "mão forte" e não ceder a grupos de pressão.

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© European Union / Octavian Carare

Teresa Banha
21/06/2024 09:25 ‧ 21/06/2024 por Teresa Banha

País

Bruxelas

O Comité das Regiões Europeu fez um apelo na quinta-feira rumo à existência de um Pacto Azul ambicioso, durante um debate sobre o desenvolvimento de uma gestão sustentável da água para o futuro dos municípios e das regiões, no qual dois pareceres foram adotados.

O tema foi discutido no segundo dia da 161.ª sessão plenária do comité, numa discussão que contou com a intervenção do recém-eleito eurodeputado Hélder Sousa Silva.

Em Bruxelas, o Notícias ao Minuto falou com o responsável, eleito pela Aliança Democrática, que confidenciou que foram os agricultores de Mafra, onde era o presidente de Câmara até às eleições europeias, que lhe deram o alerta que 'moveu' mudanças na região.

"Comecei a ter o alerta dos agricultores, que me diziam que já não conseguiam ir buscar água a menos de 150 ou 200 metros. E a qualidade da água que vão buscar a esta profundidade não é a mesma que vinha a 20 metros - já são águas salobras, para o nível médio das águas do mar e já existe mistura entre água salgada e doce", detalhou.

Sousa Silva sublinhou que Portugal tem vindo a sofrer uma escassez de água "brutal", principalmente no setor da agricultura, e que este é um tema de que pouco se tem falado, ganhando alguma relevância apenas nos últimos anos. "Aumentou dez vezes mais a profundidade de disponibilidade de água nos lençóis freáticos", reforçou. Os fatores que levaram a esta situação prendem-se não só com a agricultura intensiva e utilização deste nível em várias regiões, como também com a escassez de chuva, "que não tem permitido renovar esses mesmos lençóis". Referindo que o problema é transversal a vários países a nível europeu, Sousa Silva deu o exemplo do sul de Espanha e Andaluzia, onde a produção de azeite caiu e cujas consequências têm "um impacto pernicioso naquilo que é o rendimento e economia de um país e região e particularmente do setor primário":

"Por outro lado, a questão da água potável, ligada à questão da disponibilidade global de água. Se não existir água nos lençóis, não é fácil produzir água em Portugal - e essa também vem, essencialmente, das barragens e da forma que tem sido de a reter e captar", referiu, lembrando as restrições impostas no Algarve, e entretanto suspensas.

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Lusa | 15:10 - 14/06/2024

"Mas como foi dito, só temos água para um ano, o que é pouco para garantir toda a hotelaria e agricultura do Algarve", alertou. Tendo em conta que a tendência desta problemática será a de 'subir' em direção ao norte, Sousa Silva defendeu que é necessário diversificar as fontes de abastecimento de água, umas das quais pode ser a dessanilização. "Portugal tem uma grande vantagem: o seu posicionamento estratégico junto ao Oceano Atlântico", reconheceu, acrescentando: "É necessário pôr a questão da água na ordem do dia político para que a nível local e europeu nós defendamos o Pacto Azul - que é o pacto para o estudo, manutenção e fornecimento de água em toda a Europa. E por isso hoje pedi que no próximo mandato, principalmente o mandato das três instituições - Parlamento, Comissão e Conselho -, se possa prioritizar politicamente a questão da água, coisa que não foi feita até à data na Europa".

Por onde podem passar as soluções?

É por isso necessário trabalhar "em avanço" por forma a não stressar hidricamente os lençóis freáticos, podendo as soluções passar pelo aproveitamento da água da chuva ou daquela já existente em barragens. Neste âmbito, também a modernização e digitalização das redes de água existentes é um fator importante, por forma a evitar perdas, dada a antiguidade das redes, que resulta no desperdício de água. "Em muitos municípios 30% a 50% da água que entra no sistema é desperdiçada por roturas em todo o sistema", afirmou.

Também o tratamento das águas pluviais e a reutilização da água tratada pode ser um caminho, dado que "principalmente para regas e fins não de utilização humana, essa água devidamente tratada podia ser reutilizada".

Posso viver sem energia elétrica ou telemóvel, sem a Netflix... mas eu não posso viver muitos dias sem água, que é mesmo um bem essencial à vida

Questionado sobre se o racionamento de água, como já está a ser feito em alguns países que atravessam situações de seca, é uma hipótese a colocar em cima da mesa em Portugal, Sousa Silva respondeu afirmativamente, acrescentando que também o aumento do custo da água pode ser pensado. "Uma reflexão que deve ser feita é a de que a água, eventualmente, sendo um bem essencial, provavelmente está demasiado barata. Porque se a água fosse ligeiramente mais cara, era dado um outro valor à água. E quando nós não temos é que damos o verdadeiro valor. Falem com as populações do Algarve ou de outras populações que não têm água, porque dá-se o preço que for pedido por um litro de água quando ele não existe", reforçou, apontando: "Posso viver sem energia elétrica ou telemóvel, sem a Netflix... mas eu não posso viver muitos dias sem água, que é mesmo um bem essencial à vida".

Quanto ao futuro, o eurodeputado eleito há quase duas semanas afirmou que antevia "sérias dificuldades". "Não queria conceber nunca que o meu país tivesse um fenómeno de desertificação - não por migrações, como tem existido até aqui -, mas por ausência de condições por ocupação do planeta terra em determinadas partes do planeta por ausência de água, um pouco como existe no deserto", asseverou.

Em termos agrícolas, Sousa Silva apontou ainda que é necessário também olhar para as produções intensivas, e ser "claramente pensadas": "Concebo inclusivamente que o Governo tenha intervenção e mão forte relativamente à agricultura, ponderando tecnicamente e com recurso à universidade e aquilo que é mais adequado para os territórios em função do stress hídrico que atualmente já existe. Algo que não pode acontecer é uma luta por recurso escasso - 'eu tenho água, venço, tu não tens água, morres. Das lutas mais fratricidas de que o planeta se recorda têm sido sempre as lutas pela falta de água. Já não é luta pelo território, é luta pela sobrevivência", articulou, dando vigor, mais uma vez, à necessidade de agir antecipadamente: "O Governo tem de intervir mesmo que existam lobbies, grupos de pressão, que queiram implantar determinadas culturas em zonas que hoje não as podem receber".

E o futuro na Europa?

De Mafra para Bruxelas, o ex-presidente de câmara falou ainda sobre o que espera dos próximos cinco anos no Parlamento Europeu, revelando que espera continuar a defender aquilo que são "os justos interesses do poder local", seja este relacionado com autarquias, freguesias ou governos regionais. "Da experiência que adquiri ao longo destes 17 anos de autarca, vejo claramente que todos os autarcas podem fazer a diferença pela proximidade que têm entre o eleitor e o eleito. Espero trazer esse conhecimento que adquiri para o Parlamento Europeu, tentando orientar a produção legislativa no sentido de alguma simplificação - sem que esta represente nenhum abastardamento da mesma", apontou, explicando que ao nível autárquico a burocracia tem sido um dos travões em avanços.

Sousa Silva apontou também que, tendo em conta que em várias frentes a maioria da legislação em Portugal 'vem da Europa', tem na mira o combate por um próximo pacote do quadro comunitário que permita "não só o alargamento, nem o reequipamento em termos de segurança e defesa", mas também um pacote que "permita manter fundos de coesão em países como é o caso de Portugal, que ainda têm um grande caminho a percorrer em relação à assimetria que manifestam relativamente a alguns países do centro e norte da Europa".

"Defenderei sempre e em primeira linha Portugal e os portugueses, mas também como europeísta convicto que sou, gostava de continuar a ver uma Europa una, segura e economicamente desenvolvida", garantiu, fazendo sobressair a discrepância que se tem vindo a acentuar quanto aos Estados Unidos e China.

Leia Também: Direções regionais de agricultura reponderadas. "Será decisão do Governo"

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