"A gestão de propriedade já não se faz com cada um a tratar do que é seu"

Carla Mendonça, antiga governante e coordenadora do Balcão Único do Prédio (BUPi), explicou ao Notícias ao Minuto a importância de registar os terrenos, sobretudo numa altura de combate aos incêndios.

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Márcia Guímaro Rodrigues
26/08/2024 08:11 ‧ 26/08/2024 por Márcia Guímaro Rodrigues

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O projeto do Balcão Único do Prédio (BUPi) surgiu na sequência dos grandes incêndios de 2017 com o objetivo de "conhecer o território português". Começou como um projeto piloto em apenas dez municípios e, em 2019, foi aprovada a lei que determinou a sua expansão a todo o território nacional.

 

Atualmente, foi já identificado 30% do território, num total de mais de dois milhões de propriedades. O concelho de Manteigas, na Guarda, é o que possui a maior área identificada (63%), seguindo-se Alfândega da Fé (62%) e Castanheira de Pêra (60%). Já em relação ao número de propriedades, o concelho de Amares lidera com 59% identificadas. Segue-se Penalva do Castelo (50%) e Vimioso (50%).

O BUPi, segundo explicou a coordenadora do programa Carla Mendonça ao Notícias ao Minuto, permite aos cidadãos identificarem as suas propriedades de forma "simples" e "gratuita" e é, em termos de transformação da paisagem, o projeto "em curso mais estrutural que o país tem".

No combate aos incêndios, por exemplo, permite ajudar o Estado a saber onde deve intervir na transformação da paisagem, de forma a criar "territórios mais resilientes e capazes de enfrentar" as adversidades. 

Além de ser importante para o país, refere a antiga Chefe do Gabinete da Secretaria de Estado da Conservação da Natureza, das Florestas e Ordenamento do Território, o BUPi traz também diversos benefícios para o cidadão, que passa assim a "poder assegurar e proteger os seus direitos de propriedade".

Em Portugal existe um desconhecimento generalizado no que se refere à localização da propriedade

O que é o projeto do Balcão Único do Prédio (BUPi) e em que consiste?

Em Portugal existe um desconhecimento generalizado no que se refere à localização da propriedade, aos seus limites e a quem são os seus proprietários, sobretudo nas regiões Norte e Centro do país. Naturalmente isto, até no âmbito dos incêndios, tem um impacto na capacidade que o Estado tem em intervir na propriedade. O BUPi surge com o objetivo de colmatar este desconhecimento e de responder à necessidade de termos uma plataforma que permite aos proprietários dos terrenos identificarem as suas propriedades de forma simples e inovadora, e ainda beneficiar de um regime de gratuitidade. 

É uma plataforma eletrónica, física e virtual, que permite aos cidadãos ou ao balcão de um município, com apoio presencial de técnico habilitado ou através da nossa plataforma, localizar os seus terrenos rústicos - aqueles que têm uma utilização agrícola, florestal, silvícola - e proceder à sua identificação, estabelecendo os limites e registando os seus terrenos na Conservatória do Registo Predial de forma totalmente gratuita e sem qualquer aumento de impostos. O BUPi permite ao cidadão dispor de uma plataforma que não dispunha para poder fazer esta identificação de propriedade e garantir aqueles que são os seus direitos.

Além do BUPi, é possível registar os terrenos de outra forma?

Não. A plataforma procede à identificação da propriedade e é aí que ficam registadas as coordenadas da propriedade, no âmbito do mapeamento que temos feito no BUPi. Depois temos a aplicação BUPi, que é uma aplicação móvel que criámos e que permite aos cidadãos deslocar-se ao terreno e levantar as coordenadas da sua propriedade, gerando um ficheiro que pode ser descarregado na plataforma BUPi com a identificação da propriedade. É uma aplicação totalmente gratuita que está disponível nas lojas tanto para Android como para iOS.

A aplicação tem tido adesão?

Percebemos que o cidadão tem respondido muito bem e esta aplicação, são já mais de 150 mil os downloads feitos, razão pela qual fizemos agora uma melhoria nas suas funcionalidades e na forma como torna mais fácil e ágil a utilização do cidadão. 

O cidadão pode também identificar a sua propriedade por desenho nos mapas que constam na plataforma BUPi

E que novidades traz a atualização da aplicação?

A aplicação BUPi serve para o cidadão de forma muito simples poder deslocar-se ao terreno e identificar as coordenadas da propriedade e entregar esse ficheiro com a identificação do território. Mas isto não é obrigatório, o cidadão pode também identificar a sua propriedade por desenho nos mapas que constam na plataforma BUPi. Este processo agiliza quando, às vezes, existem áres mais densificadas em que o proprietário tem dificuldade em identificar diretamente no mapa. Agora tem a possibilidade de descarregar a aplicação totalmente gratuita e muito simples de utilizar.

Esta aplicação será, talvez, muito importante para os nossos emigrantes, que agora se deslocam às suas terras, porque permite-lhes fazer um levantamento das coordenadas. Podem aproveitar as suas deslocações para fazer esse levantamento e depois, de forma muito simples, no seu computador, fazer a identificação de forma online através da plataforma BUPi, em bupi.gov.pt. O processo é enviado para um técnico habilitado que depois auxilia o cidadão, também de forma online, na validação desta identificação ou no pedido de complementação de dados.

Neste momento, já foram identificados mais de 2,3 milhões de propriedades com o contributo de mais de 340 mil cidadãos

É possível ter uma ideia de quantos terrenos estão por registar? 

O projeto BUPi aplica-se em 172 municípios do território nacional, que são aqueles que não têm Cadrasto Predial. Quando o BUPi iniciou a sua atividade e a sua expansão, eram mais de 8,6 milhões as propriedades por identificar. Neste momento, já foram identificados mais de 2,3 milhões de propriedades com o contributo de mais de 340 mil cidadãos. É um projeto que estamos a construir com o apoio do cidadão, principalmente, que é titular de 92% da propriedade rústica.

Estamos ainda num processo de incrementar esta identificação e mobilizar o cidadão para identificar a sua propriedade e beneficiar deste regime de gratuitidade que o projeto tem até ao final de 2025. 

Porque é que a gratuitidade do BUPi vai só até ao final de 2025?

Este é um projeto que é pensado e dirigido para os cidadãos e a gratuitidade está fixada até 2025 até porque o BUPi é um projeto que tem pressa. Tem pressa porque o BUPi não pode desperdiçar o conhecimento dos mais velhos, daqueles que conhecem a localização e os limites da propriedade e sabem quem são os seus donos. Às vezes não há esta noção da importância de ainda termos pessoas no território que o conhecem.

Deixo um apelo ao legado da memória. O BUPi vive muito deste legado para poder concretizar os seus objetivos. Se calhar os filhos já não sabem onde está a propriedade, mas os seus pais sabem. Deixo um apelo à participação de todos, para aproveitarem a gratuitidade e garantirem os seus direitos para que possamos reunir esta informação.

Há pouco referiu que as zonas mais flagrantes eram a Norte e Centro...

As regiões Norte e Centro do país nunca tiveram uma base cadastral que identificasse a sua propriedade e os seus limites. Nestes 172 municípios - 153 do continente e os restantes das regiões autónomas dos Açores e da Madeira - ainda não existe identificação da propriedade e é nestes municípios que o BUPi está a trabalhar com os técnicos habilitados. Nos restantes 136 municípios, que dispõem de cadastro, os cidadãos já não têm de fazer esta identificação, mas beneficiam do projeto BUPi na componente do registo gratuito da propriedade. 

O projeto tem dois componentes: a identificação, que se aplica em 172 municípios, e o registo da propriedade nas conservatórias de registo predial, que é alargado a todos os municípios e todos os cidadãos do território nacional dispõem do regime simplificado e gratuito. 

Porque é que é necessário registar os terrenos?

O benefício para o cidadão passa logo pela possibilidade de poder assegurar e proteger os seus direitos de propriedade. É muito frequente o entendimento de que basta o proprietário ter a propriedade inscrita nas Finanças, mas essa inscrição serve apenas para efeitos fiscais. Só tem como objetivo tributar o património e não produz qualquer tipo de efeito.

Para que os proprietários possam assegurar a proteção e a garantia dos seus direitos - e também das gerações que lhe sucedem - devem proceder ao registo da propriedade que está inscrita nas Finanças na Conservatória do Registo Predial. Só desta forma é que ficam verdadeiramente assegurados os direitos dos proprietários. Com o BUPi, podem beneficiar deste regime de gratuitidade e destes processos simplificados que permitem registar a propriedade até final de 2025 sem qualquer aumento de impostos. 

Outro dos benefícios do cidadão é, desde logo, a valorização da sua propriedade. Este registo acaba por colocar a propriedade no mercado imobiliário, reunindo as condições para que se possa vender, arrendar ou emparcelar. Há também o ponto de vista da comunidade. Proteger a nossa propriedade é também proteger a dos vizinhos. Ajudar a planear e a gerir o território é contribuir para salvaguardar aquilo que é a propriedade de todos.

A propriedade florestal é detida em 92% por privados

Falou também em proteger a propriedade de todos. Em termos práticos, em que medida é que o registo de terrenos é importante para o combate a incêndios?

A propriedade florestal é detida em 92% por privados e o BUPi é uma fonte de informação que permite o combate e a prevenção de incêndios. O conhecimento da localização das propriedades e dos seus donos acaba por ser um elemento estrutural para a implementação de programas que permitem transformar a paisagem, como é, por exemplo, o Programa de Transformação da Paisagem (PTP), que se destina a aumentar a resiliência e a capacidade de adaptação dos territórios e a diminuir a vulnerabilidade da floresta. Para que o Estado possa intervir no domínio da transformação da paisagem e para que possa utilizar dos recursos que dispõe, precisa de conhecer quem são os proprietários e qual é o limite da propriedade. E é precisamente aqui que o BUPi tem um papel relevante, que é de obter este conhecimento para podermos mudar e contribuir para um planeamento mais estruturado com políticas públicas de gestão e de ordenamento do território que respondem a estes desafios e que podem contribuir para a prevenção de incêndios e para o combate às alterações climáticas. 

O contributo do BUPi é no âmbito do conhecimento que se adquire para intervir no território e podermos ter territórios mais resilientes e capazes de enfrentar estas adversidades que vão sucedendo cada vez mais até por causa das alterações climáticas. 

Este registo permite a Guarda Nacional Republicana (GNR) identificar e notificar os proprietários em caso de falta de limpeza de terrenos?

Não é esse o objetivo, neste momento, do BUPi. A GNR não dispõe da informação para poder notificar os proprietários à limpeza de terrenos porque isso só poderá suceder quando tiver a sua propriedade identificada. Até porque nós já não vamos resolver o problema da transformação da paisagem exigindo aos proprietários que procedam à limpeza dos terrenos. A vida mudou e as pessoas estão cada vez mais longe dos seus territórios. O que podemos fazer é ter políticas públicas que fazem essa prevenção. Esta informação não vai servir para [as autoridades] notificarem. Vai servir para o Estado a utilizar no sentido de aplicar as políticas públicas e os planos de intervenção territorial.

A gestão da propriedade na questão do combate aos incêndios já não se faz com cada um a tratar do que é seu

E que políticas públicas podem ser capazes de fazer a prevenção?

Temos neste momento em curso projetos muito importantes, como é o caso das Áreas Integradas de Gestão da Paisagem (AIGP), que vão permitir ao Estado aplicar investimento público e, juntamente com os proprietários, proceder a uma gestão conjunta da propriedade. A gestão da propriedade na questão do combate aos incêndios já não se faz com cada um a tratar do que é seu. As pessoas afastaram-se dos territórios, têm outro tipo de atividades, estão longe das atividades rurais e florestais e, portanto, só através de uma gestão conjunta  e com a participação do Estado é que isto se transforma.

O Estado muitas vezes quer intervir na paisagem, mas as autarquias locais não podem ter qualquer intervenção no domínio do terreno rústico porque ele não lhe pertence. Portanto, temos de conhecer quem são os proprietários para com eles podermos trabalhar estes programas de transformação.

O BUPi vem procurar colmatar um desconhecimento que acabou por ficar mais evidente na sequência dos incêndios de 2017

O BUPi foi criado após os grandes incêndios de 2017. As consequências do incêndio poderiam ter sido diferentes se já existisse um projeto semelhante?

Diria que sim. O BUPi vem procurar colmatar um desconhecimento que acabou por ficar mais evidente na sequência dos incêndios de 2017. Nessa altura, ficou evidente a importância e a necessidade urgente de termos este conhecimento [do território] para podermos intervir. É precisamente na sequência dos incêndios de 2017 que surge o BUPi para podermos colmatar o desconhecimento generalizado e conseguirmos de uma vez por todas dispor de um cadastro multifuncional da propriedade rústica que permita assegurar aquilo que se impõe: intervir na propriedade. Ninguém pode gerir aquilo que não conhece e é isso que o BUPi vem trazer. Se este conhecimento existisse, se calhar as condições teriam sido outras.

Não tenho dúvida nenhuma que, sem este conhecimento, há outros projetos estruturais que não se vão cumprir. Há projetos e políticas públicas que fazem valorização territorial que, sem este conhecimento de base, não vão ser possíveis implementar. E é por isso que este projeto é tão estrutural para o país. Até diria que é talvez o projeto em curso mais estrutural que o país tem porque do seu cumprimento dependem a execução de um conjunto de projetos.

Que projetos são esses?

Há um que considero absolutamente essencial, que é designado Programa de Transformação da Paisagem. Há também um conjunto de medidas que considero muito relevante que são as AIGP, que são projetos que estão a ser também coordenados pelos municípios e que decidem - naquilo que designamos de territórios vulneráveis e estão mais sujeitos às questões dos incêndios - que o Estado naquela área de intervenção, juntamente com os proprietários e com as entidades que foram especificamente criadas para fazer a gestão da propriedade, vai criar ali um grupo de intervenções que vão permitir aquelas zonas mais resilientes.

O Programa de Transformação da Paisagem e as Áreas de Integração de Gestão da Paisagem são projetos públicos que estão em curso, financiados também pelo  Plano de Recuperação e Resiliência (PRR), e que são absolutamente estruturais e do qual depende absolutamente a identificação da propriedade. Uma das iniciativas que nós temos na equipa e a que damos muito relevo é precisamente intensificar e ajudar a identificar os proprietários nestas Áreas de Integração de Gestão da Paisagem. É um bom exemplo de um projeto público que só se concretiza quando conseguimos conhecer quem são os proprietários daquela área e quais são os limites das suas propriedades.

Que outras medidas considera que podiam ser implementadas para evitar os incêndios florestais?

Neste momento temos, através da Agência para a Gestão Integrada de Fogos Rurais (AGIF), todas as entidades com competências de gestão territorial envolvidas e a participar de forma colaborativa. Isso, por si só, é um factor que vai trazer muitos benefícios. A transformação da paisagem, o que estamos a fazer através do BUPi e de outras entidades públicas, é uma coisa que também requer tempo. Não podemos de um momento para o outro estalar os dedos e querer que as coisas mudem. Mas eu penso que na questão do território é já visível alguma da mudança que está a acontecer. Muita coisa tem vindo a ser feita e o BUPi tem sido um ponto onde estas entidades com intervenção em matérias de gestão territorial estão a colaborar. O BUPi, além de estar a recolher a informação sobre os proprietários e os limites da propriedade, está também a integrar toda a informação que as entidades públicas, seja de administração central, administração local ou do setor empresarial do Estado, têm do território. Esta informação encontrava-se localizada nos sistemas de cada entidade para que as utilizassem no âmbito das suas próprias competências. Agora estamos a reunir tudo numa plataforma única, inclusive o que é o domínio público do Estado, e, neste aspecto, o BUPi contribuirá também para o combate aos incêndios e permitirá também ser uma base para sustentar o conhecimento, para a implementação de políticas públicas e políticas económicas que valorizam o território. É um projeto que está em curso e tem tudo para ser a transformação que o país também precisa.

Leia Também: Arderam mais de 4.930 hectares em oito dias de fogo na Madeira

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