Em "Graça Lobo Dois Pontos", dirigido por Frederico Corado em 2006, a atriz não hesitou em assumir as facetas "muito contraditórias" que reconhecia em si mesma. Acima de tudo, porém, definiu-se como "uma mulher que gosta muito de teatro, que é atriz, que é mãe, que é vaidosa, que é simples e que é estudiosa".
A atriz gostava do 'glamour', como afirmou em várias entrevistas, entendia que as pessoas deviam vestir-se para as estreias de teatro "com a melhor roupa e as melhores joias, [...] porque as estreias são uma festa". Gostava "das cidades com tudo à porta, livros, restaurantes, bares, viagens", gostava de "viajar, das outras pessoas", gostava da amizade, mas era também uma solitária, como confessou nesse documentário inspirado por uma das derradeiras criações da atriz, "Aqui Estou Eu Vírgula Graça Lobo", que esteve em cartaz no Teatro S. Luiz, em Lisboa, no verão de 2003.
Graça Lobo representou James Joyce, Jean Giraudoux, Georges Feydeau, Luigi Pirandello, Samuel Beckett, Jean Genet, Witold Gombrowicz, Edawrd Albee, Thomas Bernhard, Harold Pinter, os grandes textos que fizeram o teatro contemporâneo. Tem "Hedda Gabler", de Henrik Ibsen, como uma das suas mais celebradas atuações. Estreou-se na Casa da Comédia, em fevereiro de 1967, nas "Noites Brancas", de Dostoievsky, encenadas por Norberto Barroca, quando ainda era aluna do Conservatório.
Fez parte do Teatro Estúdio de Lisboa, de Luzia Maria Martins, e do Teatro Experimental de Cascais, de Carlos Avilez, outras companhias pioneiras do teatro independente, desafiando os anos da ditadura. Em 1979, fundou a Companhia de Teatro de Lisboa, com Carlos Quevedo, pondo em cena Harold Pinter, Noel Coward, Alan Ayckbourn, Miguel Esteves Cardoso. E James Joyce, sempre Joyce, ousando ser Molly Bloom sozinha em palco.
Levou igualmente para cena as "Cartas Portuguesas atríbuídas a Mariana Alcoforado", espetáculo que dominou a temporada de 1979-1980 do Teatro Nacional D. Maria II e do São Luiz, e que se impôs em teatros estrangeiros, de Liubliana, Tóquio e São Paulo, a São Francisco e Nova Iorque, onde esteve no histórico La Mamma Experimental.
Ficou conhecida pela voz. E também pelas pernas de que ela mesma gostava de falar, assim como pela franja que se abria sobre os olhos, e que acabou por se tornar numa espécie de imagem de marca.
Gostava de afirmar as suas contradições, que sabia serem tão impossíveis de compreender por outros como por si mesma. Gostava também de afirmar a irreverência, que assumia como um traço de caráter que -- dizia -- lhe advinha do facto de ser mulher. "Os homens quando são irreverentes tornam-se ordinários", disse no documentário de Frederico Corado e em entrevistas a jornais e canais de televisão.
Filha de um coronel de infantaria, deputado na legislatura de 1935, lugar a que renunciaria dois anos depois, Maria da Graça Monteiro Lobo da Costa nasceu em 12 de abril de 1939.
Os dados não são coerentes sobre o local de nascimento. Há quem diga que nasceu na Penha de França, em Lisboa, e quem aponte o palácio do pai em Vialonga, a poucos quilómetros da capital. De qualquer modo, foi sobretudo nessa casa senhorial que passou férias e fins de semana, durante a infância a e adolescência.
Teve a educação do colégio britânico St. Julian's e do Liceu Francês Charles Lepierre. Entre os 15 e os 18 anos, viveu num convento irlandês, em Dublin, para onde o pai a mandara. Haveria de confessar o gosto por essa escola, pela liberdade e novo mundo que encontrara.
A irreverência corria-lhe nas veias, admitia a mulher que, aos 19 anos, foi assistente de bordo de uma companhia aérea de Bogotá, na Colômbia, depois de ter saído de Portugal, viajado por Nova Iorque e rumado à América Central, para conhecer outros povos. "Tenho a mania da liberdade", usava dizer. Mais tarde, viria a ser hospedeira de terra da TAP.
No regresso a Portugal, optou pelo curso de teatro do Conservatório. Obteve uma bolsa da Fundação Calouste Gulbenkian para a East Fifteen Acting School, no Essex, no Reino Unido.
Na Casa da Comédia, seu primeiro palco, fez "À procura da verdade: Homenagem a Pirandello", depois da estreia em "Noites Brancas", e da passagem pela Companhia de Comediantes de Lisboa, para entrar em "António Marinheiro (O Édipo de Alfama)", de Bernardo Santareno.
No Teatro Estúdio de Lisboa, onde chegou em 1968, fez "A louca de Chaillot", de Jean Giraudoux, e "Noite de Verão, de Ted Williams. Com Carlos Avilez, no Teatro Experimental de Cascais, entre 1971 e 1972, entrou nas peças "Ivone, princesa de Borgonha", de Witold Gombrowicz, "Camões 72 -- Auto de el-rei Seleuco + Anfitriões" e "As criadas", de Jean Genet.
Em 1974, com a empresa Vasco Morgado fez parte do elenco de "A pedra no sapato", de Georges Feydeau. Em 1976, representou "Tudo no jardim" com o grupo Teatro de Todos os Tempos -- Companhia Vicentina, um ano antes de, com o produtor Sérgio de Azevedo, entrar em "As quatro gémeas", do dramaturgo argentino Copi, pelo encenador Victor Garcia.
A Companhia de Teatro de Lisboa, que fundou em 1979 com Carlos Quevedo, manteve-se ativa até 1993. Aqui pôs em cena peças como "Velhos Tempos", de Harold Pinter, que levou ao palco do D. Maria, com Curado Ribeiro e Catarina Avelar, "Diário de uma criada de quarto", de Octave Mirbeau, e "Molly Bloom", a partir de Joyce, com a voz de Ruy de Carvalho, música de Constança Capdeville, cenários e cartaz de Júlio Pomar.
De Miguel Esteves Cardoso, que escreveu para a companhia, interpretou "Em carne cor-de-rosa encarnada", numa encenação de Carlos Quevedo, e "Os homens", que a própria atriz dirigiu.
A colaboração com o então diretor do semanário O Independente estender-se-ia à imprensa, do jornal à revista Kapa. Em 2001, editou o livro "Sinceramente", sequência de breves histórias de ficção, que também podem ser reais e que podiam, todos eles, ser monólogos para Graça Lobo pôr em cena.
Na década de 1990, participou no 'talk-show' da SIC "A noite da má língua", apresentado por Júlia Pinheiro, onde ao longo dos anos se cruzariam comentadores como Miguel Esteves Cardoso, Luís Coimbra e Manuel Serrão, a atriz Rita Blanco, os escritores Rui Zink e Alberto Pimenta, e os jornalistas Helena Sanches Osório, Constança Cunha e Sá e Fernando Alves. Para Graça Lobo, que sempre preferiu os palcos ao pequeno ecrã, foi uma breve residência em televisão.
Ao longo dos anos, levou poesia às prisões. Podia dizer Mário Cesariny, que também gravou em disco com o poeta, ou textos de Beckett. Em 2003, quanto tinha "Aqui Estou Eu Vírgula Graça Lobo" em cena no S. Luiz, numa entrevista à revista de domingo do Correio da Manhã, disse que o fazia "para ajudar os reclusos, para os entreter, para os despertar para a poesia". Mas era algo que lhes custava. "Era uma coisa que me tocava muito. Só que eu tenho a mania da liberdade", explicou.
Em 2010, fez a leitura encenada de "Sangue Jovem", de Peter Asmussen, para os Artistas Unidos.
Em 2015, fez a sua derradeira entrada em cena, com "As Três (Velhas) Irmãs", no Teatro Nacional D. Maria II. A peça era uma revisitação do clássico de Tchékhov, com Mariema e Paula Só, um espetáculo-homenagem encenado por Martim Pedroso, que conjugava as memórias das atrizes com as memórias das personagens que interpretavam - Olga, Macha e Irina -, num jogo entre ficção do texto e "ficção da realidade" e autorrepresentação.
Na altura, Graça Lobo ainda vivia na Casa do Artista, uma etapa da "tournée pelos lares" que andava a fazer, como explicou numa entrevista de 2020, publicada pelo Diário de Notícias, conduzida pelo ator Gonçalo Ferreira de Almeida, intérprete de diversos textos encenados pela atriz.
"Ainda tenho sentido de humor, se não tivesse sentido de humor não tinha ultrapassado o que já ultrapassei", explicou Graça Lobo nessa entrevista, em que fala do cancro a que sobreviveu, das sequelas que ficaram, da perda de dinheiro, e do percurso de vida através do teatro.
"Se não tivesse sentido de humor, isto não teria graça nenhuma. Tive de vender a minha casa, recebo uma reforma de 600 euros e tenho de viver em lares. Nesta tournée pelos lares que ando a fazer, vejo esta miséria, esta pobreza, gente tão pobre que fico mesmo aflita."
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