"Muitos psicopatas são fascinantes, sedutores e ocupam lugares de poder"

O psiquiatra João Carlos Melo acaba de lançar mais um livro. Em 'Lugares Escondidos da Mente', o autor faz emergir a sua experiência clínica sobre o inconsciente e o poder deste na nossa vida, nos nossos comportamentos, pensamentos e vontades.

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Natacha Nunes Costa
18/12/2024 08:31 ‧ há 2 horas por Natacha Nunes Costa

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O médico psiquiatra João Carlos Melo acaba de lançar o seu quarto livro. Desta vez, as páginas são dedicadas aos 'Lugares Escondidos da Mente -  Do mais sombrio ao mais luminoso da natureza humana', ou seja, ao poder que o inconsciente tem nos nossos comportamentos, pensamentos e vontades.

 

Em entrevista ao Notícias ao Minuto, o especialista, que é também psicoterapeuta, grupanalista, e exerce funções no Hospital Fernando Fonseca (Amadora-Sintra), falou da forma como o inconsciente pode condicionar a nossa vida, desta "força que nos comanda" e que é invisível à primeira vista e das "máscaras de sanidade" que muitas vezes escondem psicopatas "sedutores", que ocupam por vezes lugares de poder.

Porém, também falou do "lado luminoso" do ser humano. Da força do amor, do poder da "boa autoestima" e da importância da "aceitação da criança" na construção de um adulto saudável.

Os psicopatas (...) provocam sofrimento, humilhação e destruição com a única intenção de provocar sofrimento ou de atingir os objetivos a que se propõem. E fazem tudo isso sem sentimentos de culpa nem compaixão nem remorsos

Em 'Lugares Escondidos da Mente' defende que há "uma força que nos comanda" e que é muita vez invisível à primeira vista: o inconsciente. De que forma é que esta voz tão subtil molda os nossos comportamentos, pensamentos e vontades?

Do ponto de vista emocional, os conteúdos inconscientes correspondem a factos ou experiências que provocariam angústia e sofrimento caso se tornassem conscientes. O recalcamento é uma das forças que mantêm esses conteúdos longe da consciência. Acontece que estes exercem pressão para superarem essa força e acabam por manifestar-se de forma distorcida ou disfarçada. 

Vou dar um exemplo: um jovem estudante, bom aluno, precisa apenas de passar no último exame para acabar o curso. E, em vez de estudar como sempre fez, vai gastando o tempo com tarefas inúteis, vai adiando o estudo e acaba por chumbar no exame. Não sabe porque é que fez este boicote a si próprio, mas houve uma motivação (inconsciente) para o fazer: o medo de assumir as responsabilidades que a vida profissional lhe ia exigir.

Outro exemplo: costuma dizer-se que "o criminoso volta sempre ao local do crime". Porque é que o faz, sabendo que pode ser apanhado e preso? Ele não quer que isso aconteça, mas houve uma motivação inconsciente para o fazer: a chamada "necessidade inconsciente de castigo", como forma de aliviar a culpa (que pode também não ser consciente).

O livro está dividido em quatro partes. Uma delas é o "lado negro das pessoas". Este capítulo diz respeito a psicopatas ou às 'nossas' "ilhas do mal"? Do que fala nele?

Nesse capítulo faço referência ao pior que existe na natureza humana: a maldade, a crueldade, o sadismo, o gozo em humilhar e destruir os outros, o bullying, os abusos sexuais, os genocídios e todos os outros comportamentos destrutivos levados a cabo por algumas pessoas. 

Como podemos distinguir estes distúrbios da maldade dita 'normal'? É que no seu livro diz que muitos psicopatas "vivem entre nós" e não são considerados doentes… Como é que são diagnosticados?

Os psicopatas caracterizam-se pela ausência de empatia, consideração e respeito pelos outros; provocam nestes sofrimento, humilhação e destruição com a única intenção de provocar sofrimento ou de atingir os objetivos a que se propõem. E fazem tudo isso sem sentimentos de culpa nem compaixão nem remorsos. Isso não é uma doença nem essas pessoas reconhecem a sua perturbação, pelo que não procuram ajuda. 

Temos é de identificá-los e não alimentarmos relações com essas pessoas - o que não é fácil porque muitos são fascinantes e sedutores e ocupam lugares de poder. 

Tendemos a esconder sobretudo as nossas fantasias agressivas, os ciúmes e a inveja, mas também certas fantasias de grandiosidade

Já outro capítulo fala sobre as "zonas cinzentas". Pela sua experiência profissional, que máscaras de sanidade colocamos para esconder os nossos 'segredos'? E o que mais tendemos a esconder?

Tendemos a esconder sobretudo as nossas fantasias agressivas, os ciúmes e a inveja, mas também certas fantasias de grandiosidade. Por outro lado, também não é fácil para algumas pessoas terem manifestações físicas de afeto e amor.

Porque considera que o masoquismo e o sadismo são duas fases da mesma moeda?

Porque as pessoas predominantemente masoquistas têm também características sádicas. E as predominantemente sádicas também têm características masoquistas. Por exemplo: uma mulher vítima de maus-tratos e agressões por parte de um marido alcoólico, que tem geralmente uma atitude sofrida e mártir, pode ter momentos de poder sobre esse marido ("no fundo, ele sem mim não é nada, é um pobre diabo, se eu o deixasse ele ia andar para aí aos caídos"). Em muitos casos, ele chega a ajoelhar-se e a implorar que ela não o deixe, para, por vezes, no momento seguinte a intimidar, agredir e humilhar. 

Perturbação Borderline? Creio que a precariedade dos vínculos sociais, associada à competitividade e à diminuição da cooperação e solidariedade, contribuem para a emergência de mais casos

Já no quarto e último capítulo fala do "lado luminoso". Da bondade, da gratidão, do amor. De que forma o amor transforma o nosso cérebro, as nossas atitudes e os nossos comportamentos?

Precisamos de amor desde que nascemos até morrermos. Amarmos e sermos amados cria harmonia, bem estar, tranquilidade, equilibra o sistema imunitário e dá mais anos de vida. Além de que é o que dá sentido à própria vida. Faz-nos ficar mais empáticos, generosos e compassivos. 

Em 'Lugares Escondidos da Mente' fala ainda de borderline, uma perturbação sobre a qual também já escreveu um livro e que 'traduz' no seu blogue como as "pessoas que não existem"? Acha que existem cada vez mais pessoas a sofrer desta perturbação ? O que pode contribuir para isso?

Os estudos epidemiológicos mostram que a Perturbação Borderline é mais prevalente agora do que há algumas décadas. Mas, em associação com a perceção clínica, também evidenciam que se identificam mais casos porque são mais diagnosticados. Isto acontece porque, apesar do estigma que ainda existe, os clínicos estão mais atentos ao fenómeno. 

Creio que a precariedade dos vínculos sociais, associada à competitividade e à diminuição da cooperação e solidariedade, contribuem para a emergência de mais casos. Mas não nos podemos esquecer que os fatores genéticos têm um peso importante (que pode chegar aos 50 %) no aparecimento destes casos. 

Uma outra forma de melhorar a autoestima é cultivar aquele que é, a par do bom caráter e da solidariedade, um dos valores humanos mais importantes: a humildade

Também já escreveu sobre o narcisismo. Há alguma forma de transformar este transtorno de personalidade em algo positivo? Ou de o eliminar?

Não é possível eliminar o narcisismo, porque ele faz parte da natureza humana. Além disso, a sociedade tem contribuído para este problema quando valoriza mais o ter do que o ser, e quando premeia mais a imagem do que o conteúdo e os valores humanos. 

Para melhorar o funcionamento narcísico e torná-lo mais saudável é necessário melhorar a autoestima das pessoas e isto começa desde que as pessoas nascem. Uma boa autoestima vai-se construindo logo desde o início com amor, reconhecimento, elogios e aceitação da criança tal como ela é e não pelos desempenhos sociais que consegue. 

Uma outra forma de melhorar a autoestima é cultivar aquele que é, a par do bom caráter e da solidariedade, um dos valores humanos mais importantes: a humildade.

As pessoas já nascem com estes transtornos - como o narcisismo e a psicopatia - ou adquirem-nos com o passar dos anos? Porquê?

Naquilo que somos há um componente hereditário (o que herdamos dos nossos pais), um componente genético (a forma como os genes que recebemos se organizam, tendo também em conta as mutações genéticas que ocorrem espontaneamente) e um componente ambiental (tudo o que recebemos e aquilo com que interagimos) desde o útero e ao longo de toda a vida, com particular relevo na infância, que é a altura da vida em que o cérebro é mais recetivo e modificável pelas relações interpessoais. 

Diria que no caso da psicopatia há um forte componente genético e no narcisismo o componente ambiental provavelmente é mais forte. 

Leia Também: Degradação dos solos afeta saúde mental e bem-estar, alerta movimento

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