"Os amplos poderes de alteração do uso de solos previstos no decreto-lei são ilegítimos, porque lesam gravemente o ordenamento do território. Para além disso, constituem previsível -- aliás, inevitável -- lastro de corrupção", escreveram aos deputados o presidente e vice-presidente da associação, Paulo de Morais e João Paulo Batalha.
A carta foi enviada no âmbito da apreciação parlamentar, na sexta-feira, do diploma que altera o Regime Jurídico dos Instrumentos de Gestão Territorial (RJIGT), publicado em 30 de dezembro, que permite reclassificar solos rústicos em urbanos, para a construção de habitação, mediante a alteração simplificada dos instrumentos de ordenamento do território.
"Se vier a entrar em vigor, esta legislação virá provocar alterações abruptas nos planos diretores municipais e violar a coerência, previsibilidade e segurança jurídica do ordenamento territorial, fazendo perigar um dos princípios basilares da democracia local", refere-se na missiva, a que a Lusa teve acesso.
Para a Frente Cívica, a "permitir-se este mecanismo, e as enormes margens de discricionariedade de decisão que consagra, iremos nos próximos tempos assistir a uma corrida a terrenos rústicos por parte dos promotores imobiliários próximos do poder autárquico", que "irão adquirir solos rústicos a preço de saldo" e, de seguida, "transformá-los em solo urbano para construírem o que bem entenderem".
"Estas operações urbanísticas valorizarão os solos em seis ou sete vezes. Margens desta dimensão (600% ou mais) só se obtêm no tráfico de droga de alto nível e, agora, no urbanismo", alertou o movimento de cidadãos.
"Em ano de eleições autárquicas, os 'patos-bravos' do imobiliário ganharão certamente milhões em manobras de valorização administrativa de terrenos, antes até de construírem uma única casa nos solos reclassificados. Inevitavelmente, uma pequena parte dos seus lucros irá financiar os seus cúmplices, os autarcas e os partidos que se candidatam nas eleições deste ano", acrescentou.
No entanto, para a associação que promove a denúncia dos riscos da corrupção, se a legislação entrar em vigor no final do mês, 30 dias após a sua publicação, "irá ainda permitir que algumas operações urbanísticas ilegais, eventualmente autorizadas nos últimos anos, sejam agora legalizadas, ao abrigo do princípio de aplicação da legislação mais favorável".
"Desta forma, o decreto-lei 117/2024 não só incentivará novos assaltos ao território, mas funcionará também como amnistia de crimes já perpetrados", consideraram Paulo de Morais e João Paulo Batalha.
Por outro lado, na carta salienta-se que os terrenos que beneficiarem dessas valorizações serão, em 30%, comercializados livremente, ao valor de mercado e os "restantes 70% terão de ser utilizados para habitação pública ou, alternativamente, em habitação de valor moderado", que "pode atingir valores até 125% da mediana de preço de venda para o concelho de localização, ou seja, pode ser superior ao próprio valor de mercado".
Legislação que designa "como moderado um valor superior ao valor de mercado é, só por isso, enganadora" e "que permite ganhos milionários aos especuladores do urbanismo e aos autarcas que aceitam ser seus cúmplices leva a práticas corruptivas", apontou a associação.
"O diploma que é agora levado à apreciação da Assembleia da República é por tudo isto inaceitável e irreformável. Não deve ser 'melhorado' com alterações cosméticas que se limitariam a dar nova roupagem ao mesmo assalto aos bens públicos e ao território nacional", referiu a Frente Cívica, defendendo que o decreto-lei "deve ser pura e simplesmente revogado".
Para Paulo de Morais e João Paulo Batalha, o diploma que altera o RJIGT "é uma ignóbil trafulhice" e, por isso, apelaram ao parlamento para livrar o país dela, "em vez de consagrar para a História este crime legislado".
O BE, PCP, Livre e PAN pediram a apreciação parlamentar na sequência das manifestações públicas contra o diploma, nomeadamente de organizações de defesa do ambiente, academia e órgãos profissionais, com vista à revogação do decreto-lei, mas o PS admitiu apenas alterações ao documento.
Leia Também: Organizações ambientalistas pedem revogação da alteração à lei dos solos