"Maioria das grávidas nem se inscreve no centro de saúde. Não confiam"

A enfermeira Andreia Amaral, responsável pelo SOS Mamã, é a convidada desta segunda-feira do Vozes ao Minuto.

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© SOS Mamã

Natacha Nunes Costa
03/02/2025 09:22 ‧ há 3 horas por Natacha Nunes Costa

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Andreia Amaral

Andreia Amaral é enfermeira e fundadora da SOS Mamã, uma empresa certificada pela Entidade Reguladora da Saúde (ERS) que oferece serviços de enfermagem ao domicílio e em clínica, assim como formações, na área do pré e pós parto.

 

Depois do sucesso do projeto  -  que já ajudou mais de 5 mil pais - e das redes sociais, onde é seguida por milhares de pessoas, Andreia decidiu lançar um livro que ajude os pais a "descomplicar a vida com um filho", porque defende que "não tem de ser difícil".

Em entrevista ao Notícias ao Minuto, a especialista falou não só deste 'guia' como dos principais desafios com que os pais de hoje em dia têm de lidar. Do aleitamento materno ao sono do bebé, da alimentação ao "bicho papão" dos picos febris, foram vários os assuntos abordados e os esclarecimentos feitos.

Não faltaram também críticas ao estado do Serviço Nacional de Saúde (SNS) e a lembrança de que "a prioridade devia estar na saúde e esse investimento deve ser feito desde a gravidez".

Fazia-me imensa confusão às vezes ter 200 miúdos numa tarde na urgência e mais de 80% não serem situações de urgência

Lançou recentemente o livro 'SOS Mamã', homónimo do projeto que já ajudou mais de 5 mil famílias e cuja conta de Instagram conta com mais de 55,6 mil seguidores. Na sua opinião é mesmo preciso (e possível) ajudar a descomplicar a vida com um filho?

Sem dúvida! Há mais informação e desinformação. É muito fácil agora ir para a internet, para as redes sociais falar sem fundamento e isso é uma das minhas grandes preocupações no SOS Mamã [empresa de formações de pré e pós parto]. Tenho procurado sempre de forma prática, descomplicada, leve, ser uma mais valia para muitas famílias na procura de um bocadinho mais de evidência. E, por isso mesmo, é importante descomplicar a linguagem. O que eu dou por certo, muitos não sabem. Nunca tiveram um filho nos braços, por isso, é mais do que normal que não dominem certas terminologias.

A sua experiência como enfermeira em serviços de pediatria e especialista em pré e pós-parto ajudou-a a escrever este livro?

Sim! Como eu estava em urgência de pediatria e em cuidados de internamento deu para perceber como é que podia realmente fazer alguma diferença e isso foi sempre uma preocupação minha. Como é que posso fazer diferente e de que forma posso chegar às pessoas para elas não virem aqui [hospitais]. Fazia-me imensa confusão às vezes ter 200 miúdos numa tarde na urgência e mais de 80% não serem situações de urgência. Não é pelo trabalho, é por estas crianças estarem ali, a inundar um serviço de urgência, a porem em causa crianças realmente doentes, que precisam de uma assistência mais avançada. E em casa, na creche, na instituição escolar era tudo mais simples porque poderiam ser feitas certas coisas banais. Porque é que uma pessoa fica tão nervosa com um pico febril ou porque é que uma queda é logo motivo de uma grande ansiedade nas famílias? E é a essas dúvidas que temos [Andreia e a equipa da sua empresa] tentado dar resposta.

Um casal grávido não se preocupa, por exemplo, com as quedas e picos febris. É muito raro

Quais são as principais dificuldades que os pais sentem?

As principais dificuldades diferem da fase de vida da criança e do próprio casal. Um casal grávido não se preocupa, por exemplo, com as quedas e picos febris. É muito raro, apesar de termos alguns casais que procuram os nossos cursos de primeiros socorros. Nessa altura, as pessoas estão focadas com as preparações do quarto, como é que vai ser o parto. E, agora, em grande parte, com a amamentação.

Depois, com a criança cá fora e de ter passado a primeira fase, começam a preocupar-se muito com a vivência do dia a dia. Com a criança instável, com a respiração que não parece tão normal, com a febre que é um bicho papão, com o medo da convulsão febril, da queda e se cai o que é que eu vou fazer. As pessoas, habitualmente, preocupam-se com o que estão a viver agora e pensam pouco no que pode acontecer e na prevenção, por isso é que eu tento fazer um trabalho tão preventivo. Quando acontecem as coisas, os pais ficam sem saber o que podem fazer, porque nunca se prepararam antes.

Como é o caso das manobras de desengasgamento?

Sim, tem-se falado muito também porque tem havido cada vez mais acidentes em instituições escolares. E não são só situações de engasgamento. Houve várias situações de morte súbita e outras, infelizmente, de sufocamento. E com estas notícias, os pais entram em pânico. Será que a instituição onde eu tenho o meu filho tem formação nesta área? É porque ela não é obrigatória e falo nisso no final do livro. Não está definido na formação base de um educador de infância fazer formação em saúde infantil, fazer qualquer formação de primeiros socorros. Isso vai acontecer se o formador tiver consciência e responsabilidade e quiser gastar dinheiro extra ou se a instituição onde vai trabalhar tiver preocupação com esta matéria. Por isso é que acaba por ser um tema um bocadinho complexo.

Então as escolas deviam dar essas formações?

Sem dúvida! Acho que há cada vez mais instituições preocupadas porque há cada vez mais pais a fazer pressão. Tenho insistido nisso e a meter um bocadinho de medo nas pessoas, para os pais falarem das situações. Eu deixo muito mais tempo o meu filho na instituição por dia do que passo com ele. Isso é inevitável. Por isso, as pessoas que cuidam dele têm de estar preparadas para o que é que possa acontecer. Portanto, esta é uma exigência que os pais devem ter. As instituições têm de ter a responsabilidade de dar formações aos seus trabalhadores e acho que a procura tem sido maior por isso isso, porque se veem confrontadas com estas exigências dos pais.

Os pais andam às voltas e trocam de pediatra sete, oito vezes no primeiro ano de vida. Para além do gasto monetário, é a saúde dos pais que está em causa

Então como é que os pais podem relativizar e desmitificar a vida com um filho para que esta não seja tão "difícil" com tantos desafios associados e dúvidas?

As pessoas não lerem tanto [risos]. É a minha opinião. As pessoas querem beber informação de muitos sítios e às vezes isto acaba por ser muito confuso para as suas cabeças. Depois, tentarem munir-se de informação fidedigna, mas não só.

Cada bebé é um bebé. Não podemos ser 'by the book'. Temos de tentar relativizar a coisa porque cada caso é um caso. Não podemos querer que o nosso filho seja igual aos outros. Temos de procurar comparar menos os bebés, as crianças. Termos ao nosso lado profissionais que nos apoiam. A escolha do pediatra, a escolha da equipa que nos ajuda devem ir ao encontro dos nossos ideais. Se defendo, como mãe, que quero muito amamentar é importante que tenha um pediatra que vai na mesma onda de raciocínio. Eu tenho de ter alguém que respeite os meus ideais, que me informe, mas que me deixe decidir. Os pais andam às voltas e trocam de pediatra sete, oito vezes no primeiro ano de vida. Para além do gasto monetário, é a saúde dos pais que está em causa.

Nunca estamos tranquilos e esse é um dos pontos que eu acho importante. E depois tentarem procurar, fazer formação. Há coisas que são mesmo importantes e podem tranquilizar a família. Falar do sono do bebé, falar da sua segurança, do desmame, como é que eu posso fazer um desmame mais respeitador do meu filho? Há áreas em que é muito importante aprender alguma coisa e não tentar só fazer o que 'diz que disse'.

Como já disse, a amamentação é um dos temas em que as famílias têm mais dúvidas e procuram mais informação. Porquê?

As pessoas devem ter bem noção das suas decisões e tomá-las com consciência, munir-se de informação, de pessoas à sua volta que a apoiem e não a julguem porque vai haver sempre alguém que vai olhar de lado, mas temos de ter consciência que estamos a fazer o melhor para os nossos bebés, que somos as melhores mães, os melhores pais.

Ninguém consegue pagar a ninguém para fazer publicidade ao leite materno

Pois, ainda há muitas pessoas - inclusive profissionais de saúde - a colocar entraves e prazos à amamentação...

Fico muito triste porque tenho notado que os hospitais privados estão cada vez mais nessa onda. É por desinformação, porque as pessoas não se informam. Não fazem formação e é muito mais fácil e simples meter o biberão na boca de um bebé e dizer a uma mãe: 'dê-lhe leite artificial a ver se ele dorme a noite toda.' E tantas vezes acontece precisamente o contrário. Aumentam as cólicas, aumenta o desconforto. A criança não dorme bem e eu já quebrei a defesa do bebé ao dar-lhe leite artificial, ou seja, é desinformação.

Ainda há muitos profissionais que não se mentalizam que não dominam tudo e que cada profissional está numa determinada área e eu preciso de encadear. Se eu sei que não é a minha área de atuação - e nós debate-mo-nos sobre isto com muitos pediatras no dia a dia – e se não domino o aleitamento materno mas tenho uma mãe que quer, tenho de defender o aleitamento materno e encaminhar. Não posso ter o rei na barriga e dizer eu sou o pediatra maior do mundo e a mãe vai seguir as minhas orientações e não a vou enviar para mais ninguém. É assim que se quebram sonhos, destrói-se a saúde mental da mulher que gostava, simplesmente, de dar de mamar e isso pode ser simples de resolver. Pode ser feito numa única consulta, como já nos aconteceu tantas vezes. E não é justo, enquanto profissionais, não andarmos na mesma lógica. O nosso foco tem de ser a criança e a família. O resto é baixar narizes empinados e perceber que não dominamos tudo [risos].

Esta é muito a minha forma de pensar e notamos que, com a formação que fazemos a profissionais de saúde na defesa do aleitamento materno e noutras áreas estamos a conseguir chegar a outros profissionais para que, pelo menos, no seu dia a dia possam divulgar a mensagem do leite materno. Ninguém consegue pagar a ninguém para fazer publicidade ao leite materno. É muito fácil ter uma empresa de leite artificial e pagar mil euros a alguém que vai para as redes sociais falar sobre aquilo. Essa é a nossa luta também. Não pode ser. Enquanto sociedade temos de lutar por isto também.

No livro 'SOS Mamã  - Descomplicar a vida com um filho' fala também do sono do bebé. Há alguma fórmula para isto correr bem ou cada família tem de descobrir o que é melhor para si?

Não há uma fórmula, mas há várias dicas e várias pressões que podem dificultar este processo. No início de vida, por exemplo, entre os 0 e os três, quatro meses, nós não conseguimos ter rotinas de sono. E nós temos de nos mentalizar que o recém-nascido saiu da barriga da mãe, onde estava permanentemente colado à mãe. Portanto, há aqui um estímulo materno muito grande. Eu não posso – nascido o bebé – quebrar este estímulo de um momento para o outro e há muitas mães – por palpites alheios – querem a todo o custo pôr os bebés no berço, ter o bebé longe do seu corpo, porque o bebé não se deve habituar a um colo, a um colo que já vem habituado da gravidez. O bebé precisa de contacto físico e se nós tivéssemos cada vez mais mães - que eu acredito que isto vai acontecer com a divulgação da palavra - a ter o bebé colado a si nos primeiros meses de vida, mais fácil seria regular bebés e que o bebé tivesse estímulos mais simples e que se conseguisse até adormecer melhor.

Não podemos estar à espera que um bebé de 5/6 meses que janta à mesa com os pais com um tablet a ver bonecos, com estímulos altamente stressantes para o cérebro, adormeça numa hora

E noutras fases?

Noutras fases da vida há estratégias a adaptar com cada família, no dia a dia, para conseguirmos que haja um sono melhor, mas às vezes estamos tão preocupados em afastar bebés de mães, a afastar o bebé do cuidador para ele dormir sozinho, estamos muito preocupados em ter horários fixos para dormir e isso não dá para acontecer nos primeiros quatro meses. Daí em diante é preciso adaptar rotinas.

Por exemplo, não podemos estar à espera que um bebé de 5/6 meses que janta à mesa com os pais com um tablet a ver bonecos, com estímulos altamente stressantes para o cérebro, adormeça numa hora e fique a dormir tranquilo por quatro ou cinco horas seguidas. Há uma série de estímulos que é preciso ir minimizando ao longo do crescimento da criança para também lhe dar tranquilidade. Acho que há aqui um grande caminho pela frente. Não sei se algum dia vamos chegar à perfeição, mas estamos a lutar por isso.

E este ano, as famílias tiveram de lidar com os fechos de algumas urgências obstétricas e pediátricas. Sentiu que isso contribuiu para aumentar a ansiedade entre os pais que acompanha?

Sim! Estavam muito ansiosos e com uma decisão muito fundamentada para a escolha de um hospital privado para parir. Porque é um dos principais, senão o principal, motivos para os pais decidirem por um hospital privado. Na grande maioria dos casos este é o panorama que se vê, sobretudo os pais cujo hospital de referência é um hospital que fecha de x em x tempo e que obriga a que vão para outro. Aqueles pais que são de zonas onde ainda há muitos hospitais para onde ir, a maioria deles ainda vai pensando no Serviço Nacional de Saúde (SNS) ou na melhor escolha para ter um bebé. Agora, os outros não. Não só por este panorama como por todas as mordomias que vão ter num hospital privado.

Este fecho tão frequente das urgências é sempre um motivo de grande preocupação para uma grávida porque não se sabe o dia de amanhã. Até eu enquanto grávida, aquando do meu primeiro filho, fui conhecer a maternidade onde eu ia ter o bebé. Conhecer o sítio onde eu ia estar com o bebé e isso deu-me tranquilidade. Aconselho muito as pessoas a irem mas, agora, vão onde? É muito complexo.

O que acha que é necessário ser feito neste sentido? O que é necessário melhorar no SNS na área da obstetrícia e pediatria?

Aquilo que estamos a lidar é com vários problemas a nível médico e falta de profissionais no SNS e isso não há muito a lutar a não ser o próprio Governo ter de se mentalizar que tem de haver apostas na saúde. A prioridade devia estar na saúde e esse investimento deve ser feito desde a gravidez.

Acho que falham muito os cuidados de saúde primários. Há pouca assistência aos serviços de saúde. A maioria das pessoas nem se inscrevem no centro de saúde enquanto grávidas porque não confiam, porque não conhecem os profissionais de saúde.

Há muito pouco investimento na saúde e o pouco investimento que existe faz com que as pessoas procurem cada vez mais o privado, até porque os seguros, hoje em dia, não estão assim tão caros, praticamente nem é preciso de período de carência e as pessoas afogam-se no privado na esperança que vão ter mais segurança – mental, também – e um melhor acompanhamento. Portanto, há medidas que o Governo deve adaptar e esperamos que não demore muito porque realmente o panorama não está de todo bom.

A partir de um ano de idade, quando dizemos que é altura de comer com o filho à mesa, queremos que eles comam brócolos, feijão verde e a criança não vai comer e não é por não gostar de feijão verde é porque nunca viu

Na alimentação das crianças também há aspetos a melhorar, como fala muitas vezes nas redes sociais. O que é necessário fazer na promoção da saúde neste sentido?

A partir do momento em que nós temos nutricionistas nas empresas que fornecem muitas das instituições escolares e estas colocam na ementa gelatina, que não tem qualquer valor nutricional e que, se não for 0%, está cheia de açúcar e é dado duas, três vezes por semana às crianças a partir de uma determinada idade, já nada me admira.

A formação é fundamental e as instituições deviam ter formação em alimentação, mas também é preciso os pais mentalizarem-se que precisam de agir. De se mexer. Os pais têm de perceberem como é que podem dar alimentos que, supostamente, são difíceis dar aos filhos para que eles os encarem como qualquer outro alimento. A maioria dos pais não consegue dar legumes aos filhos, porque não os deu antes de um ano de idade. E dar seis ou sete legumes triturados na sopa não é a mesma coisa que dar cada legume individual a uma criança. Ela não sabe se gosta do sabor daquele alimento, porque o está a comer como um todo.

A partir de um ano de idade, quando dizemos que é altura de comer com o filho à mesa, queremos que eles comam brócolos, feijão verde e a criança não vai comer e não é por não gostar de feijão verde é porque nunca viu e porque não tem o estímulo da imitação porque os pais também não comem. Isso tudo tem um trabalho gigante por trás. Os pais têm de perceber a importância da alimentação e o impacto na saúde a médio longo prazo.

Por fim, é apaixonada pela sua profissão e defende que é na enfermagem que está "o verdadeiro cuidar, o acompanhamento e o consolo nos momentos mais marcantes das famílias". Acha que isso ainda é possível?

Somos ensinados a ser cuidadores e a estar presentes. Muito daquilo que é o trabalho de enfermagem centra-se no apoiar as famílias, dar informação, dar apoio ao utente, e devíamos ter tempo destinado para isso. Não temos, mas devíamos [risos]. Hoje em dia está tudo demasiado mecanizado, desde registos que são obrigatórios, protocolos, dedicação para dar tudo e mais alguma coisa e não fica tempo, na maioria dos casos, para estar parte que é tão do cuidar. Eu acredito sempre que é possível fazer enfermagem. Mesmo em ambiente de urgência, onde há uma maior ansiedade, uma maior necessidade de trabalhar rápido, é possível dar apoio, dar a mão, tranquilizar uma mãe ou um pai, é possível mostrar segurança, é possível fazer-se de uma forma respeitadora e que não traumatize e isso, para mim, é fazer enfermagem.

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