'Sorte de varas' (prática violenta e proibida) volta à liça nos Açores

O tema voltou a ser falado, este ano, durante o Fórum Mundial da Cultura Taurina, com o secretário regional da Agricultura e Alimentação a sugerir aos aficionados que levem o tema aos deputados regionais. Mais de 2 mil açorianos já assinaram contra.

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Natacha Nunes Costa
12/03/2025 12:56 ‧ há 4 horas por Natacha Nunes Costa

País

Açores

A 'sorte de varas', conhecida nos Açores como 'tourada picada', é uma prática tauromáquica proibida em Portugal há vários anos, por ser considerada extremamente violenta para os touros.

 

No entanto, continua a ser uma 'pedra no sapato' para os amantes das touradas do arquipélago e pode voltar a ser discutida na Assembleia Legislativa da Região Autónoma dos Açores (ALRAA), desafiando (pela terceira vez) a lei nacional.

A celeuma voltou a instalar-se – 15 anos após o projeto de lei ser chumbado apenas por um voto no parlamento açoriano – depois do Fórum Mundial da Cultura Taurina, que se realizou no passado mês de janeiro, em Angra do Heroísmo, na Terceira, ilha onde se centraliza a maior parte da 'afición' açoriana.

Durante o evento, o secretário regional da Agricultura e Alimentação dos Açores, António Ventura, teceu vários comentários polémicos, tal como noticiou, na altura, a agência Lusa.

"Tourada é a melhor escola de cidadania"

O governante terceirense não só disse que a "tourada é a melhor escola de cidadania que conhece" e que "é uma falácia dizer-se que não há bem-estar animal na tourada", como admitiu que a região pode vir mesmo a legalizar a 'sorte de varas', alegando que a arquitetura atual, com oito partidos e sem uma maioria absoluta, "pode ser uma vantagem" para esta voltar a ser legal na região.

"Não vai ser uma tarefa fácil, teremos de fechar os ouvidos e os olhos a muitos ataques, mas nos Açores mandam os açorianos e mandam através do seu parlamento regional, primeiro órgão da nossa soberania […] Vamos enriquecer esta arte [touradas], esta projeção e manter viva esta tradição açoriana. Gostar dos touros e viver a festa com os touros é ser açoriano", afirmou ainda António Ventura, segundo a Lusa, no fórum.

Já ao Notícias ao Minuto, quando contactado para esclarecer estas declarações, o secretário regional garantiu que o que disse aos aficionados foi que "se quiserem que a tourada picada seja novamente discutida têm de levar essa discussão aos grupos parlamentares regionais" - tal como foi feito em 2002 e 2009 -, lembrando que "não cabe ao Governo decidir" sobre o assunto, mas sim à Assembleia Regional.

António Ventura não quis tecer mais comentários sobre o tema, uma vez que, tal como lembrou, as touradas não são da sua alçada, pertencem sim à pasta da Cultura.

Diretora regional da Cultura é "defensora do debate"

Contactada pelo Notícias ao Minuto, a diretora regional da Cultura, Sandra Garcia, não quis comentar as declarações do secretário regional da Agricultura durante o fórum. Porém, admitiu que não é "apologista de tabus" e que, na sua opinião, "a discussão, sobre todos os assuntos e em todos os planos, não deve ser coartada por ninguém".

Sobre as touradas em geral, a responsável realçou que "o importante para a Direção Regional é preservar e promover a cultura, o património cultural e a matriz cultural identitária dos Açores e, por essa via, do país de que fazemos parte, e essa matriz cultural é constituída por muitas matizes e contributos".

Já sobre a possibilidade da 'sorte de varas' voltar a ser discutida no Parlamento açoriano, Sandra Garcia afirmou ser "defensora do debate", salientando que "todos os assuntos" devem ser debatidos, "mesmo, ou sobretudo" os "que possam ser mais polémicos".

"Por maioria de razão ainda o considero mais importante que tais debates sejam protagonizados pelos legítimos representantes parlamentares dos cidadãos, neste caso, dos cidadãos, na Assembleia Legislativa Regional dos Açores", atirou, deixando assim claro que concorda que o tema volte a ser discutido.

Felizes com esta possibilidade estão os aficionados, como confirmou, ao Notícias ao Minuto, o arquiteto José Parreira, antigo presidente da Tertúlia Tauromáquica Terceirense e membro da comissão organizadora do fórum, onde se voltou a desenvolver toda esta controvérsia.

"É um dos três tércios que compõem a corrida e como tal, prática fundamental para o espetáculo. A sua proibição não faz sentido a partir do momento em que o mesmo é permitido", argumentou.

José Parreira tem noção que "uma vez que foi a Assembleia a proibir, só ela poderá repor a prática" e, pelo que sabe, ainda não foram feitos contactos para levar o tema a discussão junto dos parlamentares açorianos. No entanto, não perde a esperança.

Milhares assinam petição e manifesto contra 'sorte de varas'

Entretanto, mal soube dessa possibilidade, um grupo de cidadãos criou uma petição pública contra a 'sorte de varas', que conta com mais de 2 mil assinaturas, e foi também criado um 'Manifesto Contra a Legalização da Sorte de Varas nos Açores, que tem mais de 200 subscritores.

Ao Notícias ao Minuto, o porta-voz do movimento, o antigo deputado regional do PCP, Aníbal Pires, explicou que este "é, sobretudo de alerta e de prevenção, para que os atores políticos avaliem bem do pulsar da sociedade açoriana, ou seja, para que percebam que qualquer tentativa terá uma forte oposição cidadã e que os custos eleitorais serão elevados".

"O manifesto surgiu de forma espontânea e reflete a posição de um alargado e representativo segmento da sociedade açoriana. Os subscritores representam setores sociais, culturais, políticos, económicos e geográficos que representam o sentir da maioria dos açorianos", contou Aníbal Pires, revelando que entre os subscritos estão até aficionados. 

"Este manifesto é exclusivamente contra a legalização da 'sorte de varas' e não contra as 'touradas de praça', ou contra a apropriação popular da 'Festa Brava' que tem nas 'touradas à corda' a sua expressão. Por esta razão, de entre os subscritores se encontram muitos aficionados, mas também muitos indiferentes ao fenómeno tauromáquico e, ainda, muitos outros contra qualquer forma de espetáculos que envolvam touros. É desta abrangência que resulta a ampla representatividade do manifesto", explicou ainda o antigo parlamentar.

Apesar de ter "dúvidas" que o atual quadro parlamentar queira levar o tema a discussão, Aníbal Pires lembra que isso pode acontecer. "É regimentalmente possível que um número de deputados, oriundos de diferentes grupos e representações parlamentares, possam apresentar uma iniciativa à margem das suas 'famílias' partidárias, com os riscos que lhe são inerentes e não me parecem que alguém os queira correr".

Sobre as declarações do Secretário Regional da Agricultura e Alimentação, o ex-deputado acha que governante "excedeu-se, talvez pelo calor do contexto e fez declarações que o governo regional não subscreveu, isto é, aquela poderá ser a opinião de António Ventura e, como tal, deveria tê-la guardado só para si e não ter colocado o ‘seu’ governo numa situação, no mínimo, embaraçosa".

"Foram levianas e configuram um ato desleal ao governo a que pertence e, por essa razão, mereciam um reparo do Presidente do Governo Regional", defendeu, acrescentando que "nem todos os ganadeiros ficaram agradados pelo facto deste assunto ter vindo para a agenda política regional e nacional" e "nem todos os membros do governo têm a mesma posição (individual) do secretário sobre este assunto, mesmo sendo aficionados".

Destino sustentável com 'sorte de varas'? "Não é compaginável"

Para Aníbal Pires, "a larguíssima maioria dos açorianos é contra a legalização da 'sorte de varas'", uma vez que se isso acontecesse a região "ficaria com uma enorme mancha", que a ia afetar até a nível económico.

"Numa altura em que o turismo tem um contributo importante para a formação do PIB regional, estou certo de que o setor turístico sofreria um duro golpe. O destino 'Açores' é oferecido/vendido como ambientalmente sustentável e de equilíbrios entre o homem e a natureza, digamos que até as 'vacas são felizes', a promoção de espetáculos tauromáquicos com 'touradas picadas' não me parecem compagináveis", sublinhou o também professor.

Em caso de dúvidas, Aníbal Pires defende que seja feito um referendo. "Se existe matéria sobre a qual deve ser auscultado o povo açoriano, esta será uma delas. Já tive, inclusive, oportunidade de desafiar o poder regional a referendar o assunto", revelou.

E sobre o resultado do mesmo, Dagmar Weisz Sampaio, Provedora Regional do Animal dos Açores, não hesita: "Pessoalmente estou convicta de que a maioria dos açorianos não tolera os maus-tratos aos animais, encarando esta problemática como uma questão civilizacional".

'Tourada picada' "lesiona gravemente o animal"

Para a responsável desta "entidade privada de utilidade pública, independente e com a missão de zelar pelo bem estar animal no arquipélago", "é óbvio que a 'sorte de varas' é uma "prática que provoca graves lesões no animal, debilitando-o, incutindo-lhe stress, angústia, medo, sofrimento, enorme desconforto, em suma, trata-se seguramente de uma prática que não garante o bem estar do animal", ou seja, "lesiona gravemente o animal". E é fácil perceber porquê.

"O procedimento da 'sorte de varas' consiste numa das fases do evento tauromáquico, em que um cavaleiro 'picador' utiliza a ponta de uma lança, instrumento pontiagudo com cerca de nove centímetros de comprimento, dividido em duas secções: uma ponta em forma de cone com cerca de três centímetros e outra de aço em forma de corda com cerca de seis centímetros de comprimento", descreveu a provedora ao Notícias ao Minuto, acrescentando que "é precisamente este instrumento contundente que o 'picador' vai introduzir na parte superior do pescoço do animal (touro).

O que cria uma lesão de continuidade (ferida) tão grave de destrói as suas "estruturas musculares e nervosas, lesões essas que acabam por impedir que o touro efetue movimentos ascendentes e descentes da cabeça, provocando também hemorragias".

Afronta à lei nacional?

Se voltar a ser discutida pela Assembleia Regional, é a terceira vez que a 'sorte de varas' desafia a lei nacional.

Em 2002, o Parlamento açoriano aprovou, inclusive, um diploma com esse teor, mas acabou chumbado pelo Tribunal Constitucional.

Em 2009 houve uma nova tentativa de legalizar a prática, depois de um grupo de deputados apresentar na ALRAA um projeto de Decreto Legislativo Regional para a 'tourada picada' ser incluída na realização de espetáculos tauromáquicos da região. A proposta acabou por ser rejeitada, apenas por um voto.

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