Cortejo. 'Proibir as praxes é como proibir o sexo porque há violações'?

O Notícias ao Minuto foi medir o pulso aos nossos estudantes, aos que acabam de chegar e aos que por cá andam há um par de anos, sobre as tão polémicas praxes. Fizemo-lo no cortejo que junta todos os estudantes de todos os cursos do Ensino Superior de Lisboa, na praça do Rossio. Seria ali o culminar de dias e dias a fio de atividades.

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Notícias ao Minuto
02/10/2016 09:03 ‧ 02/10/2016 por Notícias ao Minuto

País

Ensino Superior

Terá o ministro da Ciência e do Ensino Superior razão nas palavras que escreveu na carta dirigida a Universidades, Politécnicos e associações estudantis, na qual se referia à praxe como uma humilhação? Poder-se-á acabar com esta tradição?

Para Inês Pinto, aluna do terceiro ano de Medicina, a praxe é “essencial” à vida académica. Encontramo-la antes do cortejo, no Arco do Cego, local que é já um 'habitué' para os estudantes. Em primeiro lugar, elenca durante uma conversa com o Notícias ao Minuto, a praxe não serve exatamente para integração. É mais do que isso: “A praxe tem um conjunto de princípios e um conjunto de regras e o objetivo essencial é passar determinados valores para ajudar os estudantes a “sobreviver” à universidade e àquilo que é muito essencial, porque nós vimos todos de sítios muito diferentes”, considera, recordando que quando se chega ao Ensino Superior, os alunos se sentem "completamente perdidos".  

Da experiência que esta futura médica tem, “na praxe encontra-se um grupo de pessoas que acaba por puxar por nós, que nos ajudam a aprender a ser mais humildes, a aprender que existe o respeito, que existe uma hierarquia”. Mas mais, aprende-se que, “embora possa não gostar do colega do lado, se ele tiver razão, vou defendê-lo”.

E no fundo, palavras suas, é esse o espírito que é procurado, algo mais que a mera brincadeira, algo que sirva de metáfora para outras situações da vida académica. “Aprender que estamos todos no mesmo patamar, no mesmo nível, e que temos todos de nos ajudar uns aos outros. Tal como na praxe nos ajudamos uns aos outros, e nos ajudamos a safar nas tarefas, nos jogos, por exemplo, na faculdade é exatamente a mesma coisa: se eu tiver apontamentos, vou emprestá-los ao meu colega que não os tem para o ajudar a safar durante o percurso académico”, defende Inês, que faz questão de vincar outro ponto “essencial”. "Só é praxado quem quer e quem não quiser pode sair a qualquer momento”. Contudo, sabe que tudo depende “muito” de faculdade para faculdade.

Compreendendo que há universidades que possam ter tido praxes violentas no passado e pegando no caso do incidente do Meco, desde essa altura “as faculdades procuram ter um regulamento como deve ser, procuram falar com os pais nos dias das matrículas”, constata, sublinhando, no entanto, que na sua universidade não houve qualquer alteração, também porque “nunca houve razão de queixa”. Até porque, conta Inês, já existem restrições: é proibido estar a praxar caloiros a beber bebidas alcoólicas ou a fumar e não há praxes de cariz sexual. E uma coisa é certa,“acima do código de praxe, existe a regra do bom senso”. Se algo vai contra os princípios de alguém, há espaço para recusar fazê-lo. Inês considera, e os amigos de curso subscrevem, que os principais interessados em fazer com que a tradição perdure no tempo são os estudantes e as Comissões de Praxe. Por essa mesma razão, tudo fazem para que corra tudo de feição.

O espírito esse, assegura, é sempre muito bom e de alegria. Mas está longe de ser só isso e há momentos para tudo. Também é preciso ensinar aos caloiros que "há necessidade de haver respeito, que há necessidade de nos ajudarmos uns aos outros, e por isso talvez possamos não estar sempre alegres", elucida-nos a jovem, que vê na praxe uma forma de transmitir tradição e valores:

A praxe não é nenhuma palhaçada, não é para estarmos sempre a rir e a fazer jogos engraçados, também temos de ensinar as partes mais sériasFalamos, por exemplo, "do fado, que é uma parte muito importante para a praxe, falamos da história da praxe, que começou em Coimbra numa altura em que os estudantes que tinham uma vida difícil, tinham de lutar muito, viviam numa pobreza ridícula para aquilo que era a vida de estudante. A luta deles foi sempre para os estudantes terem melhores condições  e isso é uma tradição que acaba por se perpetuar ao longo dos anos, em memória dessa vida estudantil que não era como hoje. Hoje temos algumas facilidades, é verdade, antigamente não era assim”.

O tema das praxes é "ambíguo", houve um "reformular da forma de praxar", mas é o bom senso que tem de reinar

Já no cortejo, onde cada curso desfila pela praça, encontrámos um grupo de aspirantes a músicos. São estudantes da Escola Superior de Música e por isso funcionam de forma “totalmente diferente” da maioria dos cursos, no que diz respeito à praxe. “Não podemos de todo faltar às aulas ou estragar a voz, enfim, uma série de coisas que prejudicam a nossa performance enquanto músicos”, revela-nos o trajante Alexandre Gomes, um dos que comanda um grupo de “bichos, futuros caloiros”.

“A nossa praxe está estabelecida pelo pilar da integração, através de atividades solidárias ou de conhecimento”, prossegue, detalhando que naquele dia tinha sido dia de 'peddy paper' para que os alunos, a maioria vindos de fora da capital, pudessem conhecer a cidade. O plano, naquele final de tarde, seria jantarem todos juntos e ir, depois, ver um concerto na Praça do Comércio da quarta e quinta sinfonia de Bethoven. Que classe!

Quanto à faceta mais polémica do ritual, Alexandre considera que as praxes são “um tema muito ambíguo, um tema que nunca dará para ver os prós e os contras”. Como trajante, explica, “ apoio as praxes que a minha faculdade exerce, porque não são de todo humilhantes, e nós estamos sempre dispostos a ajudá-los”. Seguindo a mesma lógica de pensamento, Alexandre diz ser contra todo o tipo de praxes “em que o caloiro é humilhado ou exaltado de maneira que não seja digna da forma humana”.

À imagem de Inês, a futura médica, também Alexandre fala do facto de ser voluntário aderir ou não à praxe. E todos os estudantes sabem disso, atesta. “Eles sabem de tudo o que vai acontecer, enviamos o programa quinzenal e eles sabem que estão no direito de dizer se está a ser abusivo demais ou não. Nós damos esse direito aos nossos bichos, sei que há outras faculdades que não o fazem e que fazem atos mais violentos, com os quais eu não concordo. Condeno atos de praxe que ponham em causa a dignidade humana. No fundo isto não passa de uma brincadeira, e eles sabem disso e nós sabemos disso”.

Também Alexandre diz ter existido, ao longo dos anos, “um reformular" da forma de realizar as praxes em alguns sítios. "Conheci de perto as praxes em Évora, e acho que houve uma redução significativa de certo tipo de praxes que se fazia”, conta. Em todo o caso, e como tudo na vida: “tem de haver bom senso do que vai além da liberdade, a minha liberdade acaba quando começa a do próximo. Mesmo sendo uma hierarquia, e tem de funcionar como hierarquia como em qualquer local, existe uma coisa que é respeito”, atira Francisco, não deixando de salientar que “quem praxa tem de ter mais cuidado” na forma como o faz, para que se evite todo e qualquer incidente. 

'Proibir a praxe é como proibir o sexo porque há violações'

Quem está plenamente satisfeito com os primeiros dias em Lisboa é Francisco Caldeira, de 18 anos, vindo diretamente de Machico, na Madeira. “Como todos os estudantes que nunca estiveram numa universidade, tinha aquela ideia que vem na comunicação social, mas não é nada disso”, conta, com um misto de timidez e de excitação. “É fantástico o convívio entre todos, as relações que criam, as amizades que se fazem e as pessoas que se conhecem que nos vão ajudar ao longo do nosso curso”, prossegue o rapaz, que veio para o continente estudar guitarra clássica. Diz que já tinha recebido conselhos para aderir à praxe, mas fê-lo, frisa, por vontade própria. E a satisfação não poderia ser maior.

Uns passos adiante, encontramos um trio de alunos do Instituto Superior Técnico. Uns de capas negras, outros ‘à civil’.  Este grupo em particular é do curso de Engenharia Eletrotécnica. Inês Coelho, açoriana, está visivelmente alegre. As praxes? “Estão a ser melhores do que aquilo que esperava”, diz-nos, num vai-vem, até que ficamos só com os dois trajantes.

Pedro Vaz e João Rodrigues, ambos doutores na hierarquia da praxe, defendem o ritual com unhas e dentes. Mais parcos em palavras, defendem o mesmo do que os anteriores praxantes. “Não é bem aquilo que vem na imprensa, a praxe é um ritual de integração. Eles não fazem nada que não queiram, como às vezes se diz por aí”, afirmam, garantindo que quem não aceita ser praxado não é posto de parte durante o curso. “No técnico não existe disso!”.

Observando o cortejo em redor, é possível ver os vários cursos a desfilar, uns mais ousados do que outros, defendendo com cantorias a sua faculdade e o seu curso. Não faltam também alguns cartazes de protesto: ‘Proibir a praxe é como proibir o sexo por que há violações’, lê-se num. Outro grupo carrega um caixão com as palavras ‘tradição’, ostentando cartazes onde se pode ler: ‘A sociedade não nos ouve’. Esperemos que vos leia.

 

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