"Ninguém se suicida por causa de um insucesso escolar ou amoroso"

É talvez o psiquiatra mais conhecido do país. Rosto principal do serviço de psiquiatria do Hospital Santa Maria durante anos, Daniel Sampaio, irmão do antigo Presidente da República Jorge Sampaio, demarca-se da política e foca a sua atenção nos jovens. Agora, depois de ter dado a sua última aula, diz que quer ser recordado pela “atenção” que dá às pessoas.

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Inês Esparteiro Araújo
04/01/2017 08:30 ‧ 04/01/2017 por Inês Esparteiro Araújo

País

Daniel Sampaio

Numa entrevista exclusiva ao Notícias ao Minuto, Daniel Sampaio não receou mostrar um pouco mais do lado que poucos conhecem. Apesar da atenção dada a cada palavra que sai da sua boca, admite que por vezes o medo de passar para o lado dos seus doentes é uma realidade, mas garante que existe sempre “um bilhete de ida e volta”.

Com uma paixão clara por estudar os jovens, a psiquiatria ocupa desde sempre um lugar especial no seu coração.

Recuemos alguns anos. Quem é Maria Luísa Guerra? O papel que esta pessoa teve naquilo que o Daniel Sampaio é hoje.

Maria Luísa Guerra foi minha professora de filosofia, no Liceu Pedro Nunes, e é uma pessoa que eu destaco sempre, que ainda está viva e esteve na minha ultima aula, porque foi uma professora que me influenciou muito na escolha da psiquiatria. Na altura do Liceu estava muito entusiasmado com a filosofia e ela era muito boa professora de filosofia. Depois a psicologia e a filosofia estavam muito ligadas e portanto ela entusiasmou-me muito para uma destas duas. Escolhi psiquiatria porque naquela altura a psicologia não estava muito desenvolvida em Portugal e também tinha um pai médico.

O seu pai também o influenciou nesta escolha?

Não influenciou na psiquiatria, mas sim na medicina.

Mas a única razão para ter optado por psiquiatria foi por a psicologia estar pouco desenvolvida em Portugal? Ou foi também por paixão?

Achei que a psiquiatria era mais aprofundada do que a psicologia, como aliás continua a ser hoje. Nós hoje aprofundamos bastante mais do que os psicólogos e tratamos doenças mais complexas, como a esquizofrenia ou perturbação bipolar.

Este tipo de doenças tem vindo a aumentar? As mais graves?

As mais graves são a esquizofrenia e a perturbação bipolar, aquilo a que nós chamamos da doença mental grave, e não têm vindo a aumentar. Os números são muito estáveis e são assim em todo o mundo. O que tem vindo a aumentar são as depressões e as perturbações de ansiedade, que são mais frequentes e essas sim estão muito relacionadas com o contexto, com as situações de vida familiar, de emprego… Essas situações nesses contextos influenciam um maior aumento das depressões ou da ansiedade. As outras são doenças mais biológicas e portanto não são tão influenciadas pelo contexto.

Eu não combato a ideia de Deus. Não tenho fé, não acredito. Agora há uma dimensão espiritual nas pessoasHá muito a ideia de que quando uma pessoa visita um psiquiatra, o primeiro tratamento que é dado são medicamentos e não se tenta encontrar uma outra solução.

O que eu acho é que há doenças que necessitam sempre de medicamentos, como aquelas duas de que falámos há pouco. Nas perturbações psiquiátricas menos graves, muitas vezes exagera-se no uso de medicamentos quando se podia ter psicoterapia. A grande questão é a do diagnóstico, porque também é verdade que às vezes se faz psicoterapia em pessoas que necessitam de medicamentos. A psicoterapia é um tratamento psicológico, em que a pessoa estabelece uma relação com o terapeuta, sem o uso de medicamentos. 

Pela sua experiência na área, esse tipo de terapia tem mais efeito?

Depende do diagnóstico. Nas perturbações psiquiátricas minor, a psicoterapia é muito indicada. Nas personalidades difíceis, também é importante a psicoterapia. Nas doenças mentais graves, não.

Li uma entrevista sua onde dizia que tinha explicado aos seus netos que não acreditava em Deus, mas que acreditava na espiritualidade. Em que é que isso se traduz? Neste caso para os seus doentes.

Eu sou agnóstico e também explico aos meus netos qual é a diferença disso para ser ateu. Eu não combato a ideia de Deus. Não tenho fé, não acredito. Agora há uma dimensão espiritual nas pessoas, no sentido que há o consciente e que há transcendência de factos que nós não sabemos explicar, influências que nós temos e que não sabemos prever. Isso existe e é muito importante.

E, neste caso, em pacientes que trata, essa dimensão é importante para algum tipo de ajuda interior?

Sim… Quando se faz terapia normalmente tentamos compreender coisas que não são imediatamente compreensíveis para as pessoas. Tentamos fazer apelo aos sonhos, às recordações, às relações infantis e tudo isso tem a ver com uma dimensão que podemos considerar espiritual ou intra-psíquica que é muito importante.

O que acontece muitas vezes é que os adultos não sabem estar com adolescentesQual a razão para se dedicar tantos aos adolescentes e aos jovens? A sua vida tem seguido um pouco esse percurso. As aulas, a psiquiatria focada neles….

Não sei explicar o porquê… Já passou muito tempo desde que comecei, já são 40 anos. Foi um bocadinho por acaso. Fui muito influenciado pelo Dr. João dos Santos, que era um pedopsiquiatra muito importante dos anos 70, quando eu estava a fazer a minha especialidade, e ele aconselhou-me muito a interessar-me pelos adolescentes E, portanto, comecei e depois tornou-se uma paixão. Fui sempre estudando, fui a muitas escolas e falei com muitos jovens e tudo isso criou mais interesse pela área.

Sente que os jovens ficam pouco à vontade a falar com adultos? Ou isso é apenas um mito?

É um mito, diz bem. Os jovens gostam muito de ter momentos em que só estão com jovens, mas gostam muito de falar com adultos. Têm muita curiosidade. E porquê? Porque aquilo que eles à partida contestam, que é a chamada experiência da vida, gostam ao mesmo tempo muito de histórias. Histórias de vida e como é que as pessoas eram em novas e como é que ultrapassaram as coisas. O que acontece muitas vezes é que os adultos não sabem estar com adolescentes. Fazem muitas perguntas, são muito críticos. Há muito este discurso crítico em relação aos jovens que eu procurei combater ao longo da minha vida. Quando nós temos uma posição de respeito pelos adolescentes e pela diferença em relação a nós, eles também nos respeitam. 

O que é para si uma pessoa louca? Uma palavra que assusta a população.

Nós, os psiquiatras, usamos pouco essa palavra, justamente pelo estigma. Fugimos a essa palavra, mas se quisermos ir por aí... Louco é uma pessoa que vive numa realidade diferente. Louco, para nós, é sinónimo de psicótico, é uma pessoa que tem uma psicose. Ou seja, que cria uma realidade diferente da maioria das pessoas à sua volta.

Nunca sentiu em conversa com uma pessoa que existe um medo constante de elas pensarem que as pode estar a analisar?

Não, porque os psiquiatras nunca falam da sua profissão. Normalmente precisamos de descansar, porque é uma profissão difícil. Portanto, quando estamos em família ou quando estamos em convívio, falamos de outras coisas. Os médicos falam muito dos doentes, mas os médicos psiquiatras não.

Nunca aplicou nenhuma das suas regras de terapia em casa?

Não. Consigo separar perfeitamente as coisas.

Já houve algum doente que o tivesse marcado até aos dias de hoje?

Há muitos doentes que eu não esqueci. Há doentes em que tive êxito, de alguma forma consegui ajudar a que eles transformassem a vida e também tive insucessos, porque quem viu muitos doentes e doentes muito difíceis, teve insucessos. Tive alguns doentes, felizmente poucos, que se suicidaram, e tanto os casos em que nós tivemos êxitos como os casos em que tivemos insucessos, marcaram-me muito.

Nesses que infelizmente se suicidaram, fica algum sentimento de culpa?

Na altura, sim. Na altura nós temos mesmo de pôr em causa o nosso trabalho. Mas depois de ultrapassada essa fase, muitas vezes o que acontece é que retificamos certas maneiras de trabalhar para depois podermos trabalhar melhor.

Há muitos doentes que eu não esqueci. Há doentes em que tive êxito, de alguma forma consegui ajudar a que eles transformassem a vida e também tive insucessosNunca uma família o acusou da morte dos seus familiares?

Na altura a seguir, sim. A família também tem esse direito. A família acha que as coisas podiam ter sido melhores. Agora o suicídio é multideterminado, ninguém se suicida por causa do psiquiatra ou ninguém se suicida por causa de um insucesso escolar ou de um insucesso amoroso. Não. São fatores que contribuem para isso.

Estando sempre tão próximo de pessoas com problemas mentais, nunca teve medo... de passar para esse lado?

Sim, algumas vezes, mas costumamos dizer que vamos com um bilhete de ida e volta. Há momentos em que estamos muito próximos das pessoas perturbadas, mas depois temos que fazer a distinção.

Como é que gostava de ser recordado? Quando parar com todo o serviço que faz atualmente. Quando ficar só no seu canto.

Uma pessoa com grande atenção ao relacionamento interpessoal. Eu acho que uma das minhas qualidades é dar muita atenção às pessoas e respeitar muito as pessoas e saber reconhecer as diferenças entre estas e não estigmatizá-las. Acho que isso é uma característica positiva que eu tenho.

Do que é que vai sentir mais falta a dar aulas?

Sinto falta sobretudo dos alunos jovens. Eu gostava muito de dar aulas ao pré graduado, aos alunos da faculdade de medicina, que são muito interessados. Isso eu gostava muito.

*Pode ler a segunda parte desta entrevista aqui.

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