"As pessoas conhecem-me como pai do SNS. Mas o que tem valido é a mãe"

António Arnaut, de 81 anos, foi ministro dos Assuntos Sociais, deputado do partido socialista e o 'pai' do Serviço Nacional de Saúde. Hoje, dia em que o SNS comemora 38 anos, é o entrevistado do Vozes ao Minuto. "Em breve, teremos uma nova lei de base, que prevê carreiras profissionais dignas, com garantia de estabilidade, formação permanente, progressão e remuneração adequada. Estou pessoalmente empenhado nesse objetivo e a trabalhar nisso", revela-nos.

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Inês André de Figueiredo
15/09/2017 08:35 ‧ 15/09/2017 por Inês André de Figueiredo

País

António Arnaut

No dia em que o Serviço Nacional de Saúde (SNS) faz 38 anos, o Notícias ao Minuto falou com António Arnaut, conhecido como o 'pai' do SNS, por ter sido o mentor de um serviço de saúde acessível a todos os portugueses. Um sonho que era de muitos levou Arnaut a transformar uma “velha aspiração em letra de lei”. Mas não fica com todos os créditos, pois acredita que sem a 'mãe' – Constituição – já não existia SNS.

De sorriso fácil, voz certeira e sentimentos à flor da pele, António Arnaut disponibilizou-se para esta conversa “por amor ao SNS”. Por acreditar que o progresso é parte da humanidade e que é possível “construir uma sociedade mais justa, livre e fraterna”, num caminho orientado para um “mundo melhor”.

Ao longo da entrevista, falou ainda dos profissionais de saúde que acredita serem o “fator principal de sustentabilidade do SNS” e aqueles que o tornam um serviço de qualidade. Ficou o agradecimento a estas pessoas, que de si já cuidaram, e uma palavra de esperança no futuro.

Passados 38 anos, o Serviço Nacional de Saúde é o que idealizou?

O Serviço Nacional de Saúde foi sonhado por muitos como o conjunto de serviços e equipamentos capazes de responder satisfatoriamente às necessidades de saúde de todos os portugueses, prestando-lhes de forma geral, universal e gratuita os cuidados de que necessitam.

Esse foi também o meu propósito quando tomei a iniciativa, primeiro como ministro dos Assuntos Sociais do II governo de Mário Soares, e depois como deputado do Partido Socialista, de transformar essa velha aspiração em letra de lei. Por isso, posso afirmar que o SNS continua, apesar de algumas insuficiências, a cumprir o seu objetivo.

Portugal tem um dos melhores serviços de saúde do mundo. Devemos orgulhar-nos Quais as principais conquistas dos últimos anos?

Os indicadores sanitários conhecidos e, especialmente, quanto à mortalidade infantil e à esperança média de vida, mostram que Portugal tem um dos melhores serviços de saúde do mundo. Devemos orgulhar-nos do nosso SNS.

Esse orgulho leva a que o SNS seja a sua primeira opção quando precisa de cuidados de saúde?

Eu, hoje, estou vivo graças ao SNS. Sempre optei pelo SNS, sou apenas utente do SNS, como a maioria dos portugueses. Quando fui operado às cataratas tive oito meses à espera e não houve problema nenhum. Quando passaram seis meses de espera, recebi uma carta a dizer que tinha direito a escolher uma de três unidades de saúde privadas, e eu disse 'sou utente do SNS, eu espero'.

O que falta conseguir e o que é necessário mudar para que o sistema seja melhor?

Ainda é preciso desenvolver algumas valências, como por exemplo a medicina dentária. Nós não temos medicina dentária, temos um esboço, um cheque dentário, mas não temos em geral e é preciso desenvolvê-lo.

E é necessário garantir um médico de família para toda a população, já que ainda há 500 mil portugueses sem médico de família atribuído, portanto há muita coisa a fazer, sobretudo neste domínio.

Olho para a greve com simpatia. Os enfermeiros têm razão, embora lamente a sua instrumentalização por parte da senhora bastonáriaComo olha para as manifestações e greves dos profissionais de saúde?

Olho com simpatia. Os enfermeiros têm razão, embora lamente a sua instrumentalização por parte da senhora bastonária, que é dirigente política do PSD.

Os profissionais de saúde são o fator principal de sustentabilidade do SNS e os enfermeiros estão na vanguarda da qualidade dos serviços de saúde. Eles estão presentes à cabeceira do doente 24 horas por dia. Presto-lhes homenagem, mas peço-lhes alguma compreensão em face das nossas dificuldades financeiras. No geral, são todos muito delicados, competentes, com grande sentido de sacrifício e ganham muito mal.

A Ordem dos Médicos mudou recentemente de bastonário. Qual a sua opinião sobre Miguel Guimarães?

Tenho uma opinião positiva, pois é um defensor do SNS e dos valores deontológicos da profissão médica.

A verdadeira sustentabilidade do SNS não é o dinheiro, são os profissionaisSão ouvidas muitas críticas ao serviço de urgência, principalmente em épocas críticas. Como é possível fazer melhor?

Os serviços de urgência têm muitas carências, a principal das quais é a falta de médicos, enfermeiros e técnicos. Alguns trabalham até à exaustão, fazendo muitos turnos seguidos, e outros são contratados aos fins de semana. Estes profissionais não têm capacidade de se integrarem nas equipas.

Pode haver algumas insuficiências e é preciso romper com essa rotina e encarar a situação com coragem. É necessário criar carreiras profissionais dignas e motivadoras. Quando se fala da sustentabilidade do SNS, pensa-se no orçamento, nos meios financeiros.

Na minha opinião, a verdadeira sustentabilidade do SNS não é o dinheiro, são os profissionais. O dinheiro aparece, vem um governo e dá mais dinheiro ao SNS e resolve o problema só nesse ano, enquanto a questão das carreiras é uma coisa de gerações, porque se não há carreiras estabilizadas, estáveis, dignas, então o SNS não funciona. Os profissionais estão numa carreira 20, 30, 40 anos, portanto a estabilidade tem de ser vista a longo prazo. A sustentabilidade e qualidade do SNS depende de carreiras dignas e o Estado Social tem a obrigação de garantir aos seus profissionais carreiras dignas onde eles se sintam motivados.

A questão das carreiras e da especialidade são as grandes lutas dos enfermeiros...

A questão de enfermeiros especialistas não tem razão legal, porque a categoria de especialista não está na lei, foram as escolas de enfermagem e a Ordem que criaram. Eles criaram isso e são especialistas, muito bem, mas a lei ainda não contempla essa qualidade.

Os enfermeiros é que verdadeiramente cuidam do doente, porque o médico prescreve, faz a intervenção e entrega o doente a quem? Ao enfermeiro. O doente está 24 horas sobre 24 horas ao cuidado do enfermeiro. Há uma grande dedicação. 

A utopia do SNS é que um dia possa haver todos os cuidados de saúde para todos os portugueses de forma gratuitaTrinta e sete anos depois, quais os sonhos que ainda estão adiados?

É sempre possível fazer melhor, o nosso grande objetivo com o SNS era garantir a todos os portugueses, tanto em Lisboa, como no Porto, como em Coimbra, como nas aldeias mais recônditas, tivessem acesso concreto aos cuidados de saúde de que necessitam, embora não possa haver um hospital ou um centro de saúde à porta de cada cidadão.

Esse é o objetivo, mas depois há uma utopia. A utopia do SNS é que um dia possa haver todos os cuidados de saúde para todos os portugueses de forma gratuita. Quando se diz tudo para todos, é tudo dentro dos meios técnicos e humanos disponíveis, como é evidente. Haverá um plano moral e ético, porque a saúde é um direito fundamental dos portugueses, um direito fundamental das pessoas e tem a ver com a dignidade da vida humana. A Constituição reconhece a saúde como um direito fundamental, portanto o SNS tem de garantir de forma efetiva o acesso a cuidados de saúde, para preservar a dignidade de cada um.

Mais 38 anos farão do SNS quão melhor?

O progresso é uma constante da humanidade e, eu, como socialista ético, acredito, e todas as pessoas de boa vontade acreditam, que é possível construir uma sociedade mais justa, livre e fraterna. Neste plano, acho que caminhamos para um mundo melhor.

As pessoas conhecem-me como 'pai' do SNS, por ser o autor da lei, mas o que tem valido ao SNS não é o 'pai', é a 'mãe'António Arnaut ficará para sempre conhecido como o 'pai' do SNS. Assim, como gostaria que estivesse o seu 'filho' num futuro próximo?

Sim, as pessoas conhecem-me como 'pai' do SNS, por ser o autor da lei, mas o que tem valido ao SNS não é o 'pai', é a 'mãe'. Sou o 'pai' porque gerei o SNS, assumo essa responsabilidade política, a 'mãe' é a Constituição da República. Se não fosse ela já não havia SNS porque a Direita já por várias vezes tentou revogar a lei fundadora e até a substituiu em 1990.

Portanto, o SNS foi uma grande reforma da democracia portuguesa, a mais querida das reformas da democracia portuguesa e hoje, felizmente, reúne um largo consenso político. É uma coisa muito querida dos portugueses e não se pode prescindir do SNS, tem sido um fator de justiça e coesão social. Que seria este país que vive tão mal e tem tantos pobres se não tivesse um SNS? Seria muito pior e mais injusto. Desejo que o SNS se mantenha cada vez melhor, mais aperfeiçoado com as reformas necessárias e que satisfaça as necessidades de todos os portugueses.

Estou vivo graças ao SNSO que gostava de dizer aos responsáveis e profissionais de saúde?

Fazia um apelo para que os partidos não façam do SNS um motivo de luta partidária, justamente porque é um fator de coesão de unidade nacional, de progresso, de liberdade e de dignidade.

E fazia um apelo a todos os profissionais de saúde - médicos, enfermeiros, técnicos e assistentes profissionais - e dirijo-lhes uma palavra de agradecimento e esperança. Agradecimento pelo que têm feito, pela sustentabilidade e qualidade do SNS, de que eu próprio sou testemunha, estou vivo graças ao SNS. E de esperança, estou convencido de que, em breve, teremos uma nova lei de base, que prevê carreiras profissionais dignas, com garantia de estabilidade, formação permanente, progressão e remuneração adequada. Estou pessoalmente empenhado nesse objetivo e a trabalhar nisso.

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