O Presidente da República propôs esta terça-feira que se repense as orgânicas, procedimentos e recursos do sistema de justiça, em declarações na cerimónia da abertura do ano judicial, que não se realizava desde janeiro de 2020.
Marcelo começou por elogiar a "visão mais rica e diversa" de Santos Silva, sem esquecer os "inúmeros estrangulamentos", propondo uma reflexão em cinco pontos.
Numa delas, Marcelo explicou que “a pandemia não diminuiu a importância da Justiça, apenas a aumentou”. “A pandemia que parou a nossa vida durante quase dois anos e as crises financeiras, económicas, e sociais que nos acompanham desde 2019 não diminuíram a importância da justiça", acrescentou.
No que foi um momento de "verdadeira emergência, de sacrifício acrescido ou em situações que limitam ou restringem os direitos individuais”, a intervenção da justiça torna-se decisiva e deve ser salvaguardada.
"Pela própria natureza do poder judicial e pelas dificuldades e riscos da conjugação com a intervenção do poder executivo, a abordagem global não é nem simples nem fazível sem, ao menos, consensos vastos de regime", explicou Marcelo.
"A justiça com perspetiva de longo fôlego é porventura incompatível com algumas orgânicas ou procedimentos ou recursos humanos, financeiros e materiais concebidos para outra sociedade, outra economia, outra vivência cidadã", considerou o chefe de Estado.
Assinalando as mudanças ocorridas em Portugal, Marcelo Rebelo de Sousa defendeu que "o que mais se impõe é ir olhando para todo o edifício judicial e quanto a ele ir detetando o que já não corresponde aos novíssimos desafios de uma comunidade mais aberta, mais internacionalizada" e também, "em contraponto, fruto das crises, mais dualista, ou seja, menos coesa, mais assimétrica".
Segundo o Presidente da República, para assegurar acesso "ao bem coletivo chamado justiça sem constantes e como que inevitáveis chocantes desigualdades" é preciso "ir repensando jurisdição comum e administrativa e fiscal, ir tornando mais flexível e ajustado todo o sistema, ir aproximando o seu tempo do tempo social".
"Ir criando mecanismos de monitorização permanente, ir estabilizando formas de comunicação com a sociedade, ir proporcionando recursos, e desde logo os humanos adequados às mais prementes necessidades. Pela própria natureza do poder judicial e pelas dificuldades e riscos da conjugação com a intervenção do poder executivo, esta abordagem global não é nem simples nem fazível sem ao menos implícitos consensos vastos de regime", acrescentou.
Marcelo Rebelo de Sousa recordou a proposta de pacto de justiça que fez em 2016, no início do seu primeiro mandato, e considerou que "conheceu alguns sucessos, nomeadamente no estatuto das magistraturas, mas limitados e precários por exemplo no acesso à justiça".
Depois, apontou para o fim da atual legislatura e declarou que seria "lastimável que por essa via, a dos protagonistas da justiça, ou outra, a da conjugação dos parceiros políticos, económicos e sociais, se chegasse a 2026 com o apelo de uma gestão sobretudo quotidiana, pontual, casuística de um sistema cada vez mais afastado da realidade social".
Sobre os "compromissos e intenções" que a ministra da Justiça, Catarina Sarmento e Castro, manifestou nesta sessão, o chefe de Estado disse esperar que "sejam concretizáveis, se não numa legislatura -- e daí a importância dos consensos de regime --, iniciando numa legislatura e prosseguindo nas subsequentes".
Num outro ponto do seu discurso, o Presidente da República criticou a legislação e administração feitas à pressa: "Não cessam de abundar em quantidade e carecer de vagar para corresponder em qualidade. Digo bem, vagar, ou seja, por falta de tempo as mais das vezes. Legisla-se a administra-se de mais para o passado, retroage-se ou retroverte-se em demasia. Recorre-se ao excecional à míngua do geral e mesmo especial".
"Toma-se um expediente imprescindível para uma situação bem precisa e quer-se aplicar anos a fio", prosseguiu, "leva-se a elevados patamares de imaginação a atipicidade, a natureza 'sui generis', a hibridez das soluções ditadas pelo remendo de ocasião, multiplica-se involuntariamente o labirinto do que virá a motivar a intervenção jurisdicional".
Marcelo Rebelo de Sousa referiu que "a tendência nasce logo no plano do direito europeu, e isso é cada vez mais frequente".
"Justiça exercida num tal contexto é justiça inevitavelmente sofredora e sofrida", lamentou.
A tradicional cerimónia da abertura do ano judicial decorreu na tarde desta terça-feira com as intervenções da ministra da Justiça, Procuradora-geral da República, presidente do Supremo Tribunal de Justiça e bastonária dos Advogados. O presidente da Assembleia da República e o Presidente da República foram os últimos a intervir, encerrando a cerimónia.
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