A expetativa em torno de ‘Death Stranding’ não pode ser facilmente correspondida. O primeiro jogo de Hideo Kojima fora da Konami – onde criou séries íconicas como ‘Metal Gear Solid’ e ‘Zone of the Enders’ – é também o primeiro título do seu novo estúdio independente. Além disso, ‘Death Stranding’ contou com um forte apoio da PlayStation, que forneceu até o motor de jogo da Guerrilla Games – o Decima Engine – para dar forma à visão de Hideo Kojima e da respetiva equipa.
O resultado estará longe de ser consensual e certamente motivará imensas discussões em torno de críticos e jogadores. Porém, numa altura em que se acredita não haver nada de novo para explorar e onde jogos bebem ‘inspirações’ uns dos outros, ‘Death Stranding’ pode também ser um ponto de viragem na indústria, demasiado confortável em manter os jogadores entretidos com ‘live services’ e mecânicas que contribuem apenas para um eterno ‘loop’ ou ‘grind’.
‘Death Stranding’ é isto tudo mas, para Kojima, significa muito mais. Sem ‘Metal Gear Solid’ ou os fãs da série em que se sustentar, Kojima teve de provar que os holofotes da fama não o escolheram por acaso. ‘Death Stranding’ é a consagração de Hideo Kojima enquanto autor de videojogos, uma espécie rara numa indústria ainda presa a logótipos de produtoras e editoras (onde a maioria trata os colaboradores como números dispensáveis) e que encontra no produtor japonês um verdadeiro visionário com algo a dizer com as suas obras.
Posto isto, o que dizer de ‘Death Stranding’? Anunciado em 2016, o jogo tem estado envolvido em mistério. Com a associação ao projeto de cada vez mais estrelas de Hollywood – Norman Reedus (‘Walking Dead’), Léa Seydoux (‘Blue Is the Warmest Color’), Mads Mikkelsen (‘Valhalla Rising’), Margaret Qualley (‘Once Upon a Time in Hollywood’), Lindsay Wagner (‘The Bionic Woman’), Tommie Earl Jenkins (‘Dolemite Is My Name’), Troy Baker (‘The Last of Us’), Guillermo del Toro (‘The Shape of Water’) e Nicolas Winding Refn (‘Drive’) - houve naturalmente um aumento de expetativa, com muitos a recearem que Kojima ficasse ‘soterrado’ entre tantas atenções.
© Sony Interactive Entertainment / Kojima Productions
MAWA - Make America Whole Again
O enredo tem lugar nos EUA ou, mais precisamente, numa versão pós-apocalíptica do território norte-americano, devastado por um evento que ficou conhecido como Death Stranding. Deste misterioso evento resultou a aproximação entre o mundo dos vivos e o dos mortos, e uma chuva que acelera a passagem do tempo - conhecida como Timefall. Tudo isto, juntamente com o aparecimento de estranhas criaturas de nome BT (Beached Things), fez com que a humanidade se refugiasse em ‘bunkers’ e, desta forma, perdessem o contacto, criando cidades independentes sem ligação entre si.
É neste cenário que entram os transportadores, que fazem chegar encomendas a cada uma das cidades e permitem troca de bens, recursos e materiais. O protagonista – Sam Bridges, interpretado por Norman Reedus – é um destes transportadores que, pouco depois do começo do jogo, é recrutado por uma organização de Bridges para conectar as diferentes cidades, cabendo-lhe a tarefa de ir da costa este à oeste do território. Durante o processo, Sam conectará as diferentes cidades que compõem o United Cities of America (UCA) e resgatará Amélie, membro primordial da Bridges que foi raptada por um grupo terrorista.
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A narrativa de ‘Death Stranding’ toma lugar central do que são as primeiras duas horas do jogo, naquilo que é uma exposição carregada de nomes, significados e eventos desconhecidos do jogador. Diríamos que estas duas horas iniciais são as mais desafiantes uma vez que exigirão alguma paciência. Ainda assim, as estranhas personagens conseguem conquistar a atenção imediata. Fragile (Léa Seydoux), por exemplo, é pintada como uma terrorista a ser temida mas, como cedo poderá perceber, há mais do que salta à vista na sua história pessoal. Sendo um jogo de Hideo Kojima, estão presentes nomes de personagens bizarros como Die-Hardman, Deadman ou Heartman, escolhas assumidamente estranhas que já fazem parte do portefólio do produtor japonês.
Porém, nada é tão estranho e bizarro como o BB – Bridge Baby – que faz acompanhar Sam. Descrito como uma ferramenta, a narrativa de ‘Death Stranding’ diz que se trata de um bebé retirado do ventre da mãe antes do nascimento dado que se trata do único ser capaz de detetar BTs no caminho. Sim, é estranho.
Os temáticas do enredo de ‘Death Stranding’ são bastante claras. União, empatia, paternidade são temáticas amplamente exploradas no jogo mas o que as torna especiais não é o facto de terem lugar no enredo. Estas são temáticas também exploradas pelas mecânicas de jogo.
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Simulador de caminhadas?
Durante o tempo de desenvolvimento foram várias as críticas apontadas a ‘Death Stranding’. O jogo foi considerado por muitos como um simulador de caminhadas ou o jogo oficial da Uber Eats. No que consiste afinal ‘Death Stranding'? Como se joga? Bem, diríamos que não anda muito longe das descrições já referidas, o erro está em considerá-las algo mau.
A minúcia e precisão são caraterísticas presentes em cada poro de ‘Death Stranding’. Pode ser fácil reduzir a mais recente obra de Hideo Kojima a um simulador de caminhadas ou um jogo de entregas mas, ao fazê-lo, estamos a menosprezar o objetivo implícito destas mecânicas. Ao contrário de muitos jogos, em que narrativa a jogabilidade têm pouca conexão, ‘Death Stranding’ entrelaça as duas e cria uma imersão poucas vezes vista no meio.
© Sony Interactive Entertainment / Kojima Productions
Como já referimos, as primeiras duas horas são as mais ‘complicadas’ não só pela história mas também pela jogabilidade. É neste período que ‘Death Stranding’ se torna mais confuso porque (tal como Kojima adiantou nas primeiras entrevistas – onde referiu que o jogo poderia criar um novo género) reescreve o que o jogador considera básico em videojogos: o movimento do avatar virtual.
Na maioria dos jogos de ação na terceira pessoa, é ensinado aos jogadores na fase de tutorial que podem movimentar-se em qualquer direção. Basta mover o analógico para o avatar seguir a direção sem qualquer problema. No caso de ‘Death Stranding’ entram na ‘equação’ pormenores como inércia e equilíbrio. Se colocar às suas costas uma pesada mochila durante uma caminhada em terreno montanhoso, é certo que terá alguns problemas de equilíbrio e o mesmo acontece em ‘Death Stranding’. Da mesma forma, andar em terreno inclinado torna-se um perigo, com Sam a correr desenfreadamente e a correr o risco de espalhar e estragar todas as encomendas.
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Dado que está no controlo de um carregador, passará praticamente todo o jogo com encomendas às costas, nos braços e até pernas. Se estiver a carregar muito peso, basta uma pequena curva para a esquerda para a carga ‘arrastar’ Sam e terá de corrigir o equilíbrio por via do gatilho direito. Ao contrário de outros jogos, onde o jogador adota um controlo relativamente passivo enquanto move o avatar, em ‘Death Stranding’ este controlo deve ser mais ativo até porque há mais parâmetros a considerar.
O tipo de terreno é, em si, um desafio nestas travessias. Um terreno plano será tranquilo mas superfícies irregulares ou acidentadas podem tornar-se verdadeiras dores de cabeça, pelo que planear a rota é algo que deve fazer não só antes de iniciar viagem mas também enquanto percorre o caminho, usando o sensor com que Sam está equipado para avaliar a irregularidade do terreno, ou a profundidade dos rios para não ser arrastado pela corrente.
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Tudo pesa. Sim, tudo
Tudo isto pode soar demasiado minucioso e exaustivo mas, na verdade, ‘Death Stranding’ facilita muito a vida do jogador. Quando está a selecionar a carga para levar consigo numa travessia, pode com o simples toque de um botão organizar toda a carga nas variadas posições para que seja tão eficiente quanto possível. O já referido sensor permite avaliar uma boa porção de terreno que o jogador tem na sua frente, identificando ainda materiais e cargas espalhadas pelo cenário que possam ser de interesse.
Parte do desafio de ‘Death Stranding’ reside também na forma como o jogo reescreve a forma como o jogador vê os itens do seu inventário. Enquanto na maioria dos jogos os itens são ‘escondidos’ e não surgem no ecrã, em ‘Death Stranding’ é tudo visível. Sim, tudo. O par extra de botas que queira carregar em caso das que tem equipadas se gastar? Sim. A arma que pode nem usar mas que até pode vir a dar jeito? Sim, também. Tudo pesa em ‘Death Stranding’, o que significa que uma ferramenta útil pode ser um peso a mais que tornará o jogo ainda mais difícil. Felizmente pode contar com uma pequena ajuda nestas travessias.
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Uma pequena ajuda (e incentivo)
O ‘eco’ das temáticas da narrativa de ‘Death Stranding’ na jogabilidade fazem-se sentir sobretudo no modo online. Não, o modo online não o obrigará a lidar diretamente com outros jogadores. A implementação é muito mais subtil mas, caso não seja do agrado, poderá mesmo desligá-lo de todo. No entanto, dado que o modo online surge como um reforço das temáticas de ‘Death Stranding’, diríamos que desempenha o seu papel na imersão e na mensagem do jogo, pelo que recomendamos que o mantenha ativo.
Kojima sempre se mostrou fã do modo online de jogos como ‘Dark Souls’. A capacidade de jogadores deixarem mensagens e disponibilizarem-se a ajudar outros jogadores em dificuldades sempre se mostrou uma perspetiva cativante para para o produtor japonês. Este sistema é a base do modo online de ‘Death Stranding’ mas, neste caso, é muito menos intrusivo. Em nenhum momento é possível que alguém ‘invada’ o seu jogo e nenhuma luta se tornará mais fácil.
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Na verdade, diríamos que apesar de o modo online de ‘Death Stranding’ ser baseado em ‘Dark Souls’, diríamos que o efeito que tem está mais próximo de ‘Journey’, que permite simplesmente que um jogador se junte na travessia do jogo e sirva de incentivo.
‘Death Stranding’ é um jogo solitário, cheio de dificuldades e situações inesperadas. Porém, o que diria se visse uma ferramenta – escada ou corda – deixada para trás por um jogador e que lhe permite chegar com maior segurança ao destino? A dificuldade continua a ser inerente à travessia mas saber que alguém deixou para trás uma ferramenta preciosa será de grande alívio.
Este tipo de cooperação não surge apenas do que pode pensar ser a natureza humana. Os jogadores também podem trocar ‘likes’ entre si, melhorando a pontuação no ranking enquanto transportadores que, da mesma forma, é influenciada pela concretização de missões e entrega de mercadorias perdidas. O número de 'likes' é influenciado pelos danos infligidos à mercadoria - seja resultado de quedas ou da chuva - pelo que recomendamos que leve sempre consigo um 'spray' reparador que, ele próprio, adiciona peso às costas de Sam.
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A cooperação do modo online também existe sob forma de partilha de materiais e construção de estruturas. Por exemplo, poderá construir torres de vigia que lhe permitem averiguar o terreno, materiais e perigos que encontra no seu objetivo, postos de carregamento para recarregar motas e exosqueletos elétricos (já lá vamos), e até ‘bunkers’ portáteis para descansar durante o caminho. Estas mesmas estruturas podem surgir para outros jogadores, servindo de grande alívio durante o caminho até ao objetivo.
Enquanto jogávamos a ‘Death Stranding’ conseguimos completar uma auto-estrada numa das zonas iniciais, uma estrutura construída depois de reunidos os materiais necessários e que teve a ajuda de todos os que tiveram oportunidade de jogar antes do lançamento. As motas elétricas do jogo, por exemplo, podem ser relativamente inúteis em terreno acidentado e dar mais problemas do que se andasse a pé mas, depois de construída esta estrada, foi possível realizar entregas mais rapidamente e a alta velocidade.
Em ‘Death Stranding’ a cooperação compensa. Ver uma estrada a surgir onde anteriormente nada havia sabendo que é fruto desta união entre jogadores é um dos momentos que dificilmente esqueceremos.
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Bela solidão
Já referimos que ‘Death Stranding’ foi criado com recurso ao Decima Engine, motor de jogo que foi usado pela Guerrilla Games no aclamado ‘Horizon Zero Dawn’. O resultado é tão impressionante como foi no exclusivo PlayStation 4, dando forma a cenários inóspitos inspirados na Islândia e Escócia, florestas e até terrenos quase lunares ou tão vermelhos que mais parecem ter sido inspirados em Marte. A solidão é bela em ‘Death Stranding’ e saltam à vista todos os pormenores - como chuva a cair no solo, dando azo ao nascimento e morte instantânea de flores.
As animações fluídas mas não intrusivas são dignas de nota, os atores são automaticamente reconhecíveis e ficam na memória verdadeiras cenas que mais parecem saídas de pesadelo ou de sonhos febris. Sim, é Hideo Kojima em todo o seu ‘esplendor’ e o traço do seu colaborador de longa data, Yoji Shinkawa, está presente em todos os fatos, estruturas e criaturas.
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O departamento sonoro também merece aplausos. A voz de Sam ecoa entre os vales que compõem o mundo de ‘Death Stranding’, os atores dão tudo o que têm na interpretação das personagens, e volta a destacar-se o gosto musical de Hideo Kojima. Numa travessia relacionada com a narrativa é frequente que uma música específica acompanhe o jogador, sempre relevante e indicada para o momento. O uso da música é crucial para que ‘Death Stranding’ tenha um ambiente soturno, solitário, mas tolerável. Um equilíbrio difícil de atingir que, mais uma vez, mostra bem que Kojima sabe o que está a fazer.
Considerações finais
‘Death Stranding’ é um jogo que demora o seu tempo. As primeiras horas são difíceis também por isso e impõem um determinado ritmo ao jogador. No entanto, mesmo que a estrutura do jogo não mude – ainda terá de se deslocar do ponto A ao ponto B - a forma como o jogo consistentemente fornece novas ferramentas faz com que a progressão seja algo tangível e recompensador.
Numa altura em que cada vez mais jogos optam por apresentar mundos abertos mas ‘escondem’ a progressão dos jogadores, levando-os a repetir as missões num ‘grind’ contínuo, Hideo Kojima conseguiu criar uma experiência recompensadora em praticamente todos os quadrantes de ‘Death Stranding’. Mais do que isso, é um jogo que serve de consagração a Kojima enquanto autor de videojogos e uma ‘pedra no charco’ que certamente impactará a indústria num todo.
‘Death Stranding’ é um jogo é longo, preciso, complexo, um pouco presunçoso mas sempre recompensador. Esta é uma viagem recheada de pequenos e grandes prazeres que recomendamos que desfrute e absorva.
Pontos fortes
- Interpretações fortíssimas de um elenco de luxo;
- História original de ficção científica;
- Reescreve elementos tidos como básicos de uma forma cativante;
- Grafismo recheado de pormenores concedido pelo Decima Engine;
- Cooperação possibilitada pelo modo online;
Pontos fracos
- As primeiras horas serão um desafio;
- Diálogos podem ser considerados presunçosos;
- Fações terroristas (MULE) espalhadas pelo cenário têm pouca história de fundo;
Ideal para…
Os fãs da série ‘Metal Gear Solid’ que têm seguido Hideo Kojima durante os últimos anos deverão ter em ‘Death Stranding’ uma compra obrigatória. As primeiras horas difíceis não deverão ser desconsideradas, sendo apenas o período de ‘incubação’ das mecânicas que o jogo pretende ensinar.
O ritmo muito específico de ‘Death Stranding’ faz com que este não seja um jogo para todos os gostos mas sim para quem procura algo novo, refrescante e com intenções claras de ser um passo em frente para o meio dos videojogos enquanto forma de arte.