Há, precisamente, 25 anos venceu a primeira edição do ‘Chuva de Estrelas’, tinha na altura 15 anos. Hoje tem 40 e muita carreira na música para lá do programa de televisão em que participou. Dividida entre Lisboa e Cabo Verde, sempre pontuada pela doçura do crioulo e o calor de África, Sara Tavares completou, no passado mês de outubro, um ano de regresso aos grandes palcos com ‘Fitxadu’ na bagagem e, depois, de uma pausa forçada por um tumor benigno.
De lá até agora, além da digressão nacional que incluiu atuações em vários festivais nacionais (FMM, Bons Sons, Sol da Caparica), passou ainda por Cabo Verde, Holanda, Polónia, Espanha, França, Colômbia, Timor, e no final deste mês rumará até ao México.
Pelo caminho, o tema ‘Coisas Bunitas’ arrecadou mais de dois milhões de visualizações no YouTube, ganhou o Cabo Verde Music Award (CVMA) de ‘Melhor Canção com Ritmo Internacional’, e o último álbum ‘Fitxadu’ está nomeado para os Grammy’s Latinos. Se se sagrará vencedora mais logo, não é o mais importante. Em entrevista ao Notícias ao Minuto, a cantora luso-caboverdiana confessa-se muito feliz com o resultado do seu trabalho e só a nomeação “é um reconhecimento delicioso”.
Nesta conversa, Sara Tavares conta que se foi adaptando às redes sociais, aprendendo a comunicar “sem intermediários” com o seu público e a partilhar o trabalho dos seus “génios inspiradores”. Notícias não segue com frequência, mas está “preocupada” com as “situações surreais que têm vindo a acontecer” no planeta que todos partilhamos e com a vida difícil (e cara) que quem ama a arte ainda enfrenta nos dias que correm.
O que significa ‘Fitxadu’, o nome do seu último álbum?
Fitxadu literalmente é fechado, mas o que quero dizer com isso é guardado. Normalmente, a palavra em crioulo é aplicada como guardar qualquer coisa no peito ou na barriga. É guardar as coisas boas, guardar as coisas fechadas no peito.
Guardar para seguir um rumo diferente ou guardar qualquer coisa para mais tarde recordar?
O nome do álbum [surge] a seguir ao nome de uma canção. Há uma canção no álbum que [também] é Fitxadu e o título sai do refrão que diz ‘as coisas boas do mundo não têm corte, estão guardadas no meio peito’.
Divido o meu cérebro a falar em crioulo, em português, e em inglês
No início da sua carreira, começou por escrever mais músicas em português. Com o tempo, a doçura do crioulo tomou conta de si?
Escrevo nas duas línguas, mas fui indo mais a Cabo Verde e cada vez tenho mais amigos cabo-verdianos, então aprendi a ter afetos em crioulo. Estou na internet, ao telefone, e estou a falar em crioulo. Divido o meu cérebro a falar em crioulo, em português, e em inglês. Também tenho uma série de amigos no mundo, pelo mundo. Mas, de facto, a segunda língua que mais falo é crioulo.
É uma inspiração?
Também é uma inspiração porque descobrem-se palavras bonitas que às vezes pensa-se que querem dizer uma coisa. Muitas palavras do crioulo vêm do português arcaico, mas o cabo-verdiano dá-lhe uma nuance diferente. Dá-lhe um swing diferente.
Já colaborou com vários músicos, nacionais e internacionais. Há alguém que ainda falte?
Então não há, há um universo inteiro de músicos por aí. Alguns ainda nem descobri e muitos daqueles com quem colaborei foi só um bocadinho. Quero sempre fazer mais, aprofundar mais.
Alguém em particular?
São tantos que não consigo nomear uma pessoa só. Gostava de um dia escrever uma música com o Carlos Tê, é o nome que me vêm agora à cabeça. Estrangeiro…, não me importava que o Stevie Wonder dissesse um ‘ai’ ou um ‘oi’ num música minha (risos)
Disse recentemente que também gosta muito do trabalho criativo. Essa afirmação esconde uma vontade de abraçar novos desafios? É reveladora de algum cansaço de ser a estrela da sua “banda democrática”?
Quando entrei para esta coisa de fazer música, achava que isso era fazer música. Criar música, criar melodias, letras, poemas, ritmos para eu cantar. Depois dei-me conta de que chegava ao fim de dias, semanas, meses, e estava a ser vestida, maquilhada, a correr para ensaios, e que afinal não era aquela música que queria cantar. Mas tinha a esperança de que ‘mais tarde vamos encontrar uma cena tua, que não é bem isto’. Depois eu vinha com as minhas letras e ouvia do tal ‘nós’ que ‘não é bem isso que achamos que é para ti’. Ao longo dos anos fui achando que então ‘mas eu é que tenho que achar, eu é que tenho que tomar o meu lugar de líder do meu espaço, da minha linguagem artística’. E lá fui tomando o meu espaço, a minha linguagem. Mas tudo isso dá muito trabalho. E ao fim ao cabo toma muita energia, há um grande desgaste. Por isso sobra pouco tempo para o trabalho criativo. Mas no fundo, no fundo, ser músico é ser um criativo.
É aliar as duas coisas de alguma forma...
Gostava de ser só criativa [risos].
Ás vezes um artista perde-se um bocadinho nas suas divagações
Sei que é “má” com as suas canções. É muito crítica do seu trabalho?
Sou, mas ser crítica também é um prazer, é trabalho criativo, de seleção, de melhoramento, de aprimoramento de palavras de melodias, de criar um pouco diferente. Não ter aquela nota assim, mas descobrir uma outra mais para cima, mais para baixo, mais redonda, mais ácida, mais doce. É um trabalho que está dentro do círculo da criatividade.
Isso leva tempo. O tempo é algo que a preocupa? Os timings que são impostos, incomodam-na?
Nada. Isso é uma das coisas boas que as editoras têm que é darem-nos um deadline. Dizer ‘olha tens que fazer o disco até agosto’. Isso é bom porque às vezes um artista perde-se um bocadinho nas suas divagações. É bom ter um deadline para terminar as maquetes, o estúdio, a capa, terminar um vídeo.
Hoje vai saber se o ‘Fitxadu’ é o grande vencedor dos Grammy’s Latinos. Faz diferença conquistar o prémio ou só a nomeação já é positivo?
É sim, [mas] não penso nisso. Fiquei super surpresa e feliz por o disco ter sido nomeado. Por isso é que estou a celebrar juntamente com os meus amigos, com os meus fãs, o meu público, colegas artistas, músicos, os que participaram e os que não participaram no disco. Todos os que fazem parte deste movimento lusófono ou afro-lusófono moderno, vieram todos pessoalmente ou nas minhas páginas dar-me os parabéns. Eles sentem que fazem parte desta nomeação, deste reconhecimento, isto para nós já é muito bom. É bom [também] para Portugal. É um reconhecimento maravilhoso, delicioso.
A forma como se vive hoje a música com a internet, as redes sociais, é positiva. Tem o papel de fazer chegar o vosso trabalho a mais pessoas. Mas tem algum lado menos bom que obrigue a estar mais presente, a ter mais cuidado com o que se diz, como o que se escreve, com a imagem?
Todas as coisas têm um lado sol e um lado lunar. Requer mais esforço, mais energia, mais consciência, mais responsabilidade da nossa parte, mas também nos dá uma oportunidade de estar mais perto do público sem depender de tantos intermediários. Então há que aproveitar isso, basta ter um telemóvel. Os músicos hoje em dia têm estúdios em casa, computadores, equipamento, é muito mais fácil gravar música e disponibilizá-la diretamente ao público e ter a sua própria rede social e fazer os seus próprios conteúdos. Ter um canal direto ao seu público. E depois cada um gere aquilo a que habitua o seu próprio público, com o que alimenta o seu público.
A Sara gosta mais do contacto proporcionado pelos concertos ou pelas redes sociais?
Tenho-me habituado às redes sociais. Quando surgiram, eu não era muito disso, não percebia muito bem o que havia de comunicar. Mas depois fui comunicando, aprendendo a dar a conhecer às pessoas o que estou a ouvir, o que leio. E gosto disso, de às vezes deixar as pessoas perceberem onde estou, o meu estado de espírito porque quem é fã de ouvir a minha música, às vezes extrapola para o lado que gosta do meu estado de espírito, da pessoa em si - ou acha que gosta (risos) – então tento demarcar isso, criar uma fronteira, mas tento também promover os colegas de quem gosto, com quem me identifico. Também sou um veículo para promover coisas de que gosto. Posso dirigir a luz para onde quero.
Quem começa no ‘Chuva de Estrelas’, ou mesmo num festival da canção, começa um pouco sem identidade
As raízes cabo-verdianas ajudaram-na a desamarrar-se da imagem que as pessoas tinham da Sara Tavares do ‘Chuva de Estrelas’?
Quem começa no ‘Chuva de Estrelas’, ou no ‘The Voice’, qualquer um desses programas, mesmo num festival da canção, começa um pouco sem identidade, não é? Então o percurso para a frente é que é de construção da identidade, da pessoa enquanto cantor, músico, criador. Como eu comecei muito jovem, apareci a cantar ali [no Chuva de Estrelas] com 15 anos, foi o meu crescimento como mulher, como pessoa. E fui a Cabo Verde descobrir a história dos meus pais, a minha segunda língua, fui conhecer a história da África lusófona, e também por acréscimo a história do império português. E a parir daí à pano para escrever livros, pintar quadros…
O público lusófono é diferente do europeu? E o português é diferente do cabo-verdiano?
Há coisas que nos ligam e há coisas que nos separam. No público lusófono, liga-nos a língua, não é? Mas, por exemplo, a temperatura que faz em África (risos) faz com que as pessoas tenham um estado de espírito completamente diferente, as pessoas sorriem com mais facilidade. É um sorriso mais solto, dançam mais, tomam um concerto com menos seriedade. Se pedimos para se levantarem, não é preciso pedir duas vezes (risos). Agora na Noruega, Canadá, na Suécia, as pessoas estão dentro de salas, em auditórios com um ar mais frio, levam mais tempo a aquecer. Mas no final dos concertos, uma coisa que é comum, é que estão todos descoordenados mas estão a dançar. Levam mais tempo a aquecer, mas aquecem. A música é uma linguagem universal.
Já lá vão mais de 20 anos de carreira, e cinco álbuns. Se pudesse voltar atrás fazia alguma coisa diferente?
Acho que numa altura em que tive a fazer muitas tournées, dos 24 aos 30 anos, teria feito umas pausas maiores. Mas não me arrependo de nada. Estive a fazer o que gosto na vida.
Tem alguma música sua preferida ou que a tenha marcado mais?
Hum... É difícil responder, mas continuo a ser muito fã de músicas de outras pessoas, dos meus clássicos.
Tem mais facilidade em dizer que gosta de músicas dos seus colegas, amigos?
Sim, dos meus génios, das minhas inspirações.
Se voltássemos atrás, à Sara Tavares que tinha 15 anos, mas que agora tinha YouTube, redes sociais, e também muitos concursos de talentos como há hoje. Apostaria em lançar-se sozinha, através da Internet, ou por participar num concurso?
Se tivesse isto tudo, se calhar ia pela Internet, não faço ideia... Se calhar ia para a escola e nem seria músico. Achava que havia tanto peixe no mar… Na altura as pessoas tinham mais tempo, mais espaço, para prestar atenção a uma só coisa. Hoje em dia há tanto talento, tanto talento… [risos] E a pessoa passa por um talento e faz zapping, é um rodízio de talento.
Ter amor à camisola só não basta. Ser um elemento da cultura em Portugal sai caro
Há mais formas de mostrar o talento, mas também há mais talento que se conhece?
Acho que há talento e pouco aproveitamento desse talento. Hoje em dia, para alguém se atirar no mar da arte ainda é preciso mais coragem, porque é mais difícil ter uma equipa de trabalho que acredite em nós, e essa equipa tirar lucro de nós porque ter amor à camisola só não basta. A música em si, no nosso país, paga-se. Paga-se IVA para comprar um CD. Ser um elemento da cultura em Portugal sai caro. Se tiver um filho que queira ir para as Artes, vou dizer-lhe: ‘coragem, muita coragem’ porque tem mesmo que ser aquilo que ele gosta porque vai passar momentos difíceis, tem mesmo que ser uma arte que ame.
O tumor benigno, em 2009, foi uma pausa forçada que a ajudou a refletir, a amadurecer este regresso ‘Fitxadu’?
Todas as experiências, um tumor, um filho, um divórcio, um acidente, têm sempre efeitos. O corpo marca sempre a mente, o emocional, então quando a pessoa trabalha com arte vê a finitude da vida tão ali à frente e fica tudo muito mais leve, mais relativo. E se já era relativo, uma pessoa que trabalha com arte relativiza muito as coisas porque não sabe quando é o fim do mês. Não tem garantias de nada, e quando tem um problema de saúde fica muito grato e vê a magia da vida à frente dela, o talento dos médicos, a generosidade de quem não tem de sê-lo, tive muita gente, pessoas que não tinham que se preocupar comigo e fizeram-no. Tive grande surpresas durante esse período e, claro, que me deram vitalidade reforçada. E vê-se muito quando as pessoas ficam doentes, ganham mais saúde.
Mas há alguma diferença deste álbum para os restantes?
Cada álbum é diferente, espero que cada um dos meus discos seja diferente. Faço por isso [risos]. Tenho uma idade diferente e faço por cada canção ser diferente uma da outra. Neste disco, a grande diferença é ter sido um trabalho de equipa mesmo intencional. Nos outros era mais individual, convocava outros músicos e técnicos para servirem as minhas ideias exclusivamente, e eu direcionava-os para as minhas ideias, para conseguir obter o que tinha em mente. Desta vez, convidem pessoas para comporem comigo, eu fazia só o princípio das ideias e convidava-os para terminarem as ideias comigo. Convidei produtores, que há muito tempo tinha vontade de trabalhar com eles, letristas, compositores, convidei pessoas de várias dimensões para fazerem este disco comigo. Assumi, digamos, uma residência artística, para que saísse da minha zona de conforto e assumisse outras coisas. Queria assumir uma Lisboa urbana em todo o seu esplendor, quis sair daquela matriz que vinha a usar Cabo-Verde/Lisboa, Lisboa/Cabo-Verde, mas abrir isso e acho que foi bem conseguido. Eu fiquei super satisfeita com o álbum.
A lusofonia não vale de muita coisa, [acaba] por ser só uma palavra que se diz nas reuniões, nos colóquios, não há legislação própria entre os países para facilitar os músicos
Parece ser uma pessoa muito ‘boa onda’, descontraída, mas há alguma coisa nesta vida de artista que a incomode?
Muitas coisas. Não somos bem pagos, não há muita proteção. A última vez que fui à Colômbia, no verão passado, um músico meu ficou pelo caminho. Fala-se muito na lusofonia, mas este meu músico é cabo-verdiano residente em Portugal, mas não pode ir para a Colômbia sem um visto especial. Ficou em terra. A lusofonia não vale de muita coisa, [acaba] por ser só uma palavra que se diz nas reuniões, nos colóquios, não há legislação própria entre os países para facilitar os músicos, as bagagens, instrumentos, vistos mais rápidos e mais baratos. Essa coisa dos CD terem IVA, a cultura no nosso país é muito cara. Não há apoios suficientes para se fazerem discos, para se fazerem concertos, é tudo muito caro. As Câmaras Municipais é que têm de oferecer a maior parte dos concertos. O que condiciona a oferta ao público, tem que ser uma oferta muito generalizada.
A proposta que consta no Orçamento do Estado para 2019, e que prevê a redução do IVA nos bilhetes para concerto, é um passo que inverte essa lógica?
Certo, mas é um caminho muito lento. Quem faz arte fala por amor à camisola. Há, por exemplo, artistas que estão no final de vida, que estão doentes, e que precisam de proteção.
Como consegue passar para o público o “bom feeling” de que fala na sua música? Como trabalha essa paz de espírito num mundo cada vez mais stressante?
Isso é mesmo trabalho diário, não é nada adquirido. Respirar fundo às vezes hora à hora. Esse tema, por exemplo, foi num momento muito stressante, não estava nada com bom feeling. E a maior parte dos temas que faço é desse género. Aprendi isso na igreja, com as músicas de exaltação, o Gospel é feito para pôr o espírito das pessoas ‘up’, para motivar. São canções de motivação. É o poder da projeção, e não ver o resto, mas o resto está lá.
Sou só uma gota no oceano
Que marca pretende deixar na música portuguesa?
Não pretendo deixar marca nenhuma. Quero é fazer música, vivê-la, aproveitar as energias das pessoas à minha volta e a marca que fica, ficará. Mas eu sou só uma pessoa e a vida é breve. Sou só uma gota no oceano.
Mas ninguém se vai esquecer da Sara Tavares. Como gostava que a recordassem?
Não sei responder a essa pergunta
O que a preocupa no mundo?
Que as pessoas mais atentas e conscientes devem estar preocupadas, como nós, com todas as situações surreais que têm vindo a acontecer. Não só de agora, mas agora está cada vez mais à flor da pele. Há tráfico humano, tráfico de animais, há refugiados, há armas vendidas, há fome na Terra, há buraco no ozono, subida dos oceanos, muita coisa surreal quando temos tudo para ter um planeta equilibrado. Não tenho muitos comentários [a fazer], mas fico muito ansiosa com esta situação. Acho que cada um pode fazer o melhor dentro do seu próprio pequeno mundo, fazer a sua própria ecologia pessoal, familiar.
É uma pessoa atenta às notícias, segue a atualidade com atenção, ou é algo que a entristece e ainda contribui mais a ansiedade de que fala?
Não, não sigo muito.
A avó Eugénia queria que fosse feliz. A Sara Tavares é feliz?
Tenho momentos de felicidade, tenho momentos de frustração. Tenho uma vida colorida.