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"Há sempre harmonia e caos, silêncio e caos. E caos é insatisfação"

O entrevistado de hoje do Vozes ao Minuto é o artista António Zambujo.

"Há sempre harmonia e caos, silêncio e caos. E caos é insatisfação"
Notícias ao Minuto

09:20 - 19/12/18 por Melissa Lopes

Cultura António Zambujo

Tinha quatro, cinco anos quando a música lhe piscou o olho, na taberna ao lado da casa da avó, em Beja. O Cante Alentejano é, por isso, a sua primeira memória musical, a que se seguiu o fado. “Dois pilares onde assentam” a identidade do artista.

‘Do Avesso’, o novo disco de Zambujo, lançado há menos de um mês, e que já é ouro, foi o pretexto para uma conversa com o Notícias ao Minuto. Um disco filho de "muitos discos escutados". De Tom Waits, Paul McCartney, Brian Wilson e outros.

Tímido - "mas não a cantar", ressalva -, Zambujo diz não colocar expetativas nos seus trabalhos e está grato pelo sucesso que lhe tem permitido ter a liberdade de fazer as coisas “à vontade”.

Afirma não gostar de “zonas de conforto”, daí que esteja sempre à procura de “experiências novas".  Nessa busca incessante, "mas não desesperada", por algo, o processo criativo, conta, é constante. De tal forma que no seu telemóvel já tem 27 músicas novas.

‘Do Avesso’ porquê? Não é como se sente, pois não?

Não. Nem fui eu que dei o título ao disco, foi alguém do grupo. A justificação que me foi dada fez sentido: Influências que já existiam e que não eram tão evidentes em discos anteriores. Era como se tivesse de virar do avesso para ver que elas lá estavam.

Está a ser um sucesso, com um segundo lugar no top de vendas nacionais.

Está. Maldito David Carreira que me tirou o primeiro lugar [risos]. [Entretanto, Pedro Abrunhosa é quem lidera, permanecendo Zambujo em segundo lugar].  

Está a ser aquilo que esperava?

Tenho sempre desejo que as pessoas gostem daquilo que fazemos. Só isso é que nos dá liberdade para continuar a fazer as coisas à nossa vontade. Mas não crio assim grandes expetativas. As coisas têm corrido bem em todos os discos e nos concertos também.

E qual é a receita para isso? Para o sucesso?

Não existe receita.

Tem de existir.

Se existe, não sei explicar como é. É uma coisa tão natural, fazermos a música, estarmos no estúdio, estarmos no palco a tocar, reunir com as pessoas … se houvesse assim uma receita diria que é ouvir muitos discos.

A receita pode ser porque o Zambujo canta histórias que nos remetem para determinados lugares ou situações próximas. 

Isso é inspirado naquilo que os outros fazem também. Depois cada um dá o seu cunho pessoal. Não inventei nada. Essa forma de cantar vem do Chet Backer, do João Gilberto, do Caetano Veloso, de uma catrefada deles que eu ouço e que eu escolhi para serem meus mentores, digamos assim.

E a parte das letras também tem a ver com as pessoas que me rodeiam, o João Monge, o Miguel Araújo, Rosário Pedreira, a Aldina, o Pedro da Silva Martins, que são pessoas que me conhecem bem e que sabem aquilo que eu gosto de cantar. É como se tivesse a descrever à janela uma coisa que se tivesse a passar na rua. 

E quem ouve consegue colocar-se nessas situações, nos cenários que descreve.

Sim, são histórias do dia a dia. São coisas que podem acontecer a mim, a ti ou a qualquer pessoa. São histórias reais.

Quais foram as suas grandes influências que já existiam e que não estavam tão evidentes nos outros discos?

Muito Tom Waits, muito Paul MCartney, Brian Wilson,... Um disco de Rodrigo Amarante, que se chama ‘Cavalo’, também foi muito escutado. E depois os clássicos. Não escolhi aqueles discos específicos para ouvir, são coisas que vou ouvindo. Há alturas em que oiço mais umas coisas do que outras.

Antes do disco, durante a pré-produção, enquanto me reunia com os três produtores – Nuno Rafael, João Moreira e Filipe Melo – falávamos sempre muito destes discos, ouvíamos muitas músicas. O Harry Wilson, aquele disco maravilhoso da orquestra da Joni Mitchell ‘Boths Sides Now’, que é uma coisa fantástica. Tudo isso ia construindo na nossa cabeça um universo que é isto que está aqui.

Tem alguma música preferida, uma ‘menina dos seus olhos’, neste novo disco?

Isso seria o mesmo que perguntar qual dos meus filhos é o preferido... Gosto delas todas por igual. Há uma que me é mais querida. Uma música que é o 'Catavento da Sé', que é uma história na rua da minha avó.

 As pessoas que me conhecem sabem a ligação que tenho com a terraA ver a minha rua a ver passado”?

Sim. Essa letra foi feita pelo Miguel Araújo quando fizemos os três últimos concertos, na minha terra, em Beja. Fiz questão de lá ir tocar. Num desses três dias, andamos pela cidade e fui mostrar a rua onde eu brincava quando era miúdo, onde eu passava a vida. Essa letra é meio real meio ficionada, mistura o nome de algumas personagens, outras que existiram realmente. Mas o resto, a rua é efetivamente assim, vê-se o 'Catavento da Sé', a igreja da sé fica ali mesmo ao lado … e aquelas pessoas todas.

O Alentejo tem muita influência nas histórias que canta?

Tem, foi onde eu nasci e cresci. É natural que tenha muita influência. As pessoas que me conhecem sabem a ligação que tenho com a terra, apesar de ter mais com as pessoas do que com a própria terra. A energia da cidade sente-se.

Que história é aquela de ser a ‘rameira da música portuguesa’? Não é mau, pois não?

[Risos] É ótimo. Tudo serve para aprendizagem. Nos últimos anos, seguramente tenho sido o artista que tem feito mais duetos com outros artistas e isso é fantástico. É maravilho poder conhecer de mais perto a forma como os outros trabalham, a forma como compõe, a forma como estão em estúdio e em cima do palco, e também poder-lhes transmitir a minha a experiência.

É tão bom subir ao palco com alguém como é sozinho?

Depende. Neste caso sim porque são pessoas de quem eu gosto. Não faria um dueto com alguém com quem não me identificasse. Neste caso, sim, porque é complementar. A solo também não estás sozinho, estás acompanhado pela banda e há sempre influências.

E que duetos estão aí na calha?

Agora vou para um bocadinho com isso. Se não… [risos]. Estou sem duetos na calha mas aberto a todas as parecerias. 

Há algum artista com o qual sonha partilhar o palco?

Não, não tenho. Há muitas pessoas que gosto de ouvir. Quando gosto de ouvir, é mesmo enquanto ouvinte.

Os duetos que já fez foram convites que surgiram de parte a parte, naturalmente?

Sim. Não tem de haver uma coisa ‘Epah, gostava de cantar com aquele gajo’. Isso não acontece.

Nem com artistas internacionais?

Há um concerto que gostava de ver e que já desisti – que é o João Gilberto. Já tive três vezes bilhetes comprados e ele cancelou. E, hoje em dia, está com uma certa idade e provavelmente, não vai acontecer. E há outro que é o Tom Waits, esse provavelmente ainda terei oportunidade de ver ai vivo, nem que seja de uma das tournées loucas pelos Estados Unidos. Gostava mesmo muito de ver.

Recuemos novamente no tempo. Quando é que deu os primeiros toques na música?

Era muito miúdo, tinha para aí quatro, cinco anos. Brincava na rua, uma rua tranquila, onde jogávamos à bola, andávamos de bicicleta. E ao lado da casa da minha avó, havia a 'Taberna do Sintra' onde se juntavam os velhotes e logo, desde de manhã, começavam a cantar. Eu via aquilo e chamava-me a atenção e ia-me aproximando, a minha avó ia-me ensinando as letras e comecei a cantar com eles.

Sabia que a música ia ter um papel importante na minha vida

O Cante Alentejano tem muita influência no que hoje canta?

Claro, é a minha primeira memória musical. Foi por causa daquilo tudo que eu quis começar a cantar e que quis ser cantor.

Mas já sabia, nessa altura, que a música ia ser o destino?

Sabia que a música ia ter um papel importante na minha vida. Gostava muito de música, depois fui fazer a formação clássica, fui para o Conservatório, estudei música, depois clarinete, toquei na banda filarmónica dos Bombeiros de Beja, tocava em orquestras. Sentia que estava a construir ali uma identidade. Paralelamente, cantava num grupo de música tradicional do Alentejo que se chamava ‘Trigo Limpo’. Tudo isso foi uma aprendizagem, e era bom.

Ou seja, nem sequer equacionou outra profissão?

Gostava de arquitetura, mas nunca coloquei essa hipótese sequer.

Foi um caminho bem traçado desde sempre.

Sim, sim. Lembro-me de fazer um daqueles testes psicotécnicos, com dois primos, e de o psicólogo dizer, em relação a mim, que era só música. Não me lembro o que respondi, mas ele estava com a certeza absoluta de que ia ser músico.

Mas imaginava encher salas de espetáculo?

Não, claro que não. Mas lembro-me que toda a gente, família e amigos da família, dizia que gosta de me ouvir e isso ia-me dando confiança, apesar de depois haver uma altura, a fase da adolescência, em que nós não gostamos de nada, não queremos fazer nada. Não cantava ou, se cantava, era no quarto, era super envergonhado. Quer dizer, timidez ainda tenho mas não para cantar. Só depois mais tarde, com 16, 17 anos, voltei a cantar.

Se disserem que canto fado é porque são ignorantes

Regressa muitas vezes a Beja?

Vou cada vez menos, mas continuo a ir.

Os filhos gostam de lá ir?

Gostam.

Que idades têm?

O Diogo fez 20 agora, está a tirar o curso de Comunicação aqui na Católica, e o João tem oito. Gostam de lá ir, o Diogo nasceu lá. O João nasceu aqui em Lisboa, mas gosta muito de lá ir visitar a avó, as tias e os primos. Fica todo contente.

São críticos do trabalho do pai?

São. O Diogo é mais reservado, não diz tantas coisas. O João é super entusiasta e quer logo mostrar o disco todo, levou-o para a escola para mostrar aos amigos e à professora, quis fazer coro numa música - ‘Sem Palavras’ - , quis participar no videoclipe. É o palhaceiro da família [risos].

Sente orgulho …

Muito, muito. Diz que os Beatles são a segunda banda preferida. A primeira é a minha.

Como é que reage quando o chamam fadista e dizem que canta fado?

Se as pessoas disserem que canto fado é porque são ignorantes, não é?

Essa confusão surge porquê?

Comecei a cantar fado. O meu primeiro disco, em 2002, é um disco essencialmente de fados tradicionais. Cantei durante sete anos numa casa de fados e no ‘Senhor Vinho’. Há uma ligação forte com o fado, que é também uma grande influência para mim. O fado e a música tradicional do Alentejo são os pilares onde assentam todas as minhas outras influências, mas fadista, não. Isso seria até ofensivo para os outros fadistas. A música que eu faço é muito inspirada no fado, mas não é fado.

Fico muito feliz que as pessoas se identifiquem com as músicas e que as tornem imortais

A ‘Pica do sete’ e a ‘Lambreta’ são já quase como um B.I musical vitalício. O que é que sente em relação a isso?

Fico muito feliz que as pessoas se identifiquem com as músicas e que as tornem imortais. São músicas que fazem parte da história da vida daquelas pessoas. Quantos vídeos eu recebi já de pessoas em que a valsa do casamento é o ‘Pica do Sete’. Além desta e da ‘Lambreta’, ‘Zorro’, ‘Algo Estranho Acontece’, ‘Flagrante’… Há músicas que constroem momentos felizes na vida das outras pessoas, é uma experiência fantástica.

E esse, talvez seja, o objetivo final de cada música, criar momentos.

Acabamos por, inevitavelmente, sem querer e sem ser esse o objetivo principal, ser a banda sonora da vida das pessoas. É muito bom cruzar-me na rua com pessoas que dizem ‘a sua música já me fez muito feliz’. Às vezes até coisas mais complicadas, uma senhora que teve cancro e que felizmente curou-se, disse-me que durante a parte mais agressiva do tratamento que a minha música tinha ajudado a que ela recuperasse melhor. Acontecer isso é maravilhoso.

É o melhor que se pode ouvir?

É, sem dúvida.

E o pior?

Não se agrada a toda a gente. Há pessoas que não gostam e que fazem questão de mostrar que não gostam. Hoje em dia há muito isso, as pessoas gostam muito de dar opinião, mesmo que não lha peçam. Tento viver o mais longe possível disso, o Chico Buarque é que contava uma vez uma história: Estava com um amigo e pediram-lhe para mostrar o Facebook, que é gerida pela agência, e viu que há pessoas que fazem ‘like’ só para poder mandar o Chico à merda. E o amigo, espantado, dizia-lhe: ‘Pensava que todos gostavam de ti, afinal és tão odiado’ [gargalhada]. 

Hoje em dia há uma perfeita comunhão entre público e artista

É nas redes sociais que os 'haters' mais se concentram?

Deixei de ter redes sociais e não estou muito a par. Seguramente há muita gente que não gosta de mim. Faz parte.

Que tipo de comentários maus já ouviu?

Sei lá. ‘Deixa de cantar’; ‘essa música dá vontade vomitar’, etc. As pessoas gostam de dizer isso porque acham que criam algum mal-estar. Para essas pessoas, fazer os outros infelizes é, se calhar, a felicidade delas. Não têm capacidade para mais, são pessoas infelizes e tenho pena delas.

Tem muito sucesso lá fora, nomeadamente no Brasil. Por cá, Portugal ainda continua a tratar mal os nossos artistas ou isso já não é assim?

Agora já não. Já foi assim durante muito tempo, durante talvez demasiado tempo, mas hoje em dia há uma perfeita comunhão entre público e artista. Por exemplo, no top nacional de vendas, e nos dez mais vendidos, nove são portugueses. Há muito tempo que não se via nada assim. No meu caso, não me posso queixar de nada, seria muito injusto.

Como define o artista António Zambujo?

Sou músico, gosto de fazer música, tocar e cantar e de estar sempre a aprender, a explorar. Não gosto de zonas de conforto, gosto de estar sempre à procura de coisas novas e de experimentar coisas novas. Há sempre harmonia e caos, silêncio e caos. Tem de haver sempre qualquer coisa ligada ao caos.

O caos é o quê?

É uma insatisfação permanente.

Que o leva, por exemplo, a estar constantemente a escrever músicas?

Sim, não de uma forma ansiosa nem desesperada. Super tranquilo. A busca é constante e permanente.

Então, já está a imaginar o próximo disco…

O processo criativo é permanente. Não tirei uma época do ano para selecionar as músicas, há uma pasta no computador com músicas novas para os meus discos e para os discos de outros.

Li numa entrevista recente que tem 17 músicas novas no telemóvel.

Já são mais. [Mexe no telemóvel] Já tenho 27 músicas novas, aqui. Algumas ainda não tem letra.

E nada do que aí está vai ser desperdiçado?

Não. Isto fica sempre aqui. Podem não ser exatamente como estão aqui mas podem um dia mais tarde servir.

Perguntei quem era o artista. E quem é o homem?

É muito ligado à mesma coisa. Não há o artista sem o homem, nem o homem sem o artista. Uma coisa influencia a outra, até porque nós acabamos por nos moldar muito em função daquilo que ouvimos e eu, para o que faço, oiço muita música. Música essa que acaba também por me fazer como sou.

Se alguém compreende um gato, consegue compreender o universo”. É assim tão difícil compreender o universo?

Porquê? É difícil compreender gatos? [risos]. Já tive dois gatos e não os conseguia compreender. Isso é uma história muito engraçada que o Pedro Martins fez. As pessoas são induzidas em erro nessa música até à parte em que diz: ‘já pus leite no teu prato’. Os gatos são muito independentes mas cobram-nos a ausência. [A letra] tem a ver com isso. 

E o que é que o universo terá reservado para o Zambujo?

Espero que coisas boas. Tenho de ir à senhora das cartas que atira os búzios para ver o que vai acontecer [risos]. 

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