"A literatura, a escrita, surgem como necessidade de fixação da memória"

'Almoço de Domingo' é o mais recente romance de José Luís Peixoto. O escritor é o entrevistado de hoje do Vozes ao Minuto.

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© João Manuel Ribeiro/Global Imagens

Fábio Nunes
06/04/2021 09:25 ‧ 06/04/2021 por Fábio Nunes

Cultura

José Luís Peixoto

A memória é sempre um espaço especial. As memórias ajudam-nos a crescer, a aprender, definem-nos e podem ser determinantes na compreensão das pessoas que somos, em que nos tornámos. No seu mais recente romance, José Luís Peixoto mergulha nesse espaço da memória. Já o tinha feito em obras anteriores, mas em ‘Almoço de Domingo’ as memórias destacam-se ainda mais. São as memórias de Rui Nabeiro, um dos empresários mais importantes e respeitados de Portugal. 

O livro não é uma biografia, não pretende sê-lo, como o autor explicou ao Notícias ao Minuto nesta entrevista. É um romance com uma raiz autobiográfica importante. Nas memórias do senhor Rui, a personagem deste romance, pululam momentos da sua infância, da sua adolescência, da sua vida adulta, que ajudam a perceber o seu percurso e a forma como construiu um império. Nessas memórias sobressai, de forma constante, a importância da família.

José Luís Peixoto falou connosco sobre o desafio de escrever um livro baseado num homem com um património de memórias tão rico, e que caminhou de forma paralela a momentos fundamentais da história de Portugal, e até de Espanha, por força da proximidade de Campo Maior com a fronteira. 

O escritor também abordou a capacidade que a literatura tem de nos transportar para uma realidade diferente, algo que assume uma importância acrescida no período que enfrentamos. A Cultura e o momento que atravessa e as viagens em tempo de pandemia são outros dos temas desta entrevista. 

‘Almoço de Domingo’ foi publicado pela Quetzal Editores e já se encontra à venda. 

Como surgiu a possibilidade de escrever num livro as memórias de Rui Nabeiro?

Este livro tem de certa forma uma pré-história importante que tem que ver com os meus primeiros livros que têm uma raiz autobiográfica muito forte, que falam também eles de memórias, mas nesses casos memórias pessoais, que depois foram evoluindo a partir de certos livros para trabalhos de memórias alheias, digamos assim.

Tenho um primeiro romance em 2006 que se chama ‘Cemitério de Pianos’, que tem como figura central Francisco Lázaro, que foi uma personagem histórica, um corredor de maratonas que morreu em 1912. Tenho depois um romance que fala da emigração para França antes de eu nascer. O culminar disso é um romance que foi publicado justamente em 2019 e que se chama ‘Autobiografia’, e que tem como personagem central José Saramago.

Foi precisamente em 2019 quando estava a fazer apresentações desse romance que fui contactado por Rui Nabeiro, que era uma pessoa que eu conhecia à distância como muita gente conhece. Na época, não sabia sequer do que se tratava, mas fiquei muito curioso por ter esse contacto da parte dele. Fui ao encontro dele e ele falou-me do quanto tinha gosto em ver as suas memórias trabalhadas num âmbito de um texto biográfico. Achei logo muito impressionante contar com um património como são essas memórias. Estamos a falar de um homem que nasceu em 1931, e logo isso é muito relevante, mas além disso também estamos a falar de uma figura que tem uma história muito particular e muito cheia. Portanto, fiquei com muito interesse, e a contraproposta que lhe fiz mais tarde não foi a de escrever um texto biográfico no sentido mais convencional, mas escrever um romance que tivesse como base essas memórias e essa experiência. E foi assim que o livro foi depois crescendo.

O Rui Nabeiro aceitou essa especificidade e a partir daí fomo-nos encontrando, eu também fui recolhendo informação de múltiplas fontes e dele também, e assim se chegou a este romance.

Por que razão optou por este formato de um romance sobre uma personagem, que pela narrativa de imediato se percebe quem é, mas nunca sendo feita referência ao apelido?

Acho que há suficientes referências concretas, como por exemplo Campo Maior e outras que acabam por individualizar bastante. Ainda assim, é um romance, tem sempre uma ambição de universalidade, e nessa medida, neste contexto, esse senhor Rui é uma personagem. A pessoa existe noutro plano, aqui no âmbito do texto é uma personagem e é trabalhada como uma personagem. Posso dizer que, não obstante os elementos apresentados terem sempre essa raiz na realidade, no factual, há certos detalhes que foram trabalhados ficcionalmente, que eu de uma forma consciente optei por fazer uma gestão. É isso que acontece com a construção de uma narrativa ficcional. Se fosse um texto puramente biográfico, então teria de ter outras características. Teria de ser bastante mais exaustivo do que é e eu considero que este texto é sobretudo sugestivo. Não tem a pretensão de narrar absolutamente todos os detalhes da história de Rui Nabeiro, mas é muito importante que também possa ser simbólico, que também possa ser lido como um modelo, como um arquétipo de uma estória com a qual os leitores se possam identificar, como acontece normalmente com qualquer texto literário.

Que impacto teve para si que a personagem deste romance fosse Rui Nabeiro, um homem com uma história de vida rica, que em tantos momentos corre de forma paralela a momentos importantes da história de Portugal, mas também de Espanha?

Acho que esse é um dos aspetos muito enriquecedores de trabalhar um texto que ao nível do género apresenta este carácter híbrido de se afirmar como ficcional, mas também, claramente, ter vínculos importantes com a história. Para mim, que tenho mais ao menos metade da idade de Rui Nabeiro, é até muito esclarecedor ter a oportunidade de trabalhar circunstâncias como essas que não vivi, e acrescenta-me bastante ter esse trabalho e essa visão a partir de quem esteve lá e considera tudo isso muito mais concreto do que eu.

Para mim, essas circunstâncias têm um grau de abstração que tem que ver com esta imperfeição que nós temos de considerar que aquilo que testemunhámos é mais real. Há aqui certos elementos com os quais, em função do que tinha escrito antes, já tinha uma certa relação. Certos aspetos históricos, mas também a questão do Alentejo, essas especificidades desta estória permitiram-me alargar aquilo que já tinha trabalhado. No caso dessa relação com a fronteira, desse Alentejo com relação com a fronteira, de certa forma acrescenta um pouco ao Alentejo que tinha mencionado noutros textos, e isso também acabou por ser bastante enriquecedor.

A memória é um tema na literatura desde sempre. Em grande medida, a literatura, a escrita, surgem como uma necessidade de fixação da memóriaEnquanto escritor, qual o principal desafio ao escrever um livro baseado nas memórias de uma pessoa? 

Vendo mesmo da perspetiva de quem escreve e considerando o processo da escrita, aquilo que acaba por ser mais sensível é o compromisso e a responsabilidade que se assume com essa pessoa. Porque no caso de uma proposta como esta, em que o livro foi escrito sempre em contacto com o protagonista e sempre numa relação de confiança, em função da promessa que lhe fiz de honrar essa memória, claro que há ali sempre alguns detalhes ligados com as fronteiras da intimidade, até às más interpretações que eu possa fazer de um tema ou de outro. Tudo isso é muito sensível. Acaba por ser uma situação em que de uma forma muito concreta eu tento colocar-me no lugar de outra pessoa, e esse é sempre um risco muito alto. Quando a pessoa está presente tudo isso acaba por ser maximizado e há sempre interpretações diferentes, há sempre mal-entendidos. Esses são os principais riscos, acho eu.

Notícias ao Minuto O livro foi lançado no dia 25 de março© Quetzal Editores/Facebook  

O livro é pautado por diversos momentos que são pincelados por memórias que surgem de uma forma cuja ligação com a narrativa não é imediatamente percetível, mas que posteriormente encaixam. O facto de ser um livro que vive das memórias permitiu-lhe explorar mais este recurso durante o processo de escrita? 

Sim, eu fiz essa conjugação insistente do verbo lembrar por existir essa dimensão tão forte. O facto de ser uma personagem que está a chegar aos 90 anos faz com que haja ali uma certa intenção de balanço de vida. É do âmbito da biologia sabermos que 90 anos é uma idade avançada. Existe também um futuro mas sabemos que o passado é bastante maior, e olhar para ele acaba por ser bastante natural. E também por isso fazia bastante sentido que a memória tivesse esse tamanho no romance. A memória é um tema na literatura desde sempre. Em grande medida, a literatura, a escrita, surgem como uma necessidade de fixação da memória. Este livro, nessa medida, vai ao encontro de algumas das intenções mais elementares da própria escrita e da própria literatura.

É o primeiro romance que tenho em que há uma personagem que está presente em absolutamente todos os episódios e todos os momentos

De que forma Campo Maior molda esta personagem e a sua história, nomeadamente a perspetiva familiar que sobressai bastante no romance? 

De certa forma, Campo Maior e a família são duas faces de uma mesma temática que é a temática da origem, neste caso. A temática do passado, dessa dimensão ancestral. Quase diria de fazer parte de uma história que nos antecede e que nos continua. Aqui, em relação à figura do protagonista do livro, existem esses aspetos concretos. Trata-se de Campo Maior e daquela família em concreto, ainda assim também Campo Maior é um espaço que no âmbito do livro pode ser lido como um exemplo.

No passado já escrevi outros livros que também tratam dessa relação com as origens e desse ponto de vista geográfico, e aqui acontece, mais uma vez, voltar a essa questão, que acaba por ser muito forte na história de Rui Nabeiro e que coloca também questões importantes em relação à identidade que podem ser transpostas, acho eu, para as reflexões de cada um.

A minha poesia é bastante específica, pois tem um tom, um espaço que para mim é muito circunscrito

Na essência, o que significa para si um ‘Almoço de Domingo’?

Tenho muita consciência da importância de um título. Idealmente, deve ter uma perspetiva sobre todos os elementos do livro a que diz respeito. O título muitas vezes é o único fragmento de texto a que as pessoas têm acesso quando não conhecem o resto, e ao mesmo tempo marca muito todo o texto.

Por isso, chamar ‘Almoço de Domingo’ a este romance não foi uma escolha aleatória. Almoço de domingo, independentemente do valor que tem neste texto em concreto, é imediatamente uma imagem dessa reunião familiar à luz da nossa cultura. Isso acaba por ser um aspeto central neste livro, na medida em que esse é o grande valor que justifica esta vida que está presente em todas as páginas do livro.

Não há um único episódio em que não esteja presente essa personagem, o senhor Rui. Por acaso, é o primeiro romance que tenho em que há uma personagem que está presente em absolutamente todos os episódios e todos os momentos do livro. Não há episódios entre as outras personagens sem aquela. Portanto, aqui o almoço de domingo tem esse valor.

Pessoalmente, também coincido com essa perspetiva. Na verdade, também tenho múltiplos livros escritos onde a família é um elemento central e esse foi um aspeto que revisitei neste livro. Há outros textos que têm aspetos muito comparáveis com este. Inclusivamente há um caso muitíssimo concreto que tem que ver com a morte do pai. O meu primeiro livro chama-se ‘Morreste-me’, escrevi-o, pode-se dizer, bastante jovem pouco depois da morte do meu pai. E aqui no caso de Rui Nabeiro e da sua história também há a perda do pai aos 17 anos. Eu até creio que esse é um aspeto marcante e que fez muita diferença neste percurso de vida. E lá está, também aí esta ideia do almoço de domingo acaba por ser a reunião familiar como um objetivo. Primeiro, como uma memória de um tempo feliz, e depois como um objetivo a voltar a alcançar. 

Notícias ao MinutoJosé Luís Peixoto considera que, embora bastante afetada, a cultura tem sido ao mesmo tempo uma área essencial neste período de pandemia© Global Imagens  

Tem complementado a prosa com a poesia. O que é que a poesia lhe trouxe de diferente ou permitiu explorar relativamente à prosa? 

Esse é um assunto muito oportuno porque no ano passado, depois de 12 anos sem publicar um livro de poesia, voltei a publicar um livro chamado ‘Regresso a Casa’, que tem a particularidade de ter sido escrito num hiato da escrita deste romance. Interrompi a escrita deste romance mais ou menos entre março e junho de 2020 em função das circunstâncias e do que foi esta pandemia, e foi nessa altura que escrevi este livro de poesia, do qual curiosamente o primeiro poema foi escrito fez dia 29 de março um ano. Aquele que considero o primeiro poema, porque depois inclui alguns poemas que já tinha escrito antes, mas esse considero ser o primeiro porque foi efetivamente a partir daí que senti que estava a escrever um livro.

Para mim, tem muita importância, embora em alguns aspetos a poesia tenha de lutar para sobreviver naquele que é o meu quotidiano, uma vez que sendo eu profissional da escrita acabo por ter muitos compromissos que até surgem em função de questões práticas, colaborações com a imprensa e com vários meios, projetos diversos. E a escrita de poesia, que precisa de uma disponibilidade especial, que precisa de uma atenção e que não tem essa dimensão prática porque não tenho prazos para escrever livros de poesia, tem de procurar o seu espaço e essa também é uma das razões por que estive estes 12 anos sem publicar um título de poesia. 

Mas sinto a poesia como um lugar cada vez mais específico. Ou seja, é claro que em termos absolutos sei que a poesia pode ter muitas formas e leio, inclusive, poesia de muitas formas e com muitas abordagens. Mas a minha poesia é bastante específica, pois tem um tom, um espaço que para mim é muito circunscrito.

Há determinadas ideias, determinadas formas que associo logo à poesia. Isso tem que ver muito com as minhas limitações, não é nada de que tenha um orgulho muito especial, mas na verdade a minha poesia tem aquela forma e aquele tom e eu também estou confortável com isso. Escrever este último livro aconteceu muito a partir do momento em que assumi isso para mim próprio, assumi que não tinha de fazer nada que fosse absolutamente diferente ou que fosse uma rutura com o que tinha feito antes, mas que aquilo que para mim era natural era escrever daquela forma. 

Já agora, no caso da prosa, apesar de também ao nível dos romances existir uma certa coerência, sinto que experimento muito mais. Tenho textos de naturezas mais diversas do que no caso da poesia. 

Sinto que a própria incapacidade de planearmos o futuro, de imaginá-lo com todas as suas possibilidades, também nos limita de uma forma bastante opressora

Há um algum tema ou ideia para um livro que ainda não tenha concretizado?

Tenho muitas ideias que ainda não concretizei em livro. Para mim, o grande trabalho é sempre escolher qual vai ser a ideia que vou desenvolver, na medida em que o que faz a diferença é esse esforço de concretização. Porque ter ideias, encontrar conceitos que possam ser interessantes acaba por ser muito mais imediato do que depois dar-lhes continuidade. E neste momento tenho múltiplas ideias e múltiplos géneros.

Ao longo do tempo, por vezes vou perdendo algumas. Ou porque acho que não fazem sentido ou porque simplesmente deixo de acreditar nelas. Mas tenho sempre muitas ideias. Neste momento ainda estou um pouco a pensar, porque este livro foi terminado há bastante pouco tempo. Foi um esforço grande por parte da editora publicá-lo com esta brevidade, mas ainda bem que isso aconteceu porque também permitiu que o livro fosse publicado a tempo de ser contemporâneo do presente da sua narrativa, o que foi uma experiência bem invulgar.

Parte da magia da literatura, tal como o cinema ou o teatro, é a possibilidade de mergulharmos numa realidade diferente, num universo próprio. Isso sempre foi importante, mas em períodos como aquele que enfrentamos há mais de um ano, é um refúgio para a mente. Para o escritor, mas também leitor, José Luís Peixoto, qual a importância de desbravar esse caminho ao escrever um livro?

Essa é sempre uma circunstância da escrita e da leitura. Até se estivermos a ler ou a escrever sobre uma coisa que nos é muito próxima existe uma distância natural entre nós e as palavras, como diria o Mário Cesariny. Efetivamente, essa distância para mim, a partir de certa altura, até foi bastante confortável porque se há uma coisa que identifico neste período é uma certa claustrofobia, e uma claustrofobia dura, no sentido em que estar em casa por obrigação é bastante diferente de estar em casa por escolha.

Ao mesmo tempo, sinto que a própria incapacidade de planearmos o futuro, de imaginá-lo com todas as suas possibilidades, também nos limita de uma forma bastante opressora. Nessa medida, ter acesso a um outro mundo onde não existem essas limitações foi bastante confortável. Esse aspeto pode ser mais evidente em livros que falem de viagens, por exemplo, em livros do âmbito da fantasia ou que sejam mais ligados a utopias ou distopias, ainda assim acontece sempre. Nós temos na nossa tradição o Fernando Pessoa, que encontrou tantos em si próprio. E isso é um sinal da literatura mas também da natureza humana.

Tem um percurso já consolidado na literatura de viagens. Como é que tem sido viajar neste período de pandemia?

Incrivelmente, tive a oportunidade de fazer três viagens neste período. Estive em Madrid, na Alemanha, em Leipzig, num encontro à volta da literatura portuguesa, e nos Emirados Árabes Unidos, onde estive numa feira do livro no emirado de Sharjah, que fica muito perto do Dubai. Foi realmente uma experiência fora do comum. Neste momento, viajar é uma exceção. No que diz respeito a Leipzig e aos Emirados Árabes Unidos eu nunca tinha ido lá, e fiquei com a clara sensação de que estava a visitar esses lugares num momento de exceção e que as minhas memórias dessas viagens vão ter de conter sempre a indicação de que aconteceram neste período. Mas também me parece interessante assinalar que é sempre assim. Quando se visita um lugar, seja em que momento for, essa visita é sempre condicionada pelo próprio momento. Claro que esta circunstância torna tudo muito mais evidente, mas acho que às vezes há questões que nascem do momento que estamos a atravessar e que expõem aquilo que é sempre assim.

Até ao início desta pandemia, viajava bastante, às vezes até demasiado e não digo isto a queixar-me, porque sempre gostei muito de viajar e sempre aproveitei todas as oportunidades para o fazer. Agora, tem sido muito penoso não poder viajar. Não é que se pudesse viajava sem parar, mas simplesmente não ter essa possibilidade é quase como se estivéssemos impedidos de sonhar, de conceber. E eu acho que sonhar é fundamental, ter um horizonte é fundamental. Se deixarmos de ter a possibilidade de viajar, acho que isso seria um enorme passo atrás do ponto de vista civilizacional, já para não falar do ponto de vista económico e de todos os desenvolvimentos que daí surgem. Isso seria péssimo, e por isso tenho muita esperança de que vamos voltar a viajar. Quero muito acreditar nisso.

Muitas das exigências e dos sacrifícios que são feitos à Cultura são indignos

Do que sente mais falta quando viaja agora? Das pessoas, das multidões que costumam estar nesses locais? Antes até era habitual queixarmo-nos das multidões em locais mais turísticos. 

Sim, senti falta disso tudo. Acho que apesar de já estarmos há algum tempo nesta situação há muitas coisas em relação às quais ainda não nos habituámos. Quando chega a hora de cumprimentar com o cotovelo todos temos sempre de nos justificar e lembramo-nos que não nos podemos abraçar, apertar a mão, dar beijinhos.

E o mesmo acontece com estas imagens de lugares vazios, de lugares fechados, de todas as distâncias e cuidados que temos de manter. No fundo, da liberdade que perdemos, pois não podemos deixar de sentir que estamos limitados. Esperemos que esses limites nos sirvam para ultrapassarmos esta circunstância mais rapidamente e para sofrermos menos efeitos, mas também não podemos esquecer tudo o que perdemos. No dia em que aceitarmos isto como uma regra e como algo com o qual temos de viver para sempre, acho que perderemos bastante.

A Cultura tem sido uma das áreas particularmente devastadas pelos efeitos da pandemia. Que consequências isso poderá ter a médio-longo prazo para a cultura em Portugal, uma área que de forma crónica padece da falta de investimento?

É curioso porque a Cultura tem sido bastante afetada neste período, mas também é muito interessante verificar que tem sido ao mesmo tempo uma área essencial neste período. Há pouco falávamos da leitura e da forma como a leitura se tem mostrado bastante na sua vertente de possibilidade de viagem e de quase, diria, higiene mental, como alternativa para espairecer e manter uma certa sanidade. Mas recordo-me bem de todos os concertos através das redes sociais, a partir de varandas, de todas as formas como estas áreas culturais se têm tentado reinventar. Ainda assim, é muito difícil que se consigam reinventar a tal ponto que tornem um momento de tantas privações num momento viável sob o ponto de vista económico. 

Não nos podemos esquecer que existem pessoas por trás de todas essas manifestações culturais, umas mais visíveis, outras menos, e que essas pessoas apostam nisso o seu tempo, os seus conhecimentos, fazem a sua vida a partir desse trabalho. Acho que é justamente aí que assenta toda esta questão, é nesta palavra: trabalho.

Incrivelmente, ainda estamos num período em que muitas pessoas não reconhecem que o trabalho na área da Cultura é efetivamente um trabalho. Eu lembro-me que na Grécia Antiga os professores não recebiam vencimento. Era considerado indigno um professor receber salário porque tinha de lecionar pelos seus bons sentimentos e a troco da sua abnegação, e o salário era considerado uma troca impura. Acho que o próprio Platão defendia isso. Hoje já não pensamos assim. Sabemos que existe um trabalho, que há um investimento a múltiplos títulos. E no caso da Cultura também é assim. 

Nesse aspeto a Cultura tem de ser pensada como um elemento que tem relevância, que oferece um serviço e que é uma área determinante da sociedade. Muitas das exigências e dos sacrifícios que são feitos à Cultura são indignos. Esta ideia de que é um privilégio trabalhar na área da Cultura é um equívoco muitas vezes alimentado por pessoas que não têm muito conhecimento do que é a realidade desta área. Ou que a fazem como um hobby, o que também é legítimo e pode acontecer. Ainda assim, isso não deve ser a marca, a bitola para avaliar os outros que o fazem profissionalmente. 

No verão passado, foi anunciada a criação de um centro interpretativo dedicado a si em Galveias, a sua terra natal. Que significado tem para si esse projeto, que é uma homenagem à sua vida e obra, e que também reflete o impacto que a sua obra tem em Galveias?

Esse é um projeto da Junta de Freguesia de Galveias e eu fiquei muito feliz por saber que vai ser concretizado com o apoio do Turismo de Portugal. Desde logo disponibilizei-me para colaborar naquilo que fosse necessário da minha parte porque tenho muita satisfação que o meu trabalho possa contribuir para que alguma coisa de positiva e de concreta aconteça num lugar como aquele, que está muito longe dos centros de decisão e que pertence a uma região que se debate com tantas dificuldades.

Espero que esse espaço possa ser um polo de atração, porque o Alentejo e o Interior precisam de visitantes. Há pouco estávamos a falar de como muitas vezes no âmbito do turismo existe a queixa, que agora não existe, de haver muita gente. Nunca ouvi essa queixa no Interior. O Interior nunca se queixou de ter visitantes a mais. Serão sempre muito bem-vindos, claro, desde que as questões sanitárias o permitam. Sei que esse projeto está a avançar e espero que possa ser inaugurado num momento em que as pessoas estejam disponíveis para se movimentarem e desfrutarem desse espaço em pleno. 

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