'Rua dos Anjos', que integra a competição de longas-metragens do IndieLisboa, é protagonizado, escrito e realizado por Renata Ferraz, realizadora, e por Maria Roxo, que durante mais de vinte anos viveu do trabalho sexual.
Renata Ferraz, atriz, realizadora e investigadora, contou à agência Lusa que decidiu fazer este filme depois de ter interpretado o papel de uma prostituta no filme "Estive em Lisboa e lembrei de você" (2015), de José Barahona.
"Percebi que não entendia nada daquele universo, que era algo muito distante e que poucas pessoas sabiam falar sobre isso. Queria fazer um filme para me aproximar do trabalho sexual, para entender um pouco mais", explicou.
No entanto, Renata Ferraz não queria uma mera abordagem documental sobre alguém que vivesse da prostituição. Queria filmar uma mulher que falasse da sua vida, que lhe mostrasse o que é a prostituição e que fosse interveniente no processo de construção do filme.
A realizadora passou dois anos à procura da pessoa certa para o filme, até que conheceu Maria Gonçalves Roxo, que lhe entregou um documento com 90 páginas a contar a história de vida.
"A premissa era mesmo trocarmos algumas técnicas dos nossos ofícios, era o ponto de partida, mas ela chega não só querendo fazer um filme, mas [falar] sobre as histórias dela e desenhando uma outra narrativa que eu não tinha imaginado. Ela chega com esse gesto autoral e criativo", explicou Renata Ferraz.
O que se vê em "Rua dos Anjos" é o registo desse encontro entre uma realizadora e uma trabalhadora sexual, num estúdio, onde encenam e discutem detalhes sobre luz, planos e enquadramentos e falam sobre as suas experiências de vida.
Se por um lado Renata Ferraz tenta aprender técnicas e movimentos de sedução e ensina como usar uma câmara de filmar, Maria Roxo revela alguns detalhes da vida, marcada pelas drogas e pela prostituição, e como esteve completamente nas margens da sociedade.
Maria Roxo, 62 anos, nascida em Moçambique, conta que estudava Medicina, quando o professor de Filosofia, o músico José Afonso, incitou os estudantes a insurgirem-se contra o regime colonialista do Estado Novo.
Como castigo pela rebeldia, os alunos foram enviados para o serviço militar. Maria Roxo aprendeu a manejar uma arma, fez o curso de enfermagem e foi a tratar os doentes da guerra que teve acesso a morfina e que consumiu para se esquecer dos horrores da guerra.
"O meu princípio nas drogas foi em Moçambique, na tropa, na guerra", conta no filme.
Maria Roxo, que dizia que uma prostituta era uma atriz - "a prostituta é a melhor atriz que existe no mundo" -, morreu em 2017 de complicações decorrentes de vários problemas de saúde, quando Renata Ferraz estava na fase de montagem do filme.
"Tenho muitas histórias em bruto que não estão na montagem final. Optei por não incluir as cenas de que ela tinha dúvidas, apesar de servirem muito bem a narrativa do filme", explicou a realizadora.
Para Renata Ferraz, "Rua dos Anjos" é um documentário com algumas pontes para a ficção.
"O filme acaba tendo esse espaço para a imaginação, para o ficcional, porque é construído num espaço fechado. Mas aquilo é um registo de um encontro entre duas mulheres, em tempo real", resumiu.
"Rua dos Anjos", produzido pela Kintop, é uma das longas-metragens na competição oficial do IndieLisboa, e terá exibições hoje na Culturgest e no dia 05 no Cinema São Jorge.
O filme faz a estreia nacional no IndieLisboa depois de ter sido exibido em março no festival de cinema de Ann Arbor, nos Estados Unidos, onde recebeu um prémio do público.
O 19.º Festival de Cinema IndieLisboa termina a 08 de maio.
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