O escritor Afonso Reis Cabral revelou, esta segunda-feira, que a tradução e introdução de ‘O Meu Irmão’ (2014) e de ‘Pão de Açúcar’ (2019) no mercado dos Estados Unidos foram negadas por as obras abordarem temas “problemáticos para o mercado norte-americano”.
O escritor de 33 anos aproveitou ‘a boleia’ do administrador executivo da editora LeYA e presidente da Associação Portuguesa de Editores e Livreiros (APEL), Pedro Sobral, que expôs o caso com “quase dois anos” nas redes sociais, numa publicação em que ecoou as palavras da escritora Alice Vieira, a propósito de uma intervenção na CNN Portugal sobre o tema.
“Não tinha pensado em divulgar a resposta que uma editora norte-americana destacada me enviou sobre a hipótese de publicar os meus romances. Tanto mais que a rejeição tem quase dois anos. Mas o Pedro Sobral, sabendo agora do sucedido, insurgiu-se e falou do assunto publicamente. [...] A honestidade do email chega a ser tocante”, escreveu Afonso Reis Cabral, na rede social Facebook, sem revelar qual a editora visada.
O trineto de Eça de Queiroz e presidente da Fundação Eça de Queiroz revelou, contudo, a resposta em causa, na qual é descrito como “um escritor muito talentoso”. No entanto, segundo a nota, “a franqueza de ‘O Meu Irmão’ poderá ser problemática para o mercado norte-americano, onde estes assuntos são levados muito a sério pelos meios de comunicação social”, lê-se, numa referência ao livro que segue uma personagem com Síndrome de Down.
‘Pão de Açúcar’, que aborda o assassinato de Gisberta Salce Junior, uma mulher brasileira trans que foi, em 2006, encontrada sem vida no Porto, depois de ter sido agredida e violada por um grupo de 14 adolescentes, foi ‘barrado’ por ter sido escrito “por uma pessoa cis”, o que a editora qualificou como “outro assunto muito sensível”.
“Tentei encontrar uma pessoa LGBTQ+ que falasse português para escrever um relatório de sensibilidade, mas não encontrei ninguém. Por essas razões, decidi passar”, remata a nota.
Pedro Sobral, por seu turno, considerou, à semelhança de Alice Vieira, que “a reescrita de obras clássicas é censura e que é preciso ter em conta o contexto histórico em que foram escritas”, clarificando que “este cancelamento não toca apenas aos clássicos”.
“O Afonso Reis Cabral, um dos escritores mais talentosos no panorama literário europeu, viu dois dos seus livros a terem a sua edição nos EUA negados porque, no caso de o ‘O Meu Irmão’, um dos personagens que tem Síndrome de Down poderia levantar questões e, no outro, ‘Pão de Açúcar’, foi considerado que um homem cis a escrever sobre uma pessoa trans poderia também levantar outro tipo de questões”, expôs, através do Linkedin.
O responsável atirou que este “é o nosso tempo e não precisa ter em conta um certo contexto do passado”, uma vez que “é aqui e agora”. Ainda assim, lamentou que aos leitores norte-americanos tenha sido negado “acesso a dois livros extraordinários (mérito reconhecido até pelo mesmo editor americano, que não os edita pelas razões anteriormente indicadas), porque outros argumentos se levantaram além da mera qualidade literária das obras de ficção em causa”.
Pedro Sobral prosseguiu, atirando que “as personagens e o escritor são, de repente, também julgados perante o altar de uma nova moralidade e de uma espécie de preocupação pelos leitores que acéfalos têm de ser resguardados da literatura”, reiterando, à semelhança de Alice Vieira, que “isto é censura e, infelizmente, para os leitores americanos o Afonso Reis Cabral foi cancelado”.
“Por cá, onde a liberdade de escrever, editar e ler o Afonso Reis Cabral tem de ser protegida, continuaremos a editar com honra e alegria os livros do Afonso, com os personagens que melhor entender e quando e sempre que ele entender”, rematou.
Recorde-se que, em 2014, Afonso Reis Cabral ganhou o Prémio LeYa com o romance ‘O Meu Irmão’, traduzido em Espanha e publicado no Brasil e em Itália. Já em 2017, foi-lhe atribuído o Prémio Europa David Mourão-Ferreira na categoria de Promessa e, em 2018, o Prémio Novos na categoria de Literatura. Finalmente, em outubro de 2019, foi galardoado com o Prémio Literário José Saramago, com ‘Pão de Açúcar’.
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