A exposição 'Bicho Homem', que reflete sobre o convívio dos seres humanos entre Natureza e cidade, aterrou na Usina Luis Maluf, em São Paulo, no Brasil, onde esteve durante o último mês. Composta por 40 obras inéditas de Bordalo II, que faz do lixo arte, apela à sensibilidade sobre os efeitos da atividade humana nos equilíbrios da Natureza.
Tendo exposto no Brasil pela primeira vez, após 'Evilution', em Lisboa, ter atraído mais de 85 mil visitantes, o artista falou com o Notícias ao Minuto sobre a forma como a exposição decorreu, as diferenças (e as pontes) entre Portugal e Brasil e os assuntos que a sua arte aborda.
Como é que o público brasileiro recebeu as suas obras, comparativamente com os portugueses?
É um mercado totalmente diferente, há muito mais gente e o meu trabalho lá não é tão conhecido. Por isso, os murais que fizemos na rua tiveram um impacto muito positivo junto dos transeuntes. Quase ninguém tinha visto os meus murais e a cidade de São Paulo está muito acostumada a outro tipo de intervenção na rua. Quanto às peças na exposição, foram bem recebidas e a tendência preferencial, curiosamente, foi semelhante à de Portugal, quando comecei a fazer trabalhos para galeria.
Todos nós já tivemos objetos que não valorizámos e quisemos desfazer-nos deles e houve alguém que quis ficar com eles, que lhes deu valor
São Paulo é uma das maiores e mais cosmopolitas cidades do mundo. O facto de a sua obra falar tanto da cidade e do seu lado mais obscuro, dá-lhe um 'sabor' especial ao ter sido apresentada numa cidade destas dimensões, com problemas marcantes de desigualdades entre os seus habitantes?
Para esta exposição especificamente, quis abordar do tema da dualidade da cidade por isso mesmo, por ser em São Paulo. Quis dar-lhe mesmo esse 'sabor' agridoce.
Há quem diga que o lixo de um homem é o tesouro de outro. A sua obra é uma prova disto?
É uma frase que já usei para descrever a base do meu trabalho, por isso, sim. Acho que todos nós já tivemos objetos que não valorizámos e quisemos desfazer-nos deles e houve alguém que quis ficar com eles, que lhes deu valor.
Acredito que a arte devia ter sempre uma mensagem. Que os artistas devem ter algo a dizer e transmiti-lo através das suas obras
Utiliza materiais reciclados e tenta fazer as suas obras o mais sustentáveis possível. Que outras medidas tomou para reduzir a pegada causada pela sua criação? Por exemplo, elas foram feitas cá e transportadas para o Brasil, ou foram produzidas lá?
Todas as peças que vemos nesta exposição foram produzidas cá [no Brasil]. Tentamos, sempre que possível, produzir as peças nos locais onde as vamos instalar, até porque os lixos são diferentes e assim as pessoas que vão ver as peças conseguem identificar alguns elementos nelas, criando mais empatia com a obra.
O trabalho com o setor artístico brasileiro é semelhante ao português, ou difere? Que pontos de encontro têm? E de discórdia?
É diferente, ou pelo menos nós como portugueses temos de lidar com ele de forma diferente. Por exemplo, na Europa conseguimos ter uma gestão própria e somos bastante independentes no que toca a projetos e clientes. No Brasil, essa logística é diferente e precisamos da galeria como intermediário para conseguirmos concretizar esses projetos e efetuar vendas a clientes.
Acho fulcral que as grandes corporações, as que podem fazer verdadeiramente a diferença, se encham de cultura
Na atualidade, concorda que a arte, especialmente a arte plástica, com recurso a materiais reciclados, dando-lhes uma nova vida, é fulcral?
Acredito que a arte devia ter sempre uma mensagem. Que os artistas devem ter algo a dizer e transmiti-lo através das suas obras. Se a mensagem deles não for de sustentabilidade, ou mesmo que seja, na verdade, ninguém é obrigado a usar objetos desperdiçados na sua expressão, porque a expressão de cada um é única e pode não ser por aí o caminho de alguns.
Acho fulcral que as grandes corporações, as que podem fazer verdadeiramente a diferença, se encham de cultura e percebam que o mundo, as gerações mais jovens e muitos artistas, estão a evidenciar a todo o momento que eles sim têm de mudar políticas e formas de fazer as coisas, não apenas pôr símbolos verdes e folhas nos seus logótipos para parecer que estão a mudar de filosofias.
Quem marca presença nas exposições está alinhado com essa filosofia? Como tem sido o feedback?
Tenho sempre um feedback positivo nesse sentido, mas também sinto que muito público acha que faço uma grande diferença no mundo por usar materiais desperdiçados nas minhas obras. A diferença que posso fazer no mundo é a da mensagem que o meu trabalho transmite com os Big e Small Trash Animals, essa é maior que todo o lixo que já aproveitei para criar estes bichos. Apesar de serem toneladas e toneladas, não é nada comparativamente à poluição mundial que produzimos todos os dias.
Se o afastamento da Natureza levou o Homem para um lugar hostil, de opressão e violência, a seu ver, o que é que explica o êxodo rural ao longo dos anos? É um autoflagelo? Pode o Homem recuperar a sua ligação à Natureza na atualidade, ou estamos já demasiado ‘viciados' na vida urbana?
A evolução dos tempos fez com que o homem saísse do campo e fosse para a cidade em busca de novas oportunidades, mas, nos dias que correm, as coisas acabam por ser diferentes: a inflação, os preços da habitação/custo de vida nas cidades torna-se incomportável para quem procura oportunidades enquanto vive com rendimentos mínimos.
O que faz com que alguns jovens procurem estabilidade na sua vida no campo. Talvez este seja o primeiro passo para que o Homem volte a viver a sua vida mais perto da Natureza, sem ter de viver na correria da cidade em busca de mais dinheiro para poder viver nela, porque isso não significa qualidade de vida.
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