'Pátria', uma “distopia realista”, retrata um país dominado pela opressão de uma ditadura. Neste ambiente sombrio, dois grupos enfrentam-se num momento em que os movimentos extremistas crescem nas ruas.
O novo filme de Bruno Gascon estreia-se na quinta-feira, dia 19 de outubro, e aborda questões como a xenofobia e a liberdade de expressão.
Para o realizador português premiado a nível nacional e internacional, 'Pátria' é um alerta para uma sociedade em que vivemos "cada vez mais isolados, a cometer os mesmo erros, e a esquecer quais são as liberdades dos outros".
Protagonizado por Tomás Alves, 'Pátria' tem como principal antagonista o ator Rafael Morais. Do elenco fazem ainda parte Michalina Olszanska, Matamba Joaquim, João Vicente, Iris Cayatte, Raimundo Cosme, entre outros. Produzido pela Caracol Studios, o filme contou com o apoio da RTP, do Pic Portugal e do município de Barcelos, onde foi integralmente rodado.
Em conversa com o Notícias ao Minuto, Bruno Gascon falou sobre o filme que chega amanhã aos cinemas, mas levantou também o véu sobre o projeto que se segue.
Estamos cada vez mais isolados, a cometer os mesmos erros, a esquecer quais são as liberdades dos outros
Quando é que o 'Pátria' começou e ser pensado e porquê? Qual foi o gatilho para este filme com temáticas tão fortes?
O 'Pátria' começou a ser pensado depois de eu ter feito o ‘Sombra’, e comecei a pensar no tema exatamente pela atualidade. Vivemos num tempo de Trump, de Bolsonaro e, acima de tudo, num tempo em que, se olharmos com atenção, vemos que estamos a caminhar para uma situação negra - como a que se passa no filme. Estamos cada vez mais isolados, a cometer os mesmos erros, a esquecer quais são as liberdades dos outros.
Em 2024, o 25 de Abril celebra 50 anos. Sentiu que era preciso lembrar às pessoas o que é viver em ditadura?
Sim, senti. Eu não vivi o 25 de Abril, e acho que com o passar destes 50 anos as pessoas tendem a esquecer-se de como era aquela realidade. Vemos isso todos os dias, a história é cíclica e vamos cometendo os mesmos erros. Basta abrir as caixas de comentários de qualquer jornal para se perceber para onde estamos a caminhar. No outro dia perguntavam-me se eu achava que era relevante um filme destes em Portugal… Eu acho que o é em qualquer parte do mundo.
Ainda há poucos dias começou mais um conflito, antigo, mas que também tem que ver com isto, com o lado histórico em que nos esquecemos de como é estar do outro lado. Noutro exemplo, Itália tem um governo de extrema-direita… Mesmo num país altamente civilizado vemos este tipo de escolhas, e isso é algo que me assusta. Em Portugal, também já temos extrema-direita, embora não tão aguerrida. Estes grupos dizem o que as pessoas querem ouvir, utilizam chavões, problemas e, no entanto, não dão soluções.
Por tudo isto tentei mostrar como terá sido essa realidade, de uma ditadura, de pessoas a controlar pessoas. No caso do filme, uma realidade distópica.
É uma chamada de atenção, um alerta para que a história não se repita e que não voltemos a perder direitos e liberdades
Em que ditaduras se inspirou?
Em várias, na realidade. Na nazi, na de Mussolini… em várias. Na distopia de 1984, também… Mas o que tentei fazer foi pegar em coisas comuns entre elas, e mostrar como, em ditaduras, há sempre quebra de direitos e o crescimento destes grupos afetos ao regime que se forma.
O filme tem apenas duas mulheres, pertencentes a dois grupos opostos. Foi uma escolha intencional?
Foi intencional, sim. Normalmente, neste tipo de regimes ditatoriais, a mulher foi sempre subjugada e há sempre este lado patriarcal. As duas personagens, apesar de parecerem sidekick, são fortes e são, na realidade, quem cria ali mudanças. Na minha opinião, a mulher tem um espectro de emoções muito maior do que o homem e faz com que tenha uma personalidade forte e interventiva. O que quis foi mostrar esse papel feminino de mudança na sociedade.
Num momento em que os movimentos extremistas crescem por todo o mundo, semeando medo e guerras, qual é a mensagem que passa o 'Pátria'?
É uma chamada de atenção, um alerta para que a história não se repita e que não voltemos a perder direitos e liberdades. Quando comecei a escrever este filme, em 2019, isto era um tema atual. Passaram-se anos e ele continua atual. Os conflitos e o extremismo não param de crescer e acho que devíamos parar, refletir, e entender as diferenças entre os lados que se combatem.
O filme foi escrito e filmado em pandemia. Como foi falar sobre liberdade, privado dela?
Foi estranho, acima de tudo. Estivemos isolados em Barcelos, onde o filme foi totalmente rodado, com o apoio da Câmara Municipal. Para o lado técnico, ajudou bastante estarmos em pandemia. Não havia ninguém nas ruas, barulho do trânsito.. Nada. Mas não posso dizer que não tenha sido estranho. A rodar um filme sobre ditadura, completamente fechados, com recolher obrigatório tal como no filme…
A cultura não tem só o papel de entreter, mas também educar e levantar temas oportunos
Os seus trabalhos têm sido pautados por temas muito fortes. É algo que anseia, continuar a expor a sociedade a estas temáticas duras mas necessárias?
Até agora, sim, mas não quer dizer que não faça diferente no futuro. Até agora achei que era importante, fazê-lo de forma interventiva, mas eu também sou uma pessoa que não gosta de se sentir confortável. Acho importante falarmos sobre estes temas, para evoluirmos enquanto sociedade. Se não o fizermos, se os varrermos para debaixo do tapete, eles não vão desparecer, vão só tornar-se problemas maiores. É importante que continuem a existir os meus filmes mas também outros, e peças de teatro, por exemplo, que o façam. Porque a cultura não tem só o papel de entreter, mas também educar e levantar temas oportunos.
E sente que a cultura o tem feito?
Tenta… Mas chegamos a outro tema.
Fazer cinema em Portugal é quase um ato heroico, é masoquismo. É extremamente difícil pôr um filme de pé e quando se termina um começa logo a guerra por outro
O estado da cultura em Portugal…
Exato. É uma coisa secundária para o governo e para as pessoas. A cultura faz parte da educação de um povo… Se não lhe dermos essa importância fica difícil crescer. Fazer cinema em Portugal é quase um ato heroico, é masoquismo. É extremamente difícil pôr um filme de pé e quando se termina um começa logo a guerra por outro. Eu tinha a ideia utópica que depois do primeiro filme ficava mais fácil, mas não fica. Nunca. É sempre igual. Por isso acho importante que se perceba que sem cultura, somos um povo mais pobre. Vão ver cinema, bailado, teatro… Temos de ver cultura já que os governantes não dão nem 1% para o setor.
Coloca portanto o ónus nos governos…
E não só. A cultura e o cinema em si têm problemas estruturais. E eu coloco o ónus nas pessoas - e o Governo são pessoas - mas coloco-o nas pessoas em geral, que não dão valor ao que se faz por cá. Se as pessoas dessem valor e procurassem essa cultura, os governos teriam de ceder.
Mas os problemas são muitos, desde a distribuição aos apoios. São inúmeros pequenos problemas que, no fim, se tornam num grande problema.
Em notícias mais positivas, o 'Pátria' já foi premiado. Como tem acolhido o reconhecimento internacional?
O reconhecimento público do nosso trabalho é sempre bom e no final do dia é uma lufada de ar fresco, uma motivação para continuar.
Algum novo projeto em mãos que possa partilhar conosco?
Estou agora a terminar a pós-produção de uma série para a RTP, ‘Irreversível’, que foi filmada na Figueira da Foz. Fala sobre bullying, depressão, adoções ‘ilegais’... Mais temas duros. Estreia em breve.
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