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Livro sobre abuso sexual na infância vai ser editado em Portugal

O livro 'Triste Tigre', da escritora francesa Neige Sinno, vencedor do conceituado Prémio Femina, uma exploração literária e filosófica dos abusos sexuais sofridos na infância, por parte do padrasto, vai ser editado em Portugal em setembro.

Livro sobre abuso sexual na infância  vai ser editado em Portugal
Notícias ao Minuto

10:01 - 10/08/24 por Lusa

Cultura Neige Sinno

É difícil categorizar 'Triste Tigre' quanto ao género, pois, sendo uma obra de não-ficção, divide-se entre o relato das violações de que Neige Sinno foi vítima quando era criança, e o ensaio, sobre a violência sexual e o abuso sexual de menores.

 

Como descreveu, na altura da atribuição do prémio Femina, o jornal Le Fígaro, 'Triste Tigre' não é belo, terno, nem comovente, é "perfeitamente justo", e é "uma narrativa, uma autópsia, um ensaio e uma confissão", que "resiste à categorização e transborda dos compartimentos".

Este livro, publicado em 2023 e que terá a primeira edição portuguesa em setembro deste ano, pela Editorial Presença, venceu, além do Femina, o Prémio Goncourt des Lycéens, o Strega Europeo, o prémio do Le Monde, do Les Inrockuptibles e o Choix Goncourt de 14 países em todo o mundo, tendo sido ainda finalista dos prémios Goncourt e Médicis.

A primeira página de 'Triste Tigre' apresenta sem rodeios o retrato do homem que abusou da autora em criança -- 'Retrato do meu violador' -, quando tinha apenas sete anos, violações repetidas, sistemáticas e com uma "gradação crescente", praticadas ao longo de muitos anos, ao abrigo do silêncio e de mecanismos de controlo e dominação.

A seguir a autora faz o retrato do padrasto, procurando vê-lo pelos olhos da mãe, descrevendo o homem por quem ela se encantou, mas termina admitindo que não o consegue fazer, pois apesar de já ter escrito romances e novelas, que a dotaram da capacidade de fazer retratos, reconhece que aqui "não é a mesma coisa", porque o retratado "é ele" e a vítima é ela e, apesar da verdade objetiva que procura, "as recordações persistem".

Por altura da aceitação do prémio, Neige Sinno explicou ter escolhido a não-ficção para tratar este tema, porque era uma forma muito aberta que lhe permitia usar as ferramentas que tinha forjado ao longo dos anos no seu trabalho literário e ganhar a confiança de que precisava para ir até ao fim.

Não era o tema da violência sexual contra crianças que a assustava -- como explicou --, porque já o abordara muito no seu trabalho e porque é algo muito presente na sua vida. O que a assustou foi lidar com o assunto na primeira pessoa.

Neige Sinno, hoje com 46 anos, teria seis anos quando o padrasto, de 24, foi viver para sua casa e lhe começou a dizer que queria amá-la como se fosse a própria filha.

Neige recusava-se a tratá-lo por pai e resistia-lhe. Uma noite, este homem, que ela descreve como "alto e robusto, brutal até", junta-se a ela na cama e ela não ousa resistir. A noite duraria oito anos.

Aos 19 anos, decidiu quebrar o silêncio, denunciou o agressor, passou pelo julgamento público e saiu de França, depois da condenação.

Inicialmente, nem queria escrever este livro, mas o passado alcançou-a e Neige Sinno teve a certeza de que era preciso fazê-lo, e o resultado é uma obra que a escritora Annie Ernaux, Prémio Nobel da Literatura em 2022, descreveu como a "mais poderosa e profunda" que alguma vez leu "sobre uma criança devastada por um adulto".

Numa das partes de 'Triste Tigre', a autora reflete sobre o romance 'Lolita', de Nabokov, um texto que considera provocador, acima de tudo pelo ponto de vista através do qual a história é contada.

"Que o narrador seja o culpado, o pedófilo, e que o leitor seja obrigado, por intermédio da voz narrativa, a entrar na sua cabeça, a penetrar nos arcanos dos seus raciocínios, das suas justificações, das suas fantasias, eis o que torna esta leitura tão fascinante e perturbadora", escreve.

É através deste narrador, que Neige entra na cabeça do seu violador, porque percebe que os argumentos, as manipulações, o tipo de pensamento é o mesmo, e é por isso que encontra em "Lolita" "tantos pontos em comum" com a sua "sórdida história pessoal".

Neige Sinno explicou, numa entrevista, que só entrando na cabeça do seu carrasco o poderia destruir melhor.

O livro está dividido em dois grandes capítulos, divididos por sua vez em subtemas, sendo o primeiro --'Retratos' - dedicado aos abusos atravessando uma linha cronológica que vai da infância à atualidade, e o segundo -- 'Fantasmas' -- dedicado a reflexões sobre o sucedido, a partir do momento presente.

Na abertura do segundo capítulo, a autora tece "algumas considerações sobre o trauma", trinta anos depois, e afirma que mesmo depois de ter compreendido que tudo acabara, "a violação, a infância, a família", percebeu que nunca estará completamente livre, "porque nada termina de facto e, mesmo que nos tornemos outra pessoa, essa parte de noite continua também o seu caminho".

Na Neige Sinno de hoje, a memória exata do abuso permanece e ela confessa, no livro, que apesar de o padrasto já não estar presente na sua vida e de ela se ter aberto ao mundo, continua com a sensação de que a qualquer momento vira a cabeça e vê a sua sombra.

Como afirma a autora, as consequências da violação não se esgotam no domínio restrito da sexualidade, o espaço físico que o abuso ocupa é o do resto da vida, e a sua dimensão negra torna-se um duplo que se sobrepõe a tudo.

Por isso, este livro não é a história de uma criança que foi abusada, é a procura incessante de Neige para encontrar a verdade sem adornos, por conseguir ouvir a sua voz real e fazer o leitor escutá-la, sem reparação de danos e sem retórica da vítima, descreve a editora.

Ao jornal Le Figaro, por ocasião da atribuição do Prémio Femina, a escritora explicou: "Não escrevi este romance como uma provocação, mas como um desafio: ousar pensar, ousar refletir, ousar dizer".

"Mesmo que eu não soubesse com quem estava a falar, espero que o leitor que criei no meu texto e que existe hoje se atreva a pensar, a pôr ideias a funcionar, a fazer observações e levantar questões. Quando ouço alguém dizer-me 'fiz algumas perguntas a mim próprio', fico feliz", acrescentou.

O mesmo jornal escreveu que "Neige Sinno escreve sobre o incesto sem poesia ou 'voyeurismo': Poderia ter descrito o violador no seu quarto, os gestos, a violência. Preferiu não o fazer - exceto uma vez, e a cena é indescritível".

Neige Sinno tem 46 anos e vive no México com o marido e a filha. Formou-se em Literatura Americana e, além do trabalho como professora e tradutora, é autora de novelas, de um ensaio e de um romance, sendo agora publicada pela primeira vez em Portugal com '

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Triste Tigre'.

AL // MAG

Lusa/Fim

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