Em comunicado, a Editorial Presença, que chancela a edição, realça que "A Invenção do Amor", de 1961, é "uma obra-prima da poesia de resistência em pleno Estado Novo" e "o poema mais emblemático de Daniel Filipe".
O longo poema, uma distopia com referências óbvias à ditadura, descreve a perseguição movida contra duas pessoas que, pelo simples facto de se amarem, subvertem a ordem e a rotina, e põem em causa "a cidade, o país, a civilização do Ocidente".
Para o compositor Luís Cília, que conheceu Daniel Filipe e o musicou, o regresso de "A Invenção do Amor" às livrarias "é maravilhoso", por se tratar de uma obra-chave de "um grande poeta que vale a pena ser descoberto pelas novas gerações e não só a dos anos 1960".
A obra, há muito esgotada, teve a mais recente reedição em 2002, há 23 anos, segundo a Bibliografia Nacional Portuguesa, da Biblioteca Nacional, com base no Depósito Legal do mercado livreiro.
Cília referiu-se ao poema "A Invenção do Amor" como um "livro combativo". O compositor conheceu Daniel Filipe através do escritor Alfredo Margarido, que frequentava a Casa dos Estudantes do Império, em Lisboa, um núcleo de resistência à ditadura do Estado Novo.
Daniel Filipe era "um homem maravilhoso com um sorriso absolutamente luminoso, um bom conversador e muito informado", disse Luís Cília à agência Lusa, lembrando que foi através do poeta que conheceu o trabalho de Leo Ferré e Georges Brassens, o que mudou o rumo ao seu percurso. "Aprendi muito com ele", afirmou.
Originalmente publicado em 1961 pela antiga chancela Sagitário, o poema "A Invenção do Amor" entrou em 1969 para o catálogo da Editorial Presença, onde teve sucessivas reedições, depois de inaugurar a coleção Forma, acompanhado de "Canto e Lamentação na Cidade Ocupada" e "Balada para a Trégua Possível".
Em 1973, por iniciativa do editor fonográfico Arnaldo Trindade (1934-2024), "A Invenção do Amor" foi publicada em disco na etiqueta Orfeu - a mesma de José Afonso, à data -, num álbum dedicado à obra do poeta, que recuperava a gravação da obra pela sua própria voz, a par de outros poemas ditos pelo ator Mário Viegas.
"A Invenção do Amor" abre assim: "Em todas as esquinas da cidade/ nas paredes dos bares à porta dos edifícios públicos nas/ janelas dos autocarros/ mesmo naquele muro arruinado por entre anúncios de/ aparelhos de rádio e detergentes/ na vitrine da pequena loja onde não entra ninguém/ no átrio da estação de caminhos de ferro que foi o lar da nossa/ esperança de fuga/ um cartaz denuncia o nosso amor".
No prefácio, Francisco Espadinha (1934-2020), fundador da Editorial Presença, que arriscou a publicação do livro por três vezes durante a ditadura, fez notar que Daniel Filipe, neste poema, amplia "em substância a dimensão do amor à esfera de toda a solidariedade humana".
"É pela sua negação, pela sua impropriedade verbal, pelo contraste com o mundo em que se intromete, que a nova linguagem mina a certeza da outra, forçando até ao seu último limite o categórico da linguagem rigidamente submetida ao quotidiano até que esta se comece a desconjuntar, a tornar-se por sua vez desconexa e a perder terreno neste embate entre o real e o possível", escreveu Francisco Espadinha.
Daniel Damásio Ascensão Filipe nasceu na Ilha da Boavista, em Cabo Verde, em 11 de dezembro de 1925. Veio para Portugal, ainda criança, com a família, que se fixou em Lisboa, cidade onde concluiu o curso dos liceus. Viveu numa casa na avenida de Roma, espaço de muitas tertúlias e projetos. Perseguido pela PIDE, polícia política da ditadura, foi preso e torturado. Morreu em 06 de abril de 1964, aos 39 anos.
Daniel Filipe foi codiretor das Notícias do Bloqueio, uma série de nove cadernos de poesia editados entre 1957 e 1961, de raiz antifascista, que tomaram para nome o título de um poema de Egito Gonçalves. Colaborou com publicações como a Seara Nova e a Távola Redonda, revista para a qual dirigiu a coleção de poesia, o jornal Diário Ilustrado e a luso-brasileira Atlântico. Trabalhou na extinta Agência Geral do Ultramar, na área de informação, foi realizador da ex-Emissora Nacional, responsável pelo programa literário Voz do Império.
O poeta estreou-se nas letras em 1946 com "Missiva", seguindo-se "Marinheiro em Terra" (1949), "O Viageiro Solitário" (1951), "Recado para a Amiga Distante" (1956), "A Invenção do Amor" (1961), "Pátria, Lugar de Exílio" (1963). Arriscou o romance com "O Manuscrito na Garrafa" (1960), recebeu o Prémio Camilo Pessanha por "A Ilha e a Solidão" (1957), escrito sob o pseudónimo de Raymundo Soares.
A poesia de Daniel Filipe foi cantada por Luís Cília, Manuel Freire, Fausto Bordalo Dias. O poema "A Invenção do Amor" foi adaptado ao cinema por António Campos, em 1965.
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