Jorge Fernando, que acompanhou Amália e produziu álbuns de Mariza, Ana Moura e Maria da Fé, o criador de "Umbadá", que também colaborou com Sam the Kid no "Concerto Por Um novo Futuro", vai assinalar os 50 anos de carreira com "Tantos Fados Deu-me a Vida", espetáculo que partilha com "ídolos" do seu tempo, como José Cid, Tozé Brito, Rodrigo, cruzando universos, mas sempre com o fado como referência, e sempre leal ao seu caráter e à sua origem.
"O fado é isso tudo, uma ponte entre o passado e o futuro, uma passagem de testemunho oral", disse Jorge Fernando à agência Lusa, sublinhando que "a verdadeira escola do fado são as casas de fado e as associações de recreio".
Durante dez anos foi diretor musical dos primeiros álbuns de Nuno da Câmara Pereira. A decisão de passar de músico acompanhador para produtor e diretor musical "foi natural".
"Despertou naturalmente, penso que é importante, às vezes, ter a noção do todo, essa vontade de ver as coisas, peça a peça a juntarem-se, que me aproximou da produção".
O músico afirmou o seu fascínio, como produtor e diretor musical, por "ver construir as coisas, construir a obra, pensar que as peças por si só são bonitas, mas juntas serão capazes de chegar a algum lado. Uma frase de guitarra por si é muito bonita, mas será que tem a ver com o resto que está a ser feito? Será que joga e contribui para que tudo exista?"
A sua primeira composição foi a música para "A Trigueirinha", um tema "meio folclore com música de Arlindo de Carvalho", que António Mourão (1935-2013) cantava, e que Jorge Fernando "achava que era pouco fado". Assim, compôs uma nova, tendo-se seguido outras, como "Boa Noite Solidão", letra e música, "Meu Amigo João", letra sua para o Fado Corrido, e a letra de "O Arco-da-Velha", na melodia do Fado dos Sonhos, de Frederico de Brito.
O facto de o fadista Fernando Maurício (1933-2003) "ter gostado de algumas das coisas" que tinha composto foi "muito importante" para o então jovem músico e incentivou-o a continuar.
Jorge Fernando disse à Lusa que "só a sorte por si não justifica" a carreira que tem firmado. "É preciso talento". E acrescentou: "Os antigos gregos tinham um conceito, 'nur', uma corrente de pensamento onde tudo está plasmado, em que algumas pessoas têm capacidade de lá chegar e fazer as coisas".
Se o encontro com Fernando Maurício despertou o seu renovado interesse pelo fado, outro encontro "muito importante" foi com o guitarrista Alcino Frazão (1961-1980) que "despontava como guitarrista de eleição". Conheceu-o na casa Pico do Areeiro, em Massamá, nos arredores de Lisboa, através do fadista Nuno de Aguiar.
Jorge Fernando recordou que ficou "fascinado" com a sua forma de tocar e nunca mais se separou dele, até começar a tocar com Amália Rodrigues (1920-1999), no início da década de 1980, que acompanhou durante cerca de seis anos.
"Amália foi o culminar de todo o desenrolar de 'sorte' ou presentes que a vida me deu, na altura. Um menino com 20 anos, pronto a aprender, com o terreno todo preparado para que a semente fosse lançada e crescessem coisas, chega a uma pessoa [Amália] de tamanha sabedoria e capacidade. Foi uma enorme prenda da vida dada a esse menino que eu fui".
O músico referiu-se a esse período de trabalho como "profícuo", até pelo facto de ele estar "muito atento ao que se dizia e fazia", o que vai ao encontro da forma como se define: "Sou mais de aprender do que de ensinar, ainda hoje assim sou, apesar de ter ensinado toda a vida quem estivesse disposto a aprender".
O músico reconheceu que esta experiência o marcou. "Não seria hoje o mesmo, sem ter tido esse contacto com a Amália. [...] Talvez não estivesse preparado para perceber a tão grande importância de estar a tocar com a Amália. Quanto mais fiz e mais tempo por mim passou, mais ganhei consciência disso".
Jorge Fernando guarda uma dedicatória da diva, num álbum que gravou com a fadista, "Amália Volta a Cantar Valério" (1982), na qual afirma: "Jorge Fernando gosto de si, como de um filho". Para o músico, "isto explica bem o tipo de relação que tinham".
O criador de "Valsa dos Amantes" diz que vivemos "uma assunção do fado, com jovens a gostar do fado que é uma canção nacional, dado o nosso caráter sentimental que se expressa bem no fado", o que ultrapassa um período de "um certo provincianismo de vassalagem ao que era estrangeiro", em que o fado esteve mais recatado da cena musical.
O percurso de Jorge Fernando passou também pelo Festival RTP da Canção, em 1983 com "Rosas Brancas Para o Meu Amor", em 1985 com "Umbadá" e, em 1990, com "Via Aérea".
Experiências que aponta como "importantes, na medida em que o Festival, naqueles tempos, era uma montra, uma forma de chegar muito rapidamente às pessoas, todo o país parava para ver".
As participações nos festivais "foram fundamentais" para iniciar uma carreira a solo, reconhecendo que na época lhe custou "emocionalmente deixar Amália e correr o mundo inteiro com ela".
O músico tem projetos, "ultrapassar a preguiça" e compor para Ney Matogrosso, que o desafiou a trabalhar com ele, depois de ouvir o tema "Nossa Guerra" que Fábia Rebordão gravou no seu mais recente álbum, "Pontas Soltas" (2024).
Jorge Fernando afirmou que tem "sempre muita coisa para fazer". Há outros músicos brasileiros interessados em parcerias: Zeca Baleiro, Renato Teixeira, Zélia Duncan, de quem já produziu um trabalho. O músico tem aliás mantido uma regular colaboração com músicos do outro lado do Atlântico. Por exemplo: "Anjos Secretos", uma letra sua, foi musicada por Francis Hime.
"Tenho uma grande aproximação com alguns músicos brasileiros, simplesmente pela partilha da música, nem tanto por interesse das discográficas", realçou.
Para o músico, celebrar 50 anos de carreira musical é "amar a música como Arte, e celebrar a partilha e a amizade".
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