Projeto procura músicos que salvem instrumento cabo-verdiano da extinção

Domingos Fernandes fez carreira militar, com formação em Cuba e União Soviética, mas a história reservou-lhe um destino diferente, como um dos últimos guardiões da cimboa, num projeto para evitar que o instrumento cabo-verdiano desapareça.

Notícia

© Lusa

Lusa
09/03/2025 07:06 ‧ ontem por Lusa

Cultura

Música

A oficina ocupa todo o terraço da sua casa em São Domingos, arredores da cidade da Praia, onde é conhecido pelo nome de artesão, mestre Pascoal, que desde 2006 já ensinou 400 pessoas a encontrar as matérias-primas e a construir o instrumento.

 

Parece um violino na forma mais simples: o corpo é a cabaça seca ("bule") de uma abóbora amarga que ninguém come, as cordas são feitas de rabo de cavalo ou crina e a pele é recolhida de uma cabra não muito velha, nem muito nova, para ter o som perfeito, explica o artesão, entre as bancadas da oficina.

Estas características transformam a lista de materiais numa história complexa de resiliência para se chegar a uma cimboa genuína, tal a exigência e atenção que se impõe.

"Não haverá duas iguais. Não nos podemos dar ao luxo de fazer um braço muito alongado se não tivermos rabo de cavalo que chegue às duas extremidades", exemplificou.

Dos muitos formandos de Pascoal, poucos ficaram para perpetuar esta arte: a emigração levou quase todos os que, em 2022, entraram no projeto do Instituto do Património Cultural (IPC) com apoio do programa Procultura, do Camões -- Cooperação Portuguesa e União Europeia (UE).

Com estas partidas, "percebeu-se que valeria a pena redefinir o perfil", explica a diretora da área de património imaterial do IPC, Carla Semedo.

Ou seja, além de incluir desempregados, deve começar nas próximas semanas a formação do mestre Pascoal para músicos e professores, envolvendo escolas e associações musicais.

"O projeto vai terminar em abril e importa que haja continuidade, sustentabilidade, que não passe só pelo IPC, mas pela sociedade civil, pelas dinâmicas musicais e artísticas", aponta Carla Semedo.

"Deixar algumas cimboas nas escolas é um passo para que, juntamente com o piano ou a guitarra, também possa ser ministrada" em aulas de música, acrescenta.

O instrumento chegou às ilhas "na memória dos negros africanos, trazidos do continente", na época da escravatura, explica Domingos Fernandes, sendo o mais antigo instrumento de corda do arquipélago, o único sem origem na Europa ou nas Américas.

A tradição manda que acompanhe os grupos de batuque, mas tem potencial para se alinhar com outros géneros musicais e essa será uma das chaves para que não desapareça.

"O instrumento não tem limitação, quem tem limitação é o homem", refere, ao recordar memórias de juventude com festas improvisadas que incluíam voz e cimboa.

"O que é preciso é talento", só que "os jovens querem coisas com resultado imediato" e este não é um instrumento fácil no primeiro encontro.

Domingos Fernandes puxa pela última que fabricou, uma encomenda preparada para a embaixada cabo-verdiana no Brasil.

Para quem nunca pegou numa, é difícil arrancar-lhe um som: o arco desliza na corda, mas em silêncio, até que o mestre artesão o passa por resina e assume o comando, porque há uma posição certa para tocar -- e eis que as melodias começam a sair.

Apesar da formação em artilharia terrestre e mecânica, o antigo capitão cabo-verdiano que completa 65 anos em abril sempre preferiu o artesanato e ainda estava no ativo, em 2006, quando aprendeu a construir cimboas com Mano Mendes -- dois anos antes da morte da figura então mais ligada ao instrumento.

"Estou otimista" quanto ao futuro da cimboa, diz Pascoal, lembrando o ditado: "água mole em pedra dura... eu tenho um quarteto e, nos concertos, metemos sempre uma ou duas músicas com cimboa", descreve.

De volta à sede do IPC, na Praia, Carla Semedo mostra dezenas de cimboas construídas pelo mestre artesão e que estão guardadas para a formação que estás prestes a arrancar.

Além de alargar o leque de formandos, capacitar músicos e entidades da área artística, o projeto apoiado pelo Procultura deverá condensar conhecimentos recolhidos numa publicação científica e, espera-se, promover um espetáculo.

Carla Semedo está entre quem acredita no "potencial de criação e combinação" com outros estilos musicais, como resultado das oficinas de execução técnica das próximas semanas, uma esperança para colocar a cimboa em palco e, assim, dar futuro a uma sonoridade que se arrisca a desaparecer.

Leia Também: Mário Lúcio fez álbum para dançar que celebra independência em Cabo Verde

Partilhe a notícia

Escolha do ocnsumidor 2025

Descarregue a nossa App gratuita

Nono ano consecutivo Escolha do Consumidor para Imprensa Online e eleito o produto do ano 2024.

* Estudo da e Netsonda, nov. e dez. 2023 produtodoano- pt.com
App androidApp iOS

Recomendados para si

Leia também

Últimas notícias


Newsletter

Receba os principais destaques todos os dias no seu email.

Mais lidas