"Saber que muitos começaram a ler pelos nossos livros é comovente"

Ana Maria Magalhães e Isabel Alçada lançaram o 68.º livro da coleção 'Uma Aventura'. São as convidadas desta segunda-feira do Vozes ao Minuto.

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© Instagram/uma_aventura_no_ig

Mariline Direito Rodrigues
14/04/2025 07:30 ‧ ontem por Mariline Direito Rodrigues

Cultura

Ana Maria Magalhães,Isabel Alçada,Uma Aventura

Em 1982, ano em que lançaram o primeiro livro da coleção 'Uma Aventura' - neste caso, na 'Cidade', Ana Maria Magalhães e Isabel Alçada estavam longe de imaginar que, mais de 40 anos depois, continuariam a escrever histórias sobre as gémeas Teresa e Luísa, sobre o Pedro, o Chico e o João (não esquecendo, é claro, os cães Caracol e Faial). 

 

'Uma Aventura na Curva do Rio' é o mais recente livro da dupla de professoras com quem o Notícias ao Minuto esteve à conversa. 

Falamos sobre o processo de escrita, a importância da leitura na vida das crianças e jovens e sobre os desafios da adolescência num mundo cada vez mais digital. 

'Uma Aventura na Curva do Rio' é o nome do novo livro. Quem teve a ideia de ir para a curva do rio?

Ana Maria Magalhães: Fui eu que tive a ideia, porque não sabia ao certo onde é que íamos escrever no ano passado, mas como há muitos rios em Portugal pensamos: "Depois escolhemos um sítio bonito e perto da curva do rio", o que não falta em Portugal. Quando decidimos que iria ser na Golegã, por causa da feira dos cavalos, fomos ver os rios e ali passa o Tejo e descobrimos o Almonda, que nem me lembrava que existia. 

Isabel Alçada: Na parte de trás dos nossos livros é sempre anunciado qual será o título do próximo livro. A editora quer logo quando faz a capa colocar o título do seguinte. Procuramos títulos sugestivos e acabamos por nos conformar com o que temos [ri-se].

Isabel mostra a parte de trás do livro no qual se lê o título da próxima aventura: ‘Em Busca de um Navio Fantasma’. 

Isabel: Houve uma amiga minha que me telefonou e disse: "Já sei que tens o próximo livro completamente planeado" [ri-se às gargalhadas]. A ideia do navio fantasma surgiu-nos porque achávamos que tinha piada... 

Ana: O navio fantasma é uma coisa muito sugestiva. Disse o nome na escola e os miúdos ficaram perplexos. "Mas vocês não gostam?" E eles disseram: "Fazem sempre aventuras em sítios reais e o navio fantasma não é". Então revimos o assunto, daí 'Em Busca do Navio Fantasma'. Será em sítios reais, mas à procura de uma coisa imaginária. 

Nunca aconteceu escolherem um título e depois surgir um melhor para a história?

Isabel: Não…

Ana: Por exemplo, se o próximo livro for em Lisboa, podemos fazer o que quisermos. Se for um título vago 'Uma Aventura Secreta', "secreta" pode ser tudo e em qualquer lugar. Deixamos uma porta muito larga para não nos condicionarmos. 

Isabel: Vamos sempre aos locais onde as histórias se passam inspirar-nos para recolher imagens e informação. As aventuras são sempre autobiográficas, porque são as experiências dos autores naqueles lugares. 

Ao fim de 68 livros continua a haver inspiração ou há momentos em que ela não aparece tão facilmente?

Ana: Até agora não nos faltou. Na aventura na Madeira, por exemplo, nunca tinha reparado nas Ilhas Desertas. Fomos dar uma volta e eu disse à Isabel que aquelas ilhas iam entrar na história, só não sabíamos como.

Tentamos dar um ritmo mais acelerado a estes livros, mas curiosamente há muitos miúdos que gostam de livros que escrevemos há 40 anosHoje é tudo muito rápido. De certa forma, também tiveram que adaptar as histórias nesse sentido. 

Ana: Tentamos dar um ritmo mais acelerado a estes livros, mas curiosamente há muitos miúdos que gostam de livros que escrevemos há 40 anos. Por exemplo, ‘Uma Aventura na Cidade’, onde não há telemóveis ou computadores. Normalmente aconselho a começar pelos mais recentes, mas pelos vistos muitos gostam dos antigos. 

Todos os dias temos acordos e desacordos! Mas até o desacordo é estimulanteComo é o processo de escrita entre as duas? Já entraram em desacordo?

Isabel: Todos os dias temos acordos e desacordos! [diz, não contendo o riso] Mas até o desacordo é estimulante. A nossa atitude é diferente. O que ela [Ana] diz tem razão de ser. Ampliamos isto para toda a gente, talvez por sermos professoras, porque quando um miúdo diz uma coisa, ele tem razão para dizer aquilo que está a dizer. 

Ana: Põe as coisas noutros termos - que razão tem ele para dizer isto?

Isabel: Exatamente! O professor não pode rejeitar nada. Na nossa relação isso é muito vivo. Se não gostarmos mesmo, então desistimos e vamos para outra ideia. 

Ana: Uma vez estávamos a preparar uma história e eu tinha proposto à Isabel se podia ser um rapto de uma criança. Ela tinha acabado de ter o primeiro neto…

Isabel: Nem pensar, que horror! [ri-se]. Nunca escrevemos histórias que nos aflijam, fico admirada em como as pessoas conseguem escrever histórias terríveis, como constroem aquilo dentro de si. 

Perceber que muita gente começou a gostar de ler por causa dos nossos livros é extremamente comovente. Dá-nos imensa alegria saber que as pessoas foram aos lugares por causa dos livrosEntretanto iniciaram uma aventura nas redes sociais. Estavam à espera da quantidade de reações que receberam no TikTok e Instagram?

Isabel: Quando começámos, os primeiros livros traziam um postal e às vezes recebíamos dezenas por semana. 

Ana: Cheguei a receber 45 postais num dia! Mas de qualquer maneira, nunca pensei… Quando a minha neta disse que tínhamos de ir para as redes sociais, pensei que haveria alguém a ver. Agora, perceber que muita gente começou a gostar de ler por causa dos nossos livros é extremamente comovente. Dá-nos imensa alegria saber que as pessoas foram aos lugares por causa dos livros. Foi uma surpresa imensa esta reação do público. 

Isabel: Eu fiquei muito espantada… Tenho de confessar que tivemos de pedir à neta da Ana [que nos ensinasse] como é que se via as reações do público. Estamos permanentemente a trabalhar, ou a dar atenção à família. As redes sociais são muito exigentes quanto a tempo. Acho imensa piada ao digital, mas não gosto de perder tempo. Estar ali presa a uma coisa que eu nem sei para onde vai, não é comigo. 

Quando aparecemos enquanto dupla de escritoras, muita gente tentou formar duplas e não resultaram. Nós tínhamos quatro anos de ideias em comum. Sem saber, criámos uma forma de entendimento mental que nos facilitou na escrita a quatro mãos

Como é que se conheceram?

Ana: É uma história muito engraçada. Comecei numa escola de campo e depois vim para Lisboa, para uma escola nos Olivais. Estava na porta e apareceu a Isabel, assim com um ar de quem não conhecia ninguém, depois metemos conversa e descobrimos que éramos as duas estagiárias de Português e História. Perguntei: "o que é que fazemos agora? Vamos à direção?" E ela respondeu: "vamos é tomar um café!"

Podia não ter dado em nada, mas depois, como nos propuseram trabalhar em grupo, fizemos o estágio a trabalhar juntas e enquanto professoras. Suponho que isso tenha tido muita importância, porque quando aparecemos enquanto dupla de escritoras, muita gente tentou formar duplas e não resultaram. Nós tínhamos quatro anos de ideias em comum. Sem saber, criámos uma forma de entendimento mental que nos facilitou na escrita a quatro mãos. 

De certa maneira as duas desconstruíram os vossos egos.

Isabel: Nós temos um ego comum e temos outro individual. 

Ana: No caso da escrita, o que interessa é o brilho da obra. Se uma de nós for convidada para um programa bombástico de televisão, a outra não se importa nada, porque o que vai brilhar é o livro.

Isabel: Quando nós vamos, nunca deixamos de falar na outra, nunca!

Ana: A primeira vez que fomos à televisão foi muito engraçado, porque pensamos: "Isto vai ser assim sempre e fica arrumado". Umas pessoas diziam: "Tu estavas muito bem, a Isabel nem por isso". Outras pessoas diziam à Isabel: "Tu estavas muito bem, a Ana nem por isso". Vai ser sempre assim.

Isabel: As pessoas que não gostam de nós vão sempre achar mal e muitas vezes nem o dizem, por isso tanto faz.

Fazemos um esforço enorme para os nossos livros ficarem simples, corrigimos para tornar acessível, compreensível, tornar claro, para que a estrutura seja muito lógica, para transmitir aos mais novos uma coisa que possam entender bem

Quando os livros começaram a ter sucesso, os colegas de profissão ficaram contentes ou desvalorizavam?

Isabel: Quando lançamos os livros já tínhamos escrito histórias que dávamos em folhas aos alunos. Os nossos colegas da escola, mesmo pessoas com muita experiência, pediam as nossas histórias para dar nas aulas deles e isso é muito bom. 

As pessoas da nossa geração são bem educadas no sentido em que quando não gostam de uma coisa disfarçam, pelo menos na frente - ou não dizem, ou dizem uma coisa ténue. Acho péssimo quando uma pessoa é machucada por uma opinião de uma pessoa que é gratuita e que só diz aquilo por razões de inveja. Se há pessoas que ficam chateadas por termos sucesso tentamos não lutar, alheamo-nos. 

Ana: Houve pessoas que tentaram diminuir o que fazemos. "Isso é muito fácil", diziam.

Isabel: Sim, diziam que eram "redações". Mas se é tão fácil, façam também. Fazemos um esforço enorme para os nossos livros ficarem simples, corrigimos para tornar acessível, compreensível, tornar claro, para que a estrutura seja muito lógica, para transmitir aos mais novos uma coisa que possam entender bem. 

Ana: Às vezes entusiasmamo-nos e o livro fica pesado para crianças e já foram muitos capítulos inteiros para o caixote do lixo. O que nos encanta numa terra ou num sítio jamais é o que interessa numa criança ou pré-adolescente. 

Quando quiseram lançar a coleção foram rejeitadas por três editoras, só à quarta é que conseguiram. Isto mostra que podem existir diferentes perceções sobre um determinado livro. 

Isabel: Também era outra época... Havia muito menos editoras, menos poder económico para arriscar, neste domínio e noutros. Havia menos interesse em autores portugueses e menos investimento em literatura para a infância. Curiosamente foi um dos editores que não podia editar o nosso livro que disse para irmos à Caminho. 

Ana: "Está aí uma pequena editora que foi fundada há pouco tempo, que ainda tem poucos autores e se fosse a vocês experimentava, pode ser que eles queiram" [disse o editor em questão à época]. Eu já não ia com grande esperança, mas lá aceitaram. 

É fácil lidar com os nãos?

Isabel: Nós éramos muito novas e além disso somos muito persistentes. Até digo às pessoas: "Se vocês não quiserem digam não", porque quando não o dizem fazem-me perder tempo, que é uma coisa que eu detesto. 

Ana: Os autores ficam tristes quando dizem que não, mas é tentar. Sabíamos que tínhamos hipóteses de resultar bem, não esperávamos era que fosse tão bem...

Às vezes há pessoas que dizem: "Ou leio coisas de muita qualidade ou não interessa. Não é verdade!" Se a criança gosta de uma banda desenhada, deixem-na começar por aíComo é que veem a relação entre as crianças e a literatura, comparando o tempo em que começaram a escrever com o de agora?

Isabel: Durante um tempo verificámos que havia cada vez mais leitores crianças, a escola investiu muito na promoção da leitura e isso foi um fator muito positivo. Depois verificámos que houve uma diversificação de interesse e que muitos miúdos gostam de ler coisas mais instantâneas, livros pequeninos, com bonecos, porque estão muito influenciados pelas redes sociais e o uso do digital.

Mas é preocupante, porque para a pessoa se tornar um leitor completo tem de fazer um percurso e ler livros cada vez maiores, mais complexos. Estávamos na expectativa que houvesse um percurso mais previsível e com o digital presente no dia a dia, não é assim tão previsível. 

Pode acontecer - e isso seria uma catástrofe para a humanidade - que haja menos leitores. Se o digital induzir a uma diminuição do interesse pela leitura é muito mau para o desenvolvimento cognitivo de cada um.

Ana: Mas é um percurso, não é dizer que estes livros ou aqueles não vale a pena ler. Às vezes há pessoas que dizem: "Ou leio coisas de muita qualidade ou não interessa". Não é verdade! Se a criança gosta de uma banda desenhada deixem-na começar por aí. 

Isabel: Mas isto começa mesmo antes das pessoas saberem ler e estrutura-se na fase de aprendizagem da leitura. Primeiro ouvir ler, depois ler sozinho, depois ler alto, depois ler em silêncio. Esse percurso é crucial. 

Ana: É uma vacina contra a leitura, o que é um disparate! Já ouvi uma professora da faculdade a dizer "eles têm de ler o livro não sei quantos no secundário". E eu disse: "Mas se for assim, provavelmente não leem mais nenhum nunca". "Tudo bem. Se quiserem que leiam, se não, não leiam. Estes têm que ler”. Não, eles leem o resumo. 

A série ['Adolescência] é muito bem feita, mas induz a um erro crasso: pensar que aquele miúdo não tem uma patologia graveA Isabel falou da forma como o digital pode influenciar a leitura. Com o surgimento da série 'Adolescência' da Netflix, os pais de adolescentes ficaram em alerta. E aqui a literatura é importante, porque pode salvar os mais novos. 

Isabel: Pode salvar porque passam a ter mais poder crítico e de análise. O poder de análise leva a que as pessoas formulem a sua opinião e interpretem. A série é muito bem feita, mas induz a um erro crasso: pensar que aquele miúdo não tem uma patologia grave. O filme induz a isso porque a família é boa, estruturada, com valores. Agora, porque é que aquele miúdo entra naquele caminho? Porque tem uma patologia grave e isso vê-se na relação dele com a psicóloga, está implícito. A internet pode ter uma influência negativa, mas não leva um miúdo àquele extremo. Só por si não vai lá, é preciso que haja alguma coisa que explique aquilo. 

Ana: Eu acho que neste momento é muito difícil encontrar filmes e séries que não tenham violência…

Isabel: É claro que se um miúdo está muito tempo num quarto fechado é bom que os pais e com quem vive o puxem para o convívio, mas isso não se pode construir na adolescência, tem de vir da infância. É uma construção que demora muitos anos. 

Leia Também: Novo livro da coleção 'Uma Aventura' sai no mês de abril

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