A concretizar-se o tão aguardado retorno do futebol em Portugal, agendado para o próximo dia 3 de Junho, terão os clubes da I Liga, uma oportunidade verdadeiramente excecional de mitigar os elevados prejuízos económico-financeiros sofridos na sequência da atual crise pandémica. Também os respetivos parceiros comerciais respirarão de alívio com tal retoma, ávidos de promover as suas marcas e produtos. Por último, os adeptos, encontram-se ansiosos por assistir a jogos de futebol, concretamente dos seus clubes ou da sua Liga, ainda que na televisão, pese embora a enorme expetativa e reservas geradas em torno desta nova realidade desportiva.
Igualmente no campo das expetativas, ou melhor, das inevitabilidades, é de realçar a já anunciada intenção por parte de vários clubes de futebol ou respetivas sociedades desportivas (Clubes) em avançar para tribunal, impugnando, em defesa dos seus estritos interesses, decisões tomadas pela Federação Portuguesa de Futebol (FPF) e pela Liga Portuguesa de Futebol Profissional (LPFP) a respeito das classificações finais e/ou cancelamento das competições oficiais por si organizadas.
Como é do conhecimento geral, a atual pandemia paralisou praticamente toda a atividade económica nacional, incluindo o desporto e o futebol em particular, tendo as referidas instituições sido chamadas a decidir, com carácter de urgência, sobre o futuro imediato das competições que tutelam, a bem da modalidade, do desporto e, atendendo à sua relevância, em defesa do interesse público.
A FPF foi então a primeira a responder, cancelando, no dia 8 de Abril, as provas nacionais que tutela, das quais se destaca o Campeonato de Portugal. Posteriormente, no dia 30 de Abril, após controversa reunião entre o Governo e o Estado Maior do Futebol Português, decidiu o Conselho de Ministros, ainda que a título informal e que cumpre esclarecer, autorizar apenas o retorno da I Liga e a realização da final da Taça de Portugal.
Por consequência, importou definir os efeitos desportivos do cancelamento das restantes competições, tendo a FPF, de forma sumária e estritamente assente no critério do mérito desportivo (Nota: conforme diretrizes emanadas pela FIFA e UEFA), decidido promover o Futebol Clube de Vizela e o Futebol Clube de Arouca à II Liga. Por seu lado, coube à LPFP promover, com base no mesmo critério, o Clube Desportivo Nacional e o Sporting Clube Farense à I Liga, despromovendo o Casa Pia Atlético Clube e o Clube Desportivo da Cova da Piedade ao Campeonato de Portugal.
Com efeito, não estando regulamentarmente prevista uma solução para tal cenário, as referidas decisões foram tomadas em função daquele que se entende como sendo o critério desportivamente mais justo, ou seja, o do mérito desportivo, concretizado com base no número de pontos que os Clubes somavam aquando da referida interrupção das competições.
Naturalmente e tal como previsível, tais decisões não foram aceites de forma pacífica por todos os Clubes, em particular, por aqueles negativamente afetados, sejam os despromovidos, sejam os que viram frustradas uma eventual promoção de divisão, prometendo, alguns, desde logo, reagir judicialmente.
Numa perspetiva jurídica, claro está, há sempre uns e outros. No presente cenário, existe quem advogue que não estando previsto o cancelamento de provas no Regulamento de Competições da LPFP, esse diploma necessitaria de ser alterado por forma a permitir à Direção da LPFP tomar as decisões em causa, remetendo tal competência para a Assembleia Geral da LPFP. Em sentido contrário, existe quem defenda ser a Direção da LPFP competente para decidir sobre todos os assuntos que não estejam expressamente atribuídos a outro Órgão, conforme previsto no artigo 46.º, Par. 1, alínea a) dos Estatutos da LPFP. Já no caso da FPF, esta questão da competência não parece suscitar grandes dúvidas, em virtude do poder da respetiva Direção para proceder à alteração de regulamentos.
Outro assunto seguramente capaz de gerar litígios de natureza judicial, diz respeito ao mérito das decisões tomadas pela FPF e LPFP quanto ao cancelamento das competições, das quais se destacam a II Liga e o Campeonato de Portugal. Sendo que, alegadamente, e conforme veiculado pela comunicação social, nenhuma dessas instituições teve uma verdadeira alternativa, tendo a intervenção do Governo, por recomendação da Direção Geral de Saúde, determinado tal resultado. Independentemente dessa aparente imposição governamental, tais decisões não deixam de ser passíveis de serem atacadas em tribunal.
E foi precisamente nesse contexto, que tivemos conhecimento, já esta semana, da ação intentada pela Marítimo da Madeira – Futebol SAD, visando a impugnação judicial de tais decisões, não sendo de descurar a eventualidade de outros Clubes também já terem enveredado por essa via.
Processos esses que correrão termos junto do Tribunal Arbitral do Desporto (TAD), tribunal responsável por conhecer dos atos e omissões das Federações Desportivas e Ligas Profissionais, no âmbito da sua arbitragem necessária. Concomitantemente, poderão os Clubes, intentar uma providência cautelar com vista à suspensão dos efeitos dessas decisões até que a ação principal seja decidida, cenário esse cuja viabilidade considero meramente no plano teórico, na medida em que tal prejudicaria gravemente o já referido interesse público, fruto da instabilidade, verdadeiramente insustentável, que afetaria o panorama competitivo e que importa proteger de forma prioritária.
Ainda no contexto dessa inevitável instabilidade gerada em função da ausência de uma decisão final (transitada em julgado) em tempo útil de se recomeçarem as competições alvo de tais impugnações, acresce que qualquer decisão proferida pelo TAD poderá ainda ser alvo de recurso para o Tribunal Central Administrativo Sul e posteriormente para o Supremo Tribunal Administrativo e Tribunal Constitucional.
Como os leitores facilmente concluirão, porque a memória não é curta, se tais processos não confirmarem a atuação da FPF/LPFP, assistiremos uma vez mais à reintegração de Clubes em determinadas competições, através de decisão judicial, tal como recentemente sucedido com o Gil Vicente Futebol Clube.
Assim, na eventualidade de tais processos se confirmarem, entraremos num verdadeiro campeonato jurídico, algo que, seguramente, não beneficiará o futebol português, não obstante a validade das decisões tomadas pelas referidas instâncias desportivas ou dos argumentos de quem as desafia judicialmente, tão-pouco se questionando o legitimo recurso aos tribunais enquanto direito constitucionalmente consagrado. Certo é que, independentemente das soluções adotadas pela FPF e LPFP, existia uma absoluta necessidade de se decidir, e de forma urgente, num contexto excecionalmente grave e inédito, revelando-se simplesmente impossível fazê-lo de forma 100% consensual.
Aguardemos então pelos próximos capítulos.
Nota: Agradeço, de forma humilde, a contribuição, incansável e deveras preciosa, do Dr. Diogo Monteiro Rodrigues, no âmbito da presente rúbrica.
[Notícia atualizada às 16h25]