Dos estimados leitores, quem não se recorda dos tempos (em alguns casos, não muito longínquos) em que a aposta na formação de jovens jogadores foi encarada por grandes clubes de futebol, como uma medida de recurso, uma espécie de mal menor, em virtude da incapacidade financeira (por vezes, ilusoriamente temporária) de recorrerem ao mercado de transferências em pé de igualdade com os seus concorrentes diretos?
Ora, de aparente quase única solução, em particular, quando confrontados com longos períodos de graves dificuldades financeiras, a aposta na formação de jovens jogadores é, de há vários anos a esta parte, uma solução encarada como praticamente única por ainda assim inúmeros clubes, os quais, conscientes das suas limitações económico-financeiras, a consagram como elemento chave para o seu presente e futuro, tanto na vertente desportiva, como financeira.
Com efeito, o gradual investimento a que assistimos ao nível da formação, no panorama nacional e internacional, deve-se, em minha opinião, essencialmente a dois fatores distintos, embora complementares: desde logo, a dificuldade crescente para os clubes portugueses em acederem aos mercados principais e mesmo a alguns secundários, fruto da respetiva inflação exponencial, levando a que, relativamente a algumas contratações, se passe a encarar a formação como uma oportunidade única de continuarem a ser competitivos no plano desportivo; concomitantemente, estão os clubes portugueses cada vez mais conscientes da possibilidade concreta de realizarem mais-valias com a alienação de direitos económicos de jogadores, por si formados, graças à referida evolução do mercado de transferências, resultado direto de um aumento significativo do poder de compra dos clubes integrantes das principais Ligas Europeias, as denominadas “Big 5”.
Algo atualmente incontornável, decorrente de um incremento exponencial das receitas de sponsorização, merchandising e, acima de tudo, dos direitos de transmissão televisiva, ao longo dos últimos anos, e a que tem infelizmente escapado o futebol português, em virtude da dimensão (espera-se que, ainda) reduzida do seu mercado.
Não obstante, tal realidade viabilizou inúmeras transferências de jogadores a troco de quantias avultadas, ou mesmo milionárias, indiferente à dimensão dos clubes vendedores, cenário esse praticamente impossível de se concretizar há não muitos anos atrás.
São disso bons exemplos, as transferências de jovens promessas pertencentes a clubes Portugueses (não dos denominados 3 grandes), como foi o caso de Francisco Trincão, do Sporting Clube de Braga - Futebol SAD para o FC Barcelona ou de Edmond Tapsoba, do Vitória Sport Clube, Futebol SAD para o Bayer 04 Leverkusen, respetivamente por alegados €31.000.000,00 e €18.000.000,00.
Na verdade, o mercado de transferências, outrora algo limitado pelas fronteiras geográficas, é hoje em dia verdadeiramente global, no qual muitos clubes profissionais (e não só) operam, e com um conhecimento cada vez mais aprofundado.
Evolução a que não é alheio o aumento considerável da atividade de intermediação (não necessariamente positiva desde o ponto de vista qualitativo!), a proliferação de departamentos e empresas de scouting ou a consagração das sociedades desportivas enquanto instituições de cariz empresarial.
E é precisamente nesse contexto de mercado global e inflacionado que os próprios instrumentos de compensação por formação, embora algo conservadores na sua génese, vêm assumindo um papel cada vez mais relevante enquanto meios para acautelar o investimento realizado pelos clubes ao nível da formação, protegendo-os, minimamente, no plano desportivo, e compensando-os, generosamente, no plano financeiro.
Foi precisamente tal dicotomia, que levou a Fédération Internationale de Football Association (FIFA) a implementar dois mecanismos de compensação que se têm revelado igualmente fundamentais para efeitos do referido aumento de investimento na formação de jovens atletas.
Falamos da Compensação por Formação (ou Direitos de Formação) e do Mecanismo de Solidariedade (ou contribuição de solidariedade), instrumentos de compensação que hoje merecem a nossa (breve) atenção e que têm respaldo a nível internacional (Regulations on the Status and Transfer of Players, da FIFA) e nacional (Regulamento do Estatuto, da Categoria, da Inscrição e Transferência de Jogadores, no caso da Federação Portuguesa de Futebol).
Ora, a compensação por Formação é devida em dois momentos distintos e não necessariamente únicos, concretamente: (1) quando um jogador assina o seu primeiro contrato profissional e (2) quando este é transferido entre clubes durante a vigência do seu contrato de trabalho, ou após o seu termo. Sendo apenas devida compensação se qualquer desses factos originários ocorrer até à época desportiva em que o jogador completa 23 anos de idade.
Esta compensação deve ser paga dependendo de qual tenha sido o referido fator originário, a todos os clubes ou apenas ao último pelo qual o atleta em questão esteve inscrito no período compreendido entre o seu 12.º e o seu 21.º aniversário (ou 23.º aniversário, no caso do assunto não ter natureza internacional e ser aplicável a legislação nacional portuguesa). Já quanto ao montante concreto, este é calculado atendendo ao valor que o novo clube teria despendido na formação do atleta, caso o mesmo tivesse sido formado nesse clube, de acordo com montantes constantes de tabelas pré-definidas (Cfr. Circular FIFA no. 1673 e Comunicado Oficial n. 1 da F.P.F.).
No que diz respeito ao Mecanismo de Solidariedade, este de natureza ainda mais simples e objetiva, é ativado sempre que um qualquer jogador seja transferido entre clubes, a título oneroso, independentemente do valor da transferência, da sua idade ou do seu estatuto (parte-se do princípio que será profissional) devendo ser distribuído o valor correspondente a 5% do valor bruto da referida transferência, por todos os clubes pelos quais o atleta em questão esteve inscrito no período compreendido entre as épocas desportivas do seu 12.º e 23.º aniversários.
Ora, tais mecanismos de dimensão internacional e análise maioritariamente objetiva, foram introduzidos pela FIFA, na forma que atualmente os conhecemos, em Setembro de 2001, tendo deles já beneficiado, seguramente, milhares de clubes com equipas de Futebol 11 Masculino e em inúmeras ocasiões, o que confirma a sua enorme relevância.
Na verdade, os clubes mais humildes e com parcos recursos financeiros, muitas vezes com infraestruturas deficitárias, ocupam um lugar central na formação de jovens talentos, contribuindo de forma ativa para a formação e educação dos futuros craques mundiais, principalmente no que toca aos seus primeiros passos em competição, não sendo difícil de imaginar o que representa para tais clubes o pagamento de uma avultada verba de transferência ou a assinatura de um primeiro contrato profissional envolvendo um atleta que tenha passado pelos seus quadros da formação.
Valores esses não raramente equivalentes ou mesmo superiores aos seus orçamentos anuais, sendo disso exemplos o valor a que o Real Sport Clube teve direito a título de Mecanismo de Solidariedade aquando da transferência do atleta Luís Carlos Almeida da Cunha “Nani” para o Manchester United FC ou o valor recebido pelo Centre Salif Keita aquando da transferência de Mahamadou Diarra para o Real Madrid CF. Inclusivamente, clubes profissionais de grande dimensão, agindo como uma espécie de formadores de elite, também beneficiam sobejamente de tais mecanismos (nomeadamente ao nível do Mecanismo de Solidariedade) deles obtendo considerável retorno financeiro.
A título exemplificativo e certamente como os leitores poderão facilmente presumir, os três grandes clubes portugueses têm beneficiado largamente com as sucessivas transferências de jogadores como o já referido “Nani”, Cristiano Ronaldo, Ramires, Di Maria, Radamel Falcão ou Givanildo Vieira de Sousa “Hulk”, entre muitos outros. Contudo, apesar da demonstrada relevância de tais mecanismos e de um conhecimento cada vez mais generalizado desta matéria (em termos teóricos, diga-se de passagem), números recentes demonstram que muito do seu potencial está ainda por concretizar.
Com efeito, dados de 2018 providenciados pela FIFA, indicam que na sequência das transferências ocorridas nesse ano, deveriam ter sido distribuídos aproximadamente USD 351.500.000 a título de Mecanismo de Solidariedade, sendo que apenas deram entrada nos cofres dos clubes cerca de USD 67.700.000 (19,26% do total), totalizando apenas cerca de USD 90.000.000 se também incluirmos os valores liquidados a título de Direitos de Formação.
Mais preocupante é ainda o fato desta percentagem ter vindo a diminuir nos últimos anos, tendo em conta que em 2013, por exemplo, foram distribuídos pelos clubes formadores 28,1% do total gerado a título de Mecanismo de Solidariedade. E é precisamente por forma a inverter tal evolução negativa, que a FIFA elaborou um plano tão ambicioso, quanto desafiante.
O organismo que tutela o futebol mundial irá assim criar uma denominada “Clearing House”, a qual (entre outras competências), juntamente com a restante administração da FIFA e respetivos órgãos jurisdicionais, será responsável pelo cálculo e distribuição dos montantes devidos a título de Direitos de Formação e de Mecanismo de Solidariedade, a nível internacional.
Atrevo-me assim a concluir que tais instrumentos de compensação por formação, revestidos de grande importância para a generalidade dos clubes, têm, per se, potencial mais do que suficiente para obrigar e até motivar todos os agentes desportivos a respeitá-los, continuando assim a desempenhar um papel central e cada vez mais relevante no desenvolvimento da modalidade. Algo a que seguramente não é alheia a intenção da FIFA em aumentar, a curto prazo, os próprios valores de compensação...e talvez já em 2021.