"O projeto, neste momento, é não voltar à Ucrânia enquanto a guerra não acabar. Isso não significa que continuemos em Split ou na Croácia. O final da temporada está a aproximar-se rapidamente e estamos à procura de um sítio que nos possa dar um pouco mais de condições para voltarmos a ter uma abordagem profissional ao treino", contou à agência Lusa o diretor da academia dos 'mineiros', que abandonou Kiev aquando do agravamento da situação político-militar no país e tem trabalhado a partir de solo croata.
A ofensiva militar lançada a 24 de fevereiro de 2022 pela Rússia na Ucrânia já ocasionou a fuga de mais de 14 milhões de pessoas - 6,5 milhões de deslocados internos e mais de 8,1 milhões para os países europeus -, de acordo com a ONU, que encara esta crise de refugiados como a pior em plena Europa desde a Segunda Guerra Mundial (1939-1945).
"Uma das condições que pus ao clube foi não me sentir obrigado a voltar e eles disseram que jamais me iam pedir isso, também partindo do princípio de que cerca de 60 a 70% da academia está fora do país. A equipa principal tem disputado os jogos do campeonato na Ucrânia, onde também temos os sub-19, que estão sob a minha responsabilidade. Não voltei à Ucrânia nem faço tenções de voltar enquanto a guerra estiver a decorrer", notou.
Lembrando que a invasão russa "era inicialmente um pouco desvalorizada pela Ucrânia", Edgar Cardoso, de 39 anos, acordou de madrugada com os primeiros bombardeamentos em Kiev e "passou por uma situação que ninguém quer", sempre com "muitas emoções à mistura".
"Tive a ajuda fantástica da nossa embaixada, que foi responsável pelo meu transporte de Kiev até à Roménia, via Moldova, e finalmente para Portugal. Ainda estive em cenário de guerra naquelas primeiras 24 horas, quando tudo é imprevisível e nunca sabemos o que nos espera ao virar da esquina, seja pelo ar ou por terra. Houve muitos nervos e aflição, mas correu bem para o meu lado", observou, numa 'odisseia' que vigorou por "três dias".
O diretor da academia esteve "cerca de um mês" no seu país-natal, enquanto o Shakhtar Donetsk "aferia as intenções da Rússia e percebia que a guerra iria ser de larga escala e de longa duração", tendo evacuado "o máximo de atletas possíveis" para o estrangeiro.
"Esses primeiros contactos foram feitos pelo diretor de futebol, Darijo Srna, que é croata. Naquele momento, muito mais do que o futebol, a prioridade era encontrar um sítio onde pudéssemos ficar. Com isso, juntei-me a eles a partir da Croácia e comecei a contactar o máximo de clubes para tentar encontrar disponibilidade e podermos voltar a ter atividade relacionada com o futebol", explicou o ex-treinador da formação do Benfica (2002-2014).
A "vida normal de treinos e de jogos" foi recuperada com a cedência de instalações por parte do vice-campeão croata Hajduk Split ao Shakhtar Donetsk, cujas equipas entre os escalões de sub-12 e sub-15 estão a residir num hotel daquela cidade da costa dálmata.
"Treinamos quase diariamente, temos feito muitos jogos amigáveis e conseguimos junto da Associação de Futebol da Dalmácia, região à qual pertence Split, registar as nossas equipas em campeonatos regionais. A escola é feita por via online, mas quase de forma presencial. Os atletas ficam separados por três salas grandes, tendo em conta os vários anos, e ligam-se aos professores que estão na Ucrânia através de projetores", detalhou.
Vinculado ao clube ucraniano desde 2020, Edgar Cardoso passou a dirigir "cerca de 110 jogadores", contra os "sensivelmente 150" somados antes da invasão da Rússia, com as tecnologias a agilizarem o contacto de quem evolui fora do país com os seus familiares.
"Há mães a vir com bastante frequência à Croácia para passarem algum tempo com os seus filhos e ajudarem a que eles se sintam acompanhados e não tão sozinhos. Já não é tão fácil para os pais fazerem o mesmo, devido à lei marcial, visto que os maiores de 18 anos não podem abandonar a Ucrânia. Só em situações muito especiais", reconheceu.
Apesar de o Shakhtar Donetsk não ter tido desistências de jovens atletas com a eclosão da guerra, o desejo de acalentar uma carreira profissional incitou vários deles a rumar às equipas de base de outros clubes europeus, tais como FC Barcelona e Bayern Munique.
"A equipa de sub-17 é muito especial, já que se tinha desmembrado e agora é composta por jogadores que não eram do clube antes de a guerra começar. Não posso dizer que seja uma equipa do Shakhtar Donetsk. Falta-lhe claramente identidade, mas queríamos criar uma que pudesse alimentar os sub-19 na próxima época", concluiu Edgar Cardoso.
O maior símbolo futebolístico do confronto entre o exército ucraniano e separatistas pró-russos foi forçado a separar-se da sua cidade-sede e da Donbass Arena em 2014, após Moscovo ter anexado a península da Crimeia, refugiando-se entre Kiev, Kharkiv e Lviv.
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