O nome de Ricardo Pereira já se 'espalhou' por três continentes - desde a Europa à Ásia e à América do Sul - e a verdade é que a Arábia Saudita foi um dos países repetidos pelo atual treinador de guarda-redes do Real Valladolid, contando com uma experiência que jamais irá esquecer - a de ter exercido funções de treinador principal.
Em conversa com o Desporto ao Minuto, o técnico de 49 anos detalhou as suas passagens pelo campeonato que tem atraído grandes craques do futebol mundial, apontando diferenças visíveis entre o que viveu no Al Fateh (com Ricardo Sá Pinto, em 2016/17) e no Al Taawon (em 2021/22, numa época em que chegou a ser orientado por José Gomes).
"Eu vinha de um contexto de trabalhar com os melhores do país no mundo da formação [no Benfica] e cheguei à Arábia Saudita cheio de sonhos dentro daquilo que era a minha metodologia de treino, sobretudo na forma como eu queria ajudar a equipa técnica a moldar o seu jogo, com o guarda-redes à disposição para o processo ofensivo e defensivo", começou por contextualizar.
"Deparei-me com uma realidade diferente em que tinha de regressar à base, dando se calhar quatro ou cinco passos atrás no meu trabalho no Benfica. Havia bases que não estavam consolidadas naqueles rapazes, em torno de coisas realmente básicas, fosse com os pés ou com as mãos. Logo aí foi uma primeira experiência de 'abrir os olhos' para arranjar a melhor forma de ter sucesso. É um conhecimento que se adquire e que foi fundamental para o momento em que regressei à Arábia Saudita [em 2021/22]", contou de seguida.
Disseram-me que não iam contratar ninguém e que eu ficaria como treinador principal, juntamente com um árabe (...) Estávamos abaixo da linha de água. Não era minha ambição, nem sonho, mas estava com aquilo em mãos e tinha de 'safar' a coisaFoi precisamente nesse momento que o inesperado aconteceu. Ricardo Pereira voltou à Arábia Saudita com a expectativa de integrar a equipa técnica de José Gomes, mas acabou depois por trabalhar com John van den Brom, até que houve novo despedimento no Al Taawon. O que se passou a seguir foi o que o técnico de 49 anos nos explicou.
"Apareceu, por uma 'loucura', um convite do Al Taawon, onde tinha estado o José Gomes, sendo que depois acabei por me cruzar com a equipa técnica de um neerlandês [John van den Brom]. Estava a treinar os guarda-redes do clube. A história é uma delícia, mas podia ter acabado muito mal. Lembro-me que jogámos na Liga dos Campeões da Ásia e não nos qualificámos, sendo que, ao fim de um mês e tal, já o tinham despedido", revelou, antes de apontar a solução (inimaginável) encontrada pelo clube: "Disseram-me que não iam contratar ninguém e que eu ficaria como treinador principal, juntamente com um árabe que lá estava [Mohammed Al-Abdali]. Estávamos abaixo da linha de água. Não era minha ambição, nem sonho, mas estava com aquilo em mãos e tinha de 'safar' a coisa".
"Aquele novo treinador nunca tinha aberto um computador na vida. Toda a análise da equipa e do rival, bem como as bolas paradas, passaram a estar tudo sob a minha responsabilidade e, felizmente, safámo-nos. Naquele ano esteve muito perto de descer de divisão e foi aí que me cruzei com o Cássio, que tinha feito um trajeto interessante no futebol português. Dizia-lhe 'Oh Cássio, espera aí um bocadinho que eu vou ali treinar a equipa e já cá venho dar umas 'boladas' no final do treino'. Ele ria-se, mas foi muito importante, pela sua experiência e qualidade, na reta final do campeonato", contou sobre o atual guarda-redes do USC Paredes, com passagens por clubes como Paços de Ferreira, Arouca e Rio Ave.
A segunda experiência na Arábia Saudita teve tanto de especial, como de dramática, antecedendo aquele que foi o seu regresso ao Independiente del Valle.© DR
"Já se estava a pensar, de alguma forma, que dali viesse um 'treinador a sério' (risos). A gratidão é total por aquilo que conseguimos fazer num momento difícil. Foi-me proposto ficar como treinador de guarda-redes, num contrato superior àquele que me tinha sido apresentado pelo Flamengo, mas eu disse que não queria porque o meu telefone tocou, nessa altura, para eu regressar ao Independiente del Valle. Diziam-me 'Volta à tua casa, estamos a criar condições para teres sucesso'. Perante aquele contexto, arranquei da Arábia Saudita para o Equador e, poucos depois, estava a disputar os 'oitavos' da Taça Sul-americana, que acabaríamos por conquistar", recordou de seguida.
O Desporto ao Minuto desafiou Ricardo Pereira a apontar as diferenças que sentiu nas experiências sauditas vividas em 2016/17 e em 2021/22, sendo que, face ao momento atual, quando se fala de Arábia Saudita é inevitável não se referir o nome de Cristiano Ronaldo, figura que mereceu muitos elogios por parte do treinador de guarda-redes do Real Valladolid... mas não foi o único.
"Vi mais qualidade, mesmo já no ano antes da chegada do Cristiano Ronaldo [em 2022]. O verdadeiro 'boom' deu-se este ano, com a entrada de tantos treinadores de qualidade, tantos estrangeiros de qualidade. O dinheiro já era muito e há ainda um reforço de investimento. Só assim se consegue atrair craques. Havia alguma falta de profissionalismo, mesmo a nível do sono e daquilo que são os hábitos de um jogador profissional na Europa. Claro que cada zona tem as suas características. Na Arábia Saudita, acredito que a grande mudança ocorreu já depois de eu ter saído [nesta segunda passagem]. É preciso colocar os jogadores a ter hábitos de vida diferentes. Acredito que, para que o processo funcione, muitas coisas tiverem de mudar nos últimos meses", começou por referir sobre o assunto.
Os jogadores olham para aquele 'monstro', chamado Cristiano Ronaldo, e na verdade quem é que não quer ter aqueles abdominais ou aquela longevidade?"O Cristiano [Ronaldo] acabou por ser o 'motor' que deu o 'empurrão' decisivo para toda esta mudança. No Al Nassr já muito se falou da mudança dos hábitos alimentares. Os jogadores olham para aquele 'monstro', chamado Cristiano Ronaldo, e na verdade quem é que não quer ter aqueles abdominais ou aquela longevidade? Aquele físico, aquela imagem, aquele nível... São influências positivas que eles [reforços] levam para a Arábia [Saudita]", vincou sobre o avançado de 38 anos, antes de dar outro nome português: o de Rúben Neves.
"Não acredito que um jogador europeu, ou de outras nacionalidades, esteja a chegar agora à Arábia [Saudita] para comprometer a sua carreira. Podemos dar o exemplo de outro jogador português. Não acredito que o Rubén Neves vá para a Arábia Saudita para comprometer a sua carreira. Vai com objetivos. Um deles é financeiro, mas também vai para uma equipa [Al Hilal, de Jorge Jesus] muito competitiva. Vai somar títulos quase de certeza absoluta. Não vai ser ele a acomodar-se ao estilo de vida do árabe, mas antes o árabe ao que se passa no futebol europeu", referiu o técnico de 49 anos.
Ricardo Pereira realçou o orgulho que tem em ser português, tendo apontado o nome de Cristiano Ronaldo como um... 'porta-estandarte' de Portugal.© Al Nassr FC
Encontrando-se há sensivelmente um ano na Arábia Saudita, Cristiano Ronaldo continua a dar que falar pelo que faz dentro de campo, mas também pelo que diz fora dele, tal como aconteceu quando lamentou algumas polémicas do futebol português e acabou por colocar o futebol saudita acima do campeonato português. Ricardo Pereira não comentou as comparações, mas relembrou as condições em que se pratica desporto fora de Portugal.
"A margem de crescimento acredito que tenha. São estrangeiros de muita qualidade. Se o jogador árabe tiver um estilo de vida adequado a um profissional de futebol, a técnica será de um nível superior. Por vezes, esquecemo-nos da temperatura. No Brasil, por exemplo, as pessoas podem não ter noção do que é jogar com aquele calor e aquela humidade. Não é a mesma intensidade num país em que, estando muito frio, ou corremos, ou ficamos congelados. Mesmo a forma como a relva pode ser afetada", esclareceu.
"Em relação ao Cristiano Ronaldo, quem sou eu para julgar? Não me atrevo de maneira nenhuma para julgar a decisão daquele que tem de ser, por muitas e muitas gerações, um orgulho para nós, um 'porta-estandarte'. Tal como nós, treinadores, podemos olhar para uma carreira como a de José Mourinho, assim como para as portas que abriu a todos nós. Há uma pré-conceção das pessoas por sermos portugueses. Quando estou no estrangeiro dizem-me 'tu és do país do José Mourinho e do Cristiano Ronaldo' várias vezes", recordou.
Estive em países tão patriotas e nacionalistas que, por vezes, custa-me que nós [portugueses] nos minimizemos a nós próprios (...) Não ficamos atrás de ninguém no trabalho e no talento.A recordação da expressão conduziu a que Ricardo Pereira fechasse o assunto em torno de Cristiano Ronaldo com uma longa reflexão sobre a forma como a sociedade nem sempre valoriza as suas referências nacionais, deixando mesmo um (sério) conselho aos portugueses.
"Estive em países tão patriotas e nacionalistas que, por vezes, custa-me que nós [portugueses] nos minimizemos a nós próprios. Não podemos dizer que somos os melhores do mundo e depois ficar 'à sombra da bananeira'. Temos sempre de melhorar, mas também devíamos ter este orgulho que têm os espanhóis, os argentinos, os uruguaios... Não temos de ter a arrogância de outros países, mas devíamos perceber no nosso país que, para trazemos estrangeiros para cá, há que ter qualidade. É isso que nos pedem a nós", atirou o treinador de guarda-redes que ambiciona brilhar em Espanha.
"Senti desde início que ou faço a diferença, ou tenho capacidade igual ou superior, ou então sou olhado com desconfiança. Não ficamos atrás de ninguém no trabalho e no talento. Não há país em que eu tenha estado em que não me perguntem sobre a periodização tática. É um 'porta-estandarte' do nosso país, quanto mais não seja como curiosidade. Valorizamos pouco estas coisinhas. Somos o país do Cristiano Ronaldo, do José Mourinho, do Vítor Frade... Não nos podemos colocar por debaixo de ninguém", rematou Ricardo Pereira.
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