De Portugal para a China. Está é a mais recente aventura de Gonçalo Rodrigues na carreira de futebolista. Guga, como é conhecido no futebol profissional, deixou o Rio Ave em março deste ano, em plena temporada 2023/24, e assinou pelo Beijing Guoan.
Depois de várias épocas em bom plano em Vila do Conde, que diz guardar no coração, o médio formado no Benfica tomou a decisão de experimentar pela primeira vez o futebol asiático e garante não estar arrependido desta mudança na carreira.
Em entrevista exclusiva concedida ao Desporto ao Minuto, Guga Rodrigues passou em revista aquela que foi a primeira temporada no campeonato chinês e destacou a importância não só do técnico Ricardo Soares, como também de companheiros de equipa que falam português para a sua rápida adaptação a esta mudança de cultura.
China? Na altura estava num momento em que queria sair do Rio Ave. Sentia que já tinha dado tudo ao clubeMudou-se para o futebol chinês em março deste ano. Porque é que tomou esta decisão?
Estava num momento em que queria sair do Rio Ave. Sentia que já tinha dado tudo ao clube, como uma subida de divisão, uma permanência... Mesmo a nível individual tinha um rendimento constante e alto em todas as épocas. Quis-me desafiar a ir para outro contexto. No mercado de verão, houve várias possibilidades que não aconteceram por vários motivos. Naquele momento, falei com a minha família e com o meu agente. Disse-lhes que se surgisse algum convite mais vantajoso financeiramente, e por estar nesta altura da minha carreira, ia dar prioridade a essa proposta. As pessoas podem não saber, mas o Beijing é um grande clube na China que joga sempre com 55 mil adeptos em casa, num estádio com capacidade de 60 mil, e que luta por títulos. O facto de o treinador ser português também pesou bastante na minha ida para lá. É um treinador que eu já conhecia e não me arrependo.
Quão importante foi o treinador Ricardo Soares na opção de assinar pelo Beijing Guoan?
O míster Ricardo Soares foi muito importante. Um mês ou dois meses antes da minha mudança, começou a preparar o interesse dele na minha contratação. Fizemos várias chamadas e depois até estivemos juntos pessoalmente. Não é uma simples ida para um país aqui ao lado, é para outro continente, muito longe daqui, com uma língua totalmente diferente e num país muito diferente do nosso. Ele teve de explicar tudo ao pormenor, como é que eram as coisas lá e depois disso, aí sim, fiquei bastante interessado.
Guga somou na China a segunda experiência no estrangeiro, depois de uma curta ida até à Grécia© Beijing Guoan
Que balanço faz desta época na China após 29 jogos, cinco golos e três assistências?
Para a primeira época, e para quem vinha já com seis meses de época no Rio Ave, acabou por ser positiva. Não é fácil a adaptação, tudo muito diferente, ambiente, estilo de jogo... Acho que foi uma época positiva a nível individual, porque consegui bater o meu recorde de golos numa época. Podia ter feito mais assistências, mas a nível individual acho que acabou por correr bem. Coletivamente podíamos, se calhar, ter ali mais alguns pontos. Agora no final conseguimos a qualificação para a Liga dos Campeões Asiática 2, que é equivalente à Liga Europa. Por isso, é claro que o balanço é positivo.
Ainda vale a pena jogar na China, apesar de já não ser o campeonato com tanto dinheiro que já teve outrora?
Eu acredito para os jogadores que estão em patamares de nível de equipa grande aqui em Portugal, e mesmo noutras equipas, se calhar já não seja tão vantajoso. Mas para nós que estamos num contexto de Rio Ave, falando por mim, acaba por ser bastante vantajoso. O que eu fui receber na China, se calhar se fosse uma transferência para uma equipa grande em Portugal, não ia receber o salário que tenho hoje. Comparado com os anos anteriores, a Arábia Saudita acaba por fazer esse investimento parecido ao que a China fez há uns anos. Por isso, os jogadores de patamar que hoje em dia jogam na Liga dos Campeões na Europa, já não vão jogar para a China e acabam por ir para a Arábia devido ao investimento.
O jogador chinês está a evoluir, mas a nível tático, e mesmo alguns comportamentos individuais dentro de campo, acho que ainda precisa de uma evolução
O nível atual da Liga chinesa é parecido com o da portuguesa?
É muito diferente. O jogador chinês está a evoluir, mas a nível tático, e mesmo alguns comportamentos individuais dentro de campo, acho que ainda precisa de uma evolução. Cada vez mais há treinadores estrangeiros a irem para lá e a fazer esse tipo de trabalhos, fazendo com que eles evoluam. O jogador estrangeiro também eleva muito a qualidade das equipas. É verdade que já não há tantos jogadores de renome como havia há uns anos, mas ainda encontrei muitos jogadores de qualidade e isso traz muita qualidade à Liga.
O míster Ricardo Soares ou o Guga tiveram dificuldades em impor algum tipo de comportamento que gostariam de ver mudado?
O que eu senti e ainda sinto é que eles são um povo bastante educado no sentido de se alguém superior os manda fazer alguma coisa, eles tentam fazer o seu melhor. Claro que como não foram expostos tantas vezes àquilo, acabam por não o fazer com tanta qualidade. É preciso trabalho e preciso ter mais paciência. Mas o trabalho que eu vi desde o início da época até o final da época pelo míster Ricardo Soares foi de uma evolução brutal. A forma como a equipa acabou a jogar nos últimos jogos da época, não tem nada a ver com o início. Houve uma evolução muito grande. Se calhar houve ali mais paciência do míster. Enquanto que aqui, em Portugal, quando apanhamos um treinador novo no início de temporada, ali antes de metade da época já temos os processos assimilados, no nosso caso foi mais no final da época. O míster ficou contente porque conseguiu meter uma equipa à imagem dele.
Presumo então que tenha sido uma pena a época ter terminado há uns dias...
Em jeito de brincadeira, dissemos entre nós que se o campeonato agora fosse estendido, se calhar ainda conseguíamos uma melhor classificação. A verdade é que, no final do campeonato, a equipa estava bem taticamente e individualmente, com uma evolução muito grande.
Nós aqui estamos habituados a Lisboa, que é uma cidade muito movimentada, muito trânsito, muita confusão, mas Pequim é 20 vezes pior
Sente-se realizado com esta mudança para a China?
Se me perguntassem há dois anos, quando se falava disto e daquilo do Rio Ave, se calhar eu não pensava ir para a China. Mas a verdade é que, além do mercado de verão, falou-se tanto da minha transferência e da minha saída do Rio Ave, que eu próprio também elevei as minhas expectativas. Depois das coisas não se concretizarem, fiz um reset e não me quis saber mais dessa especulação que havia e procurei realizar-me mais financeiramente. A verdade é que encontrei um contexto, como eu estava a dizer há pouco, de uma equipa que joga com 60 mil adeptos em casa, que luta por títulos, uma equipa grande na China. Acaba por me realizar porque era algo que eu procurava, que era a parte financeira, lutar por títulos e jogar perante 60 mil adeptos, e eu tenho apanhado isso em todos os jogos em casa. Por isso, não me arrependo de ter saído para a China.
Falemos das sensações de viver em Pequim. O que encontrou de diferente em relação ao que acontece em Portugal?
É muito diferente. Só na minha cidade em Pequim são 22 milhões de habitantes. É o dobro de Portugal. Nós aqui estamos habituados a Lisboa, que é uma cidade muito movimentada, muito trânsito, muita confusão, mas Pequim é 20 vezes pior. Para se ter uma noção, na minha deslocação para o treino, e não estou longe, demoro uma hora e meia de manhã. É impossível mesmo. É muita gente. Quando vou passear, por exemplo a um shopping ao ar livre, a quantidade de pessoas que há lá é incrível, é enorme mesmo.
Guga é o único jogador português do Beijing© Beijing Guoan
Como está mais longe da família e dos amigos, nas folgas prefere ficar em casa ou aproveita para explorar a cidade?
Nas folgas prefiro mesmo ir passear e ir conhecer. Há tanta coisa ainda por descobrir. Eu estou lá há um ano e sinto que nem um terço de Pequim conheço. Claro que tento também sempre falar com os meus familiares e com os meus amigos. Às vezes é difícil porque o fuso horário tem oito horas de diferença. Quando lá é de noite, aqui é a nossa hora de almoço. Na minha hora de jantar, tento sempre falar com os meus familiares e os meus amigos.
E a adaptação a Pequim foi mais fácil por ter no plantel jogadores que falam português como o Fábio Abreu e o Mamadou Traoré?
O facto da equipa técnica ser portuguesa também ajudou. Tive a sorte de encontrar também o Yu Dabao, que passou pelo Benfica, e fala muito bem português. Ajudou-me imenso. Entrar num grupo acaba por ser mais fácil porque temos os chineses que estão há algum tempo e conseguem falar a nossa língua. Facilita a adaptação.
Orgulho-me de ter conseguido bater à porta dos 'grandes'. Nem toda a gente consegue fazer isso
Decidiu ir para a China aos 27 anos e ainda com muita carreira pela frente. Não teme que esta mudança o possa afastar dos maiores clubes portugueses e da seleção nacional?
Quando eu estava no Rio Ave, não vou esconder que esse era um dos meus objetivos: conseguir entrar nos três 'grandes'. Mas o resumo que, depois, faço na minha carreira, devido a coisas que me aconteceram no passado, é que me orgulho de ter conseguido bater à porta dos 'grandes'. Nem toda a gente consegue fazer isso. Orgulho-me de ter sido uma hipótese para esses clubes. As coisas depois acabaram por não acontecer e tive de fazer uma reflexão. Tenho 27 anos e ainda sou novo, mas como eu já tive algumas lesões no passado pensei: 'Vou agarrar esta oportunidade, que é um contrato que muda a minha vida financeiramente'. Mercado em Portugal, felizmente, vou ter. Na I Liga conhecem-me e se calhar, quando eu pensar em ir para Portugal, vão abrir-me as portas.
Não me preocupa a porta dos 'grandes' fechar-se ou não, porque, quando houve essa oportunidade, não se abriu. Não vou pensar agora no resto da minha carreira numa ida para os grandes. Prefiro, sim, ficar contente pela oportunidade que tive num clube como o Beijing, que me conseguiu realizar no momento que eu queria.
Pequim à parte, fica frustrado por não ter chegado a uma das maiores equipas de Portugal? O seu nome associado ao FC Porto e ao Sporting de Braga…
No momento, admito que mexeu um pouco comigo e fiquei algo desiludido porque sentia perfeita capacidade de lutar por um lugar num desses plantéis de que se falou. Nos jogos que fiz contra os 'grandes', consegui ter sempre um rendimento muito alto. Por vezes, os bons jogadores da I Liga conseguem ter um rendimento muito bom contra as equipas ditas mais pequenas. No meu caso, admito que, se calhar, os meus melhores jogos foram mesmo contra os 'grandes'. Isso mostrou-me mesmo que tinha capacidade para estar do lado de lá. Mas as coisas acabaram por não acontecer. Numa carreira de futebol, não temos tempo de estar a parar no tempo e a perguntar-nos o porquê. Decidi afastar-me do futebol português para me realizar de outras maneiras e fico muito contente por isso.
Voltar ao Benfica? Eu sei que houve essa hipótese, mas, por uma ou outra razão, as coisas não aconteceram
E nunca esteve perto esse regresso ao Benfica para a estreia na equipa principal?
Nunca houve algo concreto, mas houve várias conversas na altura que também havia um interesse do FC Porto. Até o treinador Roger Schmidt confessou-me que era um grande admirador do meu jogo. Eu sei que houve essa hipótese, mas, por uma ou outra razão, as coisas não aconteceram. Mas saber que houve o interesse de um clube como o Benfica, que eu saí da maneira que saí... Depois, conseguir outra vez que as pessoas voltassem a olhar para mim com os mesmos olhos quando lá estava foi algo que me deixou bastante contente. Claro que ficava ainda mais contente se as coisas tivessem acontecido, mas não aconteceu e é o futebol.
Guga Rodrigues vestiu a camisola do Rio Ave durante quatro temporadas© Getty Images
Falemos do Rio Ave. Foi difícil deixar Vila do Conde, onde era visto como um dos jogadores mais importantes da equipa?
Sair do Rio Ave era algo que eu queria bastante, mas, ao mesmo tempo, acabou por ser difícil porque tinha lá muitas pessoas que me ajudaram. Na altura em que saí, o clube estava, se não me engano, quase em lugares de descida e voltaram a poder inscrever jogadores. Felizmente também correu tudo bem para o clube. Claro que fiquei contente porque consegui o que eu queria, que era sair para um contexto que eu no momento pretendia, mas ao mesmo tempo saí triste porque senti que poderiam precisar de mim. Felizmente correu tudo bem, devido a um grande trabalho da estrutura.
E tem saudades desses tempos?
Uma das coisas que mais me marcou foi a cidade de Vila do Conde e mesmo o clube. São pessoas com as quais me identifico, tanto que fiz questão de comprar lá a casa, porque um dia mais tarde nunca sabemos. Tanto eu e a minha família gostámos muito da cidade. Em Pequim, como é uma cidade tão grande e um povo tão diferente de nós, não conseguimos criar essas ligações de proximidade que conseguimos aqui. Vila do Conde e o Rio Ave são uma cidade e um clube que nunca nunca me vou esquecer.
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