Parece que foi ontem, mas já lá vão mais de três semanas desde que os portugueses do Botafogo festejaram uma dupla conquista inédita, na América do Sul. Um deles é Franclim Carvalho, adjunto de Artur Jorge, que garante que nunca irá esquecer o que viveu nos passados dias 30 de novembro e 8 de dezembro de 2024.
Em entrevista ao Desporto ao Minuto, o treinador de 37 anos recordou a chegada ao clube do Rio de Janeiro, detalhou a adrenalina sentida na construção de um caminho de sucesso e ainda foi desafiado a comentar o futuro no Brasil.
Franclim Carvalho negou qualquer tipo de pressão, por parte da direção, no sentido de 'apagar' a desilusão que os adeptos haviam sentido em 2023, revelando os segredos que levaram o Botafogo a fazer a festa na final da Taça Libertadores e na última jornada do Brasileirão, no meio de uma tremenda sobrecarga de jogos.
As várias abordagens - tentadoras do ponto de vista financeiro, por sinal - de que Artur Jorge foi alvo também foram tema de conversa, tratando-se de algo que foi bem gerido internamente para não 'atrapalhar' aquela que foi uma reta final de sucesso da temporada. Ainda assim, crescem as dúvidas em torno do futuro, com possibilidades de uma 'mudança de ares' da equipa técnica portuguesa que fez história no continente sul-americano.
Na reta final desta época, houve ali um momento em que tivemos três empates e já toda a gente dizia que estávamos a abanar e a 'pipocar'.
Assim que chegaram ao Botafogo, pairava a sensaçãode que, desta vez, a época podia correr melhor, após a queda da temporada anterior?
O Botafogo tinha tido o Tiago Nunes, um treinador brasileiro conceituado. Na época anterior, Luís Castro e Bruno Lage tinham estado lá. Não nos podemos esquecer daquilo que aconteceu ao Botafogo, em 2023. Nos últimos nove jogos do campeonato, o Botafogo não ganhou nenhum e chegou a ter 14 pontos de avanço. Estamos a falar de seres humanos, e obviamente que isto tem peso. Quando lá chegámos, apanhámos alguns jogadores do ano anterior. Éramos uma nova equipa técnica, com outras formas de trabalhar e de pensar. Não tem de ser melhor ou pior. Todos temos as nossas formas. Fomos buscar outros jogadores. Olhando para a equipa que jogou esta época, eram pouquíssimos os jogadores que tinham ficado da época transata. O peso de um ano para o outro foi um mito que se criou. O Artur foi desmistificando isso, bem como os próprios jogadores.
Esse é o lado da equipa, mas há depois o lado dos adeptos e da estrutura diretiva. Não existiu uma pressão adicional no sentido de 'apagar' a desilusão de 2023?
Nunca senti qualquer tipo de pressão da parte da direção, até porque nós não nos podemos esquecer que o Botafogo foi campeão brasileiro em 1995, ainda nos tempos dos playoffs. Em 2021, subiu da Serie B para a Serie A. O Botafogo não é o Palmeiras, não é o Flamengo, não é o Corinthians. Temos de ter calma. Claro que, com a entrada da SAF [liderada por John Textor], o clube ganhou um poder e uma capacidade de atrair jogadores diferentes. O Luís Castro, o Bruno Lage e o Artur Jorge são treinadores que aceitam ir para lá porque sabem que têm outras condições. Não podemos negar. Da parte dos adeptos, considero [a pressão] normal. Todos querem ganhar. Se fôssemos fazer um inquérito, todos iriam dizer isso, mesmo os clubes que acabaram de subir da Serie B, como é o caso do Santos. Não podemos deixar-nos levar por aquilo que os adeptos pensam, sentem e transmitem. O futebol é emoção. Os adeptos transmitem essa mesma emoção que, por vezes, pode parecer um pouco irracional. Nós andamos nisto há muitos anos e sabemos bem como é que funciona.
Logo desde o início do campeonato, andámos ali nos primeiros lugares e fomos a equipa que esteve mais tempo na liderança. Na reta final desta época, houve ali um momento em que tivemos três empates e já toda a gente dizia que estávamos a abanar e a 'pipocar'. Eles utilizam esse termo lá. Nós, equipa técnica e jogadores, tínhamos de nos agarrar a algo. Nesses três jogos, fizemos 81 remates e zero golos. Tivemos um autogolo. Fomos a equipa do campeonato que fez mais golos de bola parada. Continuámos a fazer as coisas como estávamos a fazer. Mais tarde ou mais cedo ia dar… Foi o que aconteceu. Acabámos por ganhar em casa do Palmeiras [na antepenúltima jornada] e ficámos novamente em vantagem pontual. Jogo-chave? Um dos...
Em apenas oito dias, o Botafogo conquistou uma inédita Taça Libertadores, à qual juntou um Brasileirão que fugia há três décadas.© Vitor Silva, Botafogo FR
À medida que a época ia decorrendo, o Botafogo crescia a olhos vistos, com possibilidades claras de lutar não só pelo Brasileirão, como pela Libertadores. Que pensamento é que pairava nas vossas cabeças, com a gestão de expectativas no balneário no meio de tanta adrenalina, até ao sucesso final?
Sendo sincero, os jogadores que tínhamos, principalmente os brasileiros, estavam muito mais habituado a esta densidade competitiva do que nós. Jogam de três em três dias em maior parte das vezes. Estão completamente adaptados. Até falavam em rodízio quando trocávamos três ou quatro jogadores. Encaram isso de uma forma super natural. Ao todo, o Botafogo foi a equipa do mundo com mais jogos. Foram 75. Nós chegámos ao Brasil em abril e fizemos 55 jogos este ano, até ao passado dia de 11 de dezembro. Já no Sporting de Braga, quando a fase de grupos da Liga Europa foi disputada em menos tempo por causa do Mundial, fizemos seis jogos em oito semanas. Aí apanhámos um primeiro exemplo, mas no Brasil foi bem diferente.
Mentiríamos se disséssemos que, quando fomos para o Botafogo, íamos logo lutar para ser campeões. Quer dizer, nós lutamos sempre, mas íamos com o objetivo de ver o que era possível. Com o desenrolar do tempo e com a aceitação dos jogadores, a nossa forma de trabalhar moldou-se e existiu uma grande comunhão entre equipa técnica e jogadores. Fomos muito bem recebidos por todas as pessoas do clube. Criou-se ali uma relação muito próxima, de proteção. Pensámos "Vamos agregar, vamos juntar e vamos lá com isto para a frente". Isso fez a diferença em muitos momentos. Obviamente que tivemos aquela pontinha de sorte que é precisa em alguns jogos, alguns golos nos minutos finais. Foi o grupo com quem mais me identifiquei, entre os que trabalhei até hoje.
Taça Libertadores? O Marlon [Freitas] confidenciou-nos que juntou os jogadores todos no meio-campo, após a expulsão, a dizer "Se tem de ser assim, com menos um, então irá ser assim mesmo, com menos um". Eles próprios sentiram que era o momento.
Na final da Libertadores, o Botafogo deparou-se com uma expulsão do Gregore logo aos 30 segundos. Sentiram que algo ia ruir nesse momento crucial ou confiaram no processo e encararam aquela contrariedade como uma certeza de que iam ser felizes?
Nós não podemos dizer que jogar com dez jogadores é mais fácil ou que temos mais condições. Se assim fosse, toda a gente começava com dez (risos). Para quem assistiu, foi um jogo épico, sobretudo pela forma como foi, dada a expulsão do Gregore. Era a primeira final do Botafogo. Vencemos um Atlético Mineiro que investiu muito e era visto como um dos candidatos ao título brasileiro, com excelentes jogadores e um bom treinador. Acabámos por ganhar por 3-1, com dois golos na primeira parte, num jogo controlado [por nós]. O adversário mudou de estrutura e sofremos um golo no início da segunda parte, mas aguentámos e ainda tivemos força de fazer o terceiro mesmo a acabar. Vai ser sempre um jogo, para mim, inesquecível. Tinha lá a minha família presente. Acho que vai ser um jogo lembrado por muito tempo, não só pelos adeptos do Botafogo, como por todos os que acompanham a Libertadores.
Não sei se sentimos algo a ruir ou não. A nossa preocupação foi tentar ajustar os dez jogadores ao plano que tínhamos com onze jogadores. Não fizemos nenhuma substituição imediatamente a seguir à expulsão e nem ao intervalo fizemos. Tentámos aguentar com os recursos que tínhamos e os rapazes tiveram um comportamento incrível. Temos de estar agradecido à postura dos jogadores. Foi o grupo a fazer a diferença. O Marlon [Freitas] confidenciou-nos, no final [do jogo], que juntou os jogadores todos no meio-campo, após a expulsão, a dizer "Se tem de ser assim, com menos um, então irá ser assim mesmo, com menos um". Eles próprios sentiram que era o momento, fosse de que jeito fosse.
Franclim Carvalho terminou o ano de 2024 com três troféus: a Taça da Liga pelo Sporting de Braga e a Taça Libertadores e o Brasileirão, ao serviço do Botafogo.© Vitor Silva, Botafogo FR
Seguiu-se o Brasileirão, em que bastava um empate frente ao São Paulo, mas até ganharam. Mesmo que não conquistassem o Brasileirão, já tinham ficado com a sensação de dever cumprido pela Libertadores?
Não fico com a sensação de dever cumprido porque nós disputámos a Taça do Brasil e saíamos nos 'oitavos', eliminados pelo Bahia. O dever cumprido era se tivéssemos vencido as três competições. Tínhamos de ganhar as três. Não conseguimos e, portanto, o dever não foi devidamente cumprido. Agora é óbvio que, naquela reta final, a Libertadores era uma competição e o Brasileirão outra. Ganhámos a primeira, tivemos o nosso tempo para festejar. Nós merecíamos. Não nos podemos esquecer que tínhamos jogado antes com o Palmeiras, seguiu-se uma viagem de três horas e meia para a Argentina, com dois treinos antes da final. Depois da final voltámos para o Brasil, em que o voo atrasou umas quatro horas, mas festejámos. No dia a seguir treinámos e fomos para estágio porque depois tivemos o jogo fora, com o Internacional, que não perdia em casa desde julho. Fisicamente, estávamos completamente mortos.
Mesmo com aquela carga de jogos, a equipa que defrontou o Palmeiras foi a mesma da final. Metemos a mesma equipa frente ao Internacional, menos um lesionado. O Palmeiras estava a jogar à mesma hora e esteve a perder com o Cruzeiro, mas virou aos 90 minutos. Podíamos ter sido campeões se o Palmeiras empatasse, mas não, decidiu-se tudo na última jornada, quatro dias depois. Aí também estávamos a acompanhar o resultado do Palmeiras, mas conseguimos ganhar por 2-1 ao São Paulo ao cair do pano e foi melhor assim. Conseguimos o recorde de pontos do Botafogo no campeonato em toda a história, à semelhança do que tínhamos feito em Braga.
O Artur partilhou algumas coisas com a equipa técnica. Outras não. E fez bem. Isso faz parte. Ele entregou os processos ao seu agente e nós só estávamos focados em trabalhar, para a Libertadores e para o campeonatoO Artur Jorge já revelou que foram recebendo propostas na reta final da época. Isso não 'atrapalhou' o vosso foco?
Não, não. O Artur foi falando e eu sempre acompanhei algumas notícias. O Artur partilhou algumas coisas com a equipa técnica. Outras não. Não soubemos de todas. E fez bem. Isso faz parte. O Artur entregou os processos ao seu agente e nós só estávamos focados em trabalhar, para a Libertadores e para o campeonato. O nosso objetivo sempre foi conquistar títulos e terminar em beleza. Chegar às últimas cinco ou dez jornadas e ter a possibilidade de ser campeão… Não podíamos desperdiçar. Fomos também passando as eliminatórias na Libertadores. Ainda bem que tudo caiu para nós.
Dentro daquilo que o Artur vos contou, em nenhum momento se sentiram tentados, sobretudo do ponto de vista financeiro, em rumar a outro desafio?
O Artur Jorge ia comentando "Opá, olha, se sair alguma coisa nas notícias, eu passo tudo para o empresário e nós vamos pensar só em trabalhar". Nunca nos disse "Olhem, há esta ou aquela hipótese". Isso nunca falou.
E agora? Sentem-se tentados em abraçar um novo projeto?
Isso é o Artur que vai decidir. O que decidir, para mim, está bem. Temos contrato por mais um ano. Gostamos muito de estar no Botafogo. Sempre fomos bem tratados e todos os dias falo com pessoas do Botafogo. Neste momento, estamos a preparar a próxima época e, portanto, o Artur Jorge decidirá da melhor maneira.
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