Depois de dois anos marcados pela guerra comercial e tecnológica entre Washington e Pequim, o início do surto na China interrompeu, primeiro, as cadeias de distribuição globais, com o encerramento de fábricas, portos e cidades inteiras no país asiático, e expôs, a seguir, a incapacidade dos países ocidentais de se autoabastecerem com equipamento médico crucial, à medida que a doença de alastrou além-fronteiras.
"Governos e diretores de multinacionais não esquecerão rapidamente uma lição assustadora: para vários produtos e componentes vitais eles dependem de um só país, a China", resumiu a revista britânica The Economist.
Numa altura em que hospitais e governos em todo o mundo, incluindo Portugal, procuram desesperadamente ventiladores e máscaras de proteção, deparam-se com uma realidade difícil: o mundo depende dos fornecedores chineses, que podem agora praticar altas margens de lucro com uma pandemia que começou no país.
"A crise atual expôs o quão dependentes nos tornamos da China em setores-chave da nossa economia", escreveu o cronista do The Washington Post Marc A. Thiessen.
"Uma coisa é depender da China para comprar camisas e ténis. Outra é depender de um regime totalitário para ter acesso a drogas que salvam vidas ou para manter a infraestrutura de telecomunicações que sustentará a economia do século XXI", explicou.
A China fabrica metade das máscaras no mundo, incluindo as de categoria FPP3, que têm o nível mais alto de proteção respiratória, e cruciais para os funcionários de saúde que tratam infetados pelo novo coronavírus, mas tem limitado a sua exportação, numa altura em que se teme uma reemergência do surto.
Compras e doações feitas quando a epidemia estava restrita à China permitiram ainda ao país concentrar grande parte do abastecimento mundial.
Mas, numa altura em que a pandemia mata milhares de pessoas e paralisa países inteiros, jornais e cadeias televisivas reproduzem imagens de aviões a transportar doações de equipamento médico ou especialistas chineses a desembarcarem em países estrangeiros para ajudarem no combate à epidemia, sempre acompanhados da bandeira chinesa.
As imagens são registadas pelos órgãos oficiais de Pequim, que nos últimos anos concluíram acordos para partilha de conteúdo com centenas de meios de comunicação por todo o mundo, ao mesmo tempo que as autoridades chinesas expulsam jornalistas estrangeiros do país num número inédito ou dificultam ao máximo o seu trabalho.
"Trata-se da primeira ofensiva de propaganda verdadeiramente internacional [do regime chinês] e uma nova linha da frente na guerra global da informação", descreveu Louisa Lim, investigadora e professora na Universidade de Michigan, nos Estados Unidos, num artigo publicado na revista Foreign Policy.
Esta semana, Josep Borrell, Alto Representante da União Europeia para a Política Externa fez um alerta contra a "política de generosidade" da China, que identificou como uma "luta por influência" e uma "batalha global pelo domínio da narrativa".
"Na batalha das narrativas, temos visto também tentativas de desacreditar a União Europeia e alguns casos em que europeus foram estigmatizados como se fossem todos portadores do vírus", disse.
Mas o domínio da China das cadeias de produção, incluindo de ingredientes farmacêuticos ativos, essenciais para a indústria farmacêutica, eram já alvo de debate nos Estados Unidos e Europa.
A ascensão à presidência de Donald Trump nos EUA, em 2016, inverteu décadas de governos pró globalização e livre comércio, elevando ao poder figuras então obscuras da política norte-americana como Peter Navarro, atual Diretor de Política Comercial e de Manufatura da Casa Branca, e Steve Bannon, ideólogo antiglobalização e ex-estrategista de Trump.
Na Europa, também Joerg Wuttke, presidente da Câmara de Comércio da União Europeia em Pequim, tem advertido para o excessivo domínio da China em setores como produtos farmacêuticos e pesticidas, mesmo antes da pandemia da Covid-19.
"A ideia da globalização de colocar tudo onde a sua produção é mais eficiente acabou", disse, recentemente, em Pequim.