O investigador do Centro Interdisciplinar de Ciências Sociais (CICS) da Universidade Nova de Lisboa Nuno Boavida recorre a uma imagem presente no livro "Esteiros", do escritor Soeiro Pereira Gomes, que retrata a vida de jovens trabalhadores nas margens do rio Tejo na primeira metade do século XX, para caracterizar, em parte, o trabalho dos chamados 'estafetas' da UberEats e Glovo.
"Há aquela imagem dos trabalhadores que todos os dias se dirigiam para a praça e esperavam que chegasse o capataz que escolhia, a seu belo prazer, quem iria trabalhar e ganhar algum soldo nesse dia. Aqui, o capataz passou um pouco a ser o algoritmo, o 'software' que a empresa desenha, com avaliação pelos clientes, e que dita a capacidade ou não de uma pessoa receber um frete", conta à agência Lusa o investigador do CICS, que coordena um projeto de investigação que aborda o trabalho nas plataformas digitais em quatro países europeus.
Em Portugal, o projeto fez mais de 50 entrevistas a trabalhadores de plataformas digitais que mostram também diferentes relações com a mesma e diferentes narrativas, abordando a Uber, Uber Eats e Glovo, mas também a Airbnb e a Upwork (plataforma para 'freelancers' na área do 'webdesign' e programação).
Segundo estimativas de Nuno Boavida, estas cinto plataformas representam "para cima de 80 mil trabalhadores" só em Portugal.
"Algumas destas plataformas têm claramente trabalhadores que se assumem como trabalhadores nas suas narrativas, como é o caso da Glovo e da Ubereats. Outros, assumem-se como proprietários, como no caso da Airbnb", refere.
No caso da Glovo e da Uber Eats, a equipa de investigadores encontrou muitos trabalhadores estrangeiros, num subsetor marcado pela precariedade.
"A nossa equipa divide o mundo dos estafetas em duas partes: há as Domino's e as Pizza Huts que têm as suas frotas, que funcionam de acordo com as leis e o mercado português, e depois o mundo da Glovo e da Ubereats, onde reina o abuso, a ilegalidade e a casualidade do trabalho", conclui.
Durante o projeto, a equipa ouviu alegações de violações de direitos humanos, abusos laborais e subaluguer de contas para contornar contextos de imigração ilegal, referindo que o normal, para um estafeta, serão dez a 12 horas de trabalho por dia e seis a sete dias por semana.
"É um setor que necessita de regulamentação, porque reina o caos", defende Nuno Boavida.
Já no caso da Uber, o projeto encontrou um misto de narrativas entre quem se assume como empresário por conta própria e outros que se consideram trabalhadores.
O investigador do Centro de Estudos Sociais (CES) da Universidade de Coimbra Giovanni Allegretti, que coordena a equipa portuguesa de um outro projeto europeu de investigação sobre plataformas digitais, também encontrou diferentes representações dentro da Uber, que vão de firmas com uma frota de 500 viaturas, a pequenas empresas quase familiares, ou trabalhadores migrantes "à procura de inserção".
Apesar das diferentes motivações dos motoristas e heterogeneidade de narrativas encontradas pelo projeto que abordou os casos da Airbnb e da Uber em Lisboa, os investigadores concluíram que, na maioria dos casos, os motoristas "não estão abrangidos pelas formas de tutela de trabalho de um trabalhador dependente", num setor que "é muito pouco fiscalizado", apesar de a lei Uber, criada para regular o setor, "definir tarefas de monitorização".
Segundo Giovanni Allegretti, em entrevistas a motoristas, também foi referido que, às vezes, "o dia de trabalho ultrapassava as 12 horas", algo que a lei Uber "formalmente impede, mas de forma ambígua", sem definir "bem as responsabilidades e sem fiscalização alguma".
Para o investigador do CES, a lei Uber acabou por criar um sistema de intermediários, que "permanece inserido num contexto que admite a precariedade, que admite a ausência de proteção social".
Questionada pela agência Lusa, fonte oficial da Uber salienta que a empresa garante que tanto operadores como motoristas e veículos na plataforma "cumprem todos os requisitos exigidos por lei", e salienta que desde junho de 2018 a plataforma tem uma ferramenta que garante que nenhum motorista pode conduzir "mais do que dez horas" num dia.
Relativamente à Uber Eats, a mesma fonte referiu que os estafetas podem escolher "livremente quando, onde e por quanto tempo querem estar ligados à aplicação", salientando ainda que todos os "utilizadores" têm que ter entre outros requisitos, uma carta de condução válida, atividade aberta e certificado de registo criminal sem antecedentes.
Sobre a possibilidade de subaluguer de contas na Uber Eats, fonte oficial da empresa salientou que os estafetas têm de tirar uma fotografia em modo 'selfie' "antes de ficarem online", sendo essa imagem cruzada com a fotografia de perfil do utilizador, por forma a garantir que é a pessoa certa.
Já a Glovo, numa declaração do seu diretor em Portugal, Ricardo Batista, realçou que os estafetas encontram naquela plataforma "uma alternativa flexível para gerarem rendimentos, em muitos caso em combinação com outras atividades ou enquanto estão em formação ou à procura de outro emprego".
A socióloga Ana Alves da Silva, especializada em relações de trabalho, nota que, com as plataformas, as funções de supervisão e monitorização de uma empresa típica estão a ser substituídas "por uma arquitetura automática, algoritmizada".
Se numa empresa típica há o poder diretivo, regulamentar e disciplinar, também nas plataformas digitais é possível encontrá-los, nota a também investigadora do laboratório Colabor e doutoranda do CES.
"Estas empresas têm o poder de alocar recursos, têm o poder das normas que eu tenho que seguir para prestar o trabalho e ainda determinam o preço do meu trabalho. Eu não tenho qualquer autonomia ou liberdade. É uma situação de falsa independência", vinca.
Sobre o futuro e um possível aumento da expressão destas plataformas digitais, Ana Alves da Silva considera que "tudo depende do nível de atividade política, legislativa e fiscalização".
"Quanto mais liberalizado for o mercado de trabalho e maior o nível de desemprego e situação de privação e precariedade económica maior será o poder destas plataformas no mercado de trabalho", remata.
Para Giovanni Allegretti, as plataformas digitais até poderão aumentar, mas isso não quer dizer que estas não possam ser "utilizadas num contexto de trabalho digno e com direitos".
"Não é que as plataformas criam a precariedade, mas o contexto pré-existente de precariedade foi bem aproveitado, mas também expandido, pelas grandes empresas de plataformas, que através uma inovação tecnológica souberam aproveitar-se de zonas cinzentas da regulação", conclui.
A transição digital foi definida como uma das linhas de ação da presidência portuguesa do Conselho da União Europeia (UE).
No programa da presidência, aponta-se nomeadamente o desenvolvimento universal de competências digitais com vista à adaptação dos trabalhadores aos novos processos produtivos, a transformação digital das empresas e as plataformas digitais, as áreas do comércio eletrónico, pagamentos e fiscalidade, a promoção da saúde e a prevenção da doença e a educação e a formação ao longo da vida.