"Os artistas sempre se sentiram 'sortudos' por terem trabalho"

Rita Lello esteve à conversa com o Notícias ao Minuto. Além de ter recordado os primeiros passos no mundo da representação, a atriz não deixou de comentar os principais temas que têm marcado o mundo, especialmente agora que continuamos a lutar contra a pandemia do novo coronavírus.

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Marina Gonçalves
16/10/2020 09:45 ‧ 16/10/2020 por Marina Gonçalves

Fama

Rita Lello

Sem medo de expressar aquilo em que acredita, Rita Lello revela-se a favor da igualdade e contra o ódio, mostrando-se sensibilizada com vários temas, como o racismo. 

Entre muitas outras razões que despertam a sua preocupação, a pandemia é também um tema sensível e que, lamenta, tem levado ao "desenvolvimento de um discurso individualista", que é "o que mais teme". Mas não ficou por aqui.

Com uma já vasta carreira, com vários trabalhos nos palcos e nos ecrãs, a atriz recordou ainda, em entrevista ao Notícias ao Minuto, os primeiros passos na arte de representar. Uma profissão cujo caminho não é a direito. "Os trabalhadores do mundo das artes sempre se sentiram 'sortudos' por terem trabalho", afirma. 

Filha de artistas, o mundo do espetáculo nunca lhe foi desconhecido, mas também não foi desde logo a sua escolha de vida.

Uma conversa que terminou com a partilha daqueles que são os seus desejos para os próximos tempos, depois deste 'estranho' início de 2020. 

Quando se nasce no meio artístico, sendo filha de dois atores, é impossível não ganhar um gosto especial pela arte de representar?

Até surgir a possibilidade de experimentar o Curso de Teatro no IFP não punha sequer a hipótese de subir a um palco. Via-me muito mais como espectadora. Primeiro, surgiu a vontade de experimentar e só depois de acabar o curso e de estrear na Cornucópia em 1994 é que a hipótese de ser atriz começou a ganhar forma.

O meu filho é muito mais talentoso do que eu. Tem mais recursos. Canta bem e tem uma coragem física surpreendenteComo descreve o amor pela representação?

É uma vertigem de experimentar coisas novas e desafios, pormo-nos no lugar do outro, defender outros pontos de vista e sermos capazes de construir um ser alternativo a nós e fazê-lo viver através do nosso corpo e da nossa alma, emprestando-lhe os nossos recursos físicos e sentimentos.

E esta paixão também conquistou o seu filho Vasco...

Pelos vistos. E ele é muito mais talentoso do que eu. Tem mais recursos. Canta bem e tem uma coragem física surpreendente, para além de uma capacidade de entendimento do texto assinalável. Isto não é a mãe a falar, é a encenadora e diretora de atores. Tem um caminho bonito pela frente se se portar bem.

Além de ser atriz é também professora... Como é que se preparam os jovens para uma profissão que pode ser cheia de incertezas?

Com muita disciplina, muito amor e cuidado para estimular a criatividade individual sem a mutilar.

É uma voz ativa nas redes sociais, especialmente no Facebook, onde partilha muitas das suas opiniões sobre a atualidade. E estes últimos meses ficaram marcados por protestos contra o racismo... Acredita que alguma coisa vai mudar?

A questão do racismo, bem como dos direitos e defesa de outras ditas minorias – cada um de nós pertence sempre a várias minorias – a par com as lutas ambientais e contra o sexismo, conheceram na última década grandes avanços ao nível da consciencialização das comunidades e isso é extremamente positivo. Com a escalada da extrema-direita com o seu discurso de ódio, radicalização e posições sexistas, xenófobas e racistas perante estas causas, é necessário manter uma voz firme, inteligente e esclarecida que nos permita não regredir para valores que já vimos serem defendidos na idade média, pela inquisição, e mais recentemente pelos nazis e fascistas, e que tanta dor e atraso civilizacional trouxeram à humanidade.

Nazismo e fascismo não são nem devem ser palavras gratuitas. Há o perigo real de voltarmos para trás e é preciso lutar e velar para que a compaixão, empatia, solidariedade e fraternidade se mantenham vivas no coração dos homens e das mulheres do presente e do futuro.

É assim que se abre espaço aos sistemas ditatoriais. Esse é o meu maior medo. Estávamos quase a voltar a dar ao amor o seu verdadeiro valor de mercado (...).  O ódio e o medo destroem tudo A luta pela igualdade não é só do outro lado do mundo... Como classifica a sociedade portuguesa quando falamos da desigualdade? E o que mais teme?

Todas as sociedades, à exceção de algumas ditas primitivas que vivem mais próximo de uma organização comunitária, são de um modo geral desiguais e comportam assimetrias sociais. É preciso lutar em conjunto, democrática e civilizadamente para que essas assimetrias vão sendo esbatidas. A luta faz-se por um reforço das condições ao nível da Educação, Saúde e Cultura. São esses os pilares do desenvolvimento. Um povo saudável, com Educação e Cultura é um povo livre e evoluído. É através da erradicação dos fossos no acesso a esses bens essenciais que se desenvolve um povo e um País.

Com a pandemia provocada pela Covid 19, ao contrário do que se pensou no início, está a desenvolver-se um discurso individualista – até ao nível nacional quando há países que afirmam pesquisar a vacina apenas para uso dos seus cidadãos – é isso que mais temo: Que desenvolvamos uma apatia ainda maior em relação aos direitos e bem estar do coletivo e assumamos um discurso individualista de “salve-se quem puder”. Para isto pode concorrer o medo que resulta do isolamento de nos sentirmos sozinhos, por exemplo, em nossas casas.

O teletrabalho, por exemplo, que pode parecer interessante à primeira vista e que apresenta alguns benefícios ao nível dos custos, da diminuição da poluição, da gestão do tempo familiar, etc... pode, se não tivermos cuidado, transformar-nos em seres isolados e individualistas, com medo do outro e necessidade de uma autoridade paternal. É assim que se abre espaço aos sistemas ditatoriais. Esse é o meu maior medo. Estávamos quase a voltar a dar ao amor o seu verdadeiro valor de mercado – porque o amor pelo próximo tem um valor de mercado que faz evoluir as sociedades para o progresso. O ódio e o medo destroem tudo.

Os trabalhadores do mundo das artes sempre se sentiram 'sortudos' por terem trabalho, isso acontece desde que o homem se profissionalizou como artista. Como se o facto de poder exercer uma paixão como profissão e tirar dela o seu sustento fosse uma benesse, como se fosse quase um pecado exercer a sua vocação

Outra luta que tem marcado os últimos meses em Portugal são as manifestações que reclamam os direitos dos profissionais das artes. Chegámos ao ponto em que os trabalhadores do mundo das artes se sentem 'sortudos' por ter trabalho?

Os trabalhadores do mundo das artes sempre se sentiram 'sortudos' por terem trabalho, isso acontece desde que o homem se profissionalizou como artista. Como se o facto de poder exercer uma paixão como profissão e tirar dela o seu sustento fosse uma benesse, como se fosse quase um pecado exercer a sua vocação. Para esse sentimento têm contribuído muito os discursos que estigmatizam os artistas como dependentes dos apoios do Estado para a criação. Há anos que ouvimos palavras como “subsidiodependentes” nalguns discursos políticos e isso é extremamente pernicioso e demagógico. É preciso fazer entender os contribuintes que esses apoios são o que torna possível o acesso dos cidadãos à fruição democrática da Cultura, uma vez que produzi-la sem eles a tornaria tão cara que só seria acessível a uma elite financeira. E a Cultura é, como disse acima, um bem de primeira necessidade no sentido da erradicação das assimetrias sociais.

No que diz respeito à defesa dos direitos dos trabalhadores das artes e espetáculos, na minha opinião ela deve começar pela criação do estatuto profissional dos profissionais de palco e audiovisual; profissionais que vão dos artistas aos técnicos, produtores e executantes das várias funções inerentes à realização de espetáculos ou registos; e pela legislação do trabalho e consequentemente da intermitência e sazonalidade – porque há uma sazonalidade no trabalho de grande parte dos artistas e profissionais de palco e audiovisual, por alguma razão se usam termos como abertura e fecho da temporada e há tempos de ensaio, gravação e pesquisa e outros em que o fruto desse tempo se mostra ao público e passa a ter valor pecuniário - só quando essa legislação for elaborada, com inspiração talvez na que vigora em países em que a industria das artes e espetáculos é mais evoluída, é que poderemos falar a sério sobre a questão dos trabalhadores.

Enquanto continuarmos a trabalhar sem que a nossa profissão tenha o estatuto de profissão não poderemos falar verdadeiramente em direitos e obrigações, porque com os direitos virão sempre também as obrigações e sem elas não se podem fazer valer direitos. É uma espécie de pescadinha de rabo na boca que deve ser olhada com coragem e frontalidade por dirigentes e trabalhadores. Neste momento temos obrigações como qualquer contribuinte e absolutamente nenhuns direitos e garantias. Estamos, como disse Tennesse Williams sempre “dependentes da bondade dos estranhos.” Quando o patrão é porreiro, corre-nos bem. E não pode só ser assim.

O que mais a entristece, neste momento, nesta profissão?

O que disse acima e a falta de sentimento de classe que nos foi incutindo a precariedade e ausência de direitos e garantias.

E o que continua a ser superior a todos os desafios que possam dificultar a carreira?

O prazer de experimentar.

O teatro A Barraca já está a funcionar, depois de ter fechado portas no início da pandemia... Como é que se consegue manter a firmeza mesmo com o mundo 'virado do avesso'?

Com paixão, alegria e vontade de fazer. Entendendo a Arte como factor indispensável e civilizador na construção de um mundo em que se acredita. É uma paixão mas também é uma missão.

Penso que já se demonstrou que não precisamos de viver isolados se se respeitarem algumas regras essenciais. (...) . Não nos distraiamos do essencial: vencer o vírus e evitar mais mortes"Estou farta de ver turistas a quebrar as regras... andamos nós todos confinados para agora, de repente, não haver cuidados nenhuns? [...]", estas foram palavras suas partilhadas no Facebook em maio, quase três semanas depois de ter chegado ao fim o Estado de Emergência. Como é que vê hoje em dia o comportamento dos cidadãos em relação à pandemia

Penso que já se demonstrou que não precisamos de viver isolados se se respeitarem algumas regras essenciais. Penso que na generalidade as pessoas estão disponíveis para as alterações necessárias até chegar a vacina. Contudo, penso que é preciso que os políticos, e não falo do Governo, entendam que estamos perante um flagelo que pode atingir todos e que o discurso disruptivo ou atemorizador não serve senão para distrair do foco que deve ser: temos de cuidar uns dos outros. Está a haver muita distração do essencial. Se usar uma máscara e lavar as mãos te protege a ti, então protege-me a mim usando a tua e lavando as tuas mãos. É simples, amor, empatia, fraternidade e compaixão. Não nos distraiamos do essencial: vencer o vírus e evitar mais mortes.

O que a mais deixa assustada nesta crise global? E o que lhe acalma o coração?

Deixa-me assustada que o desespero circunstancial nos possa fazer cometer erros que demorarão décadas a sanar. Acalma-me pensar que a crise ainda pode fazer-nos repensar a nossa forma de vida e ensinar-nos a ser mais fraternos.

Gosto de 'fazer de Má', têm alguma coisa de invencíveis, energia de super-heróis... acho graçaAlém do percurso no teatro, é também uma presença frequente na televisão. Aliás, está atualmente no ar na novela 'Nazaré'. Como é trabalhar em televisão nesta fase em que temos de cumprir várias medidas por causa da pandemia? Sentiu algum medo/receio quando começaram as gravações?

É uma chatice mas tem de ser: máscaras sempre, a não ser no momento da gravação para diminuir a exposição ao mínimo; distância entre os colegas, que o jogo de câmaras ajuda a 'mascarar'; alcoolgel a secar-nos a pele a cada corta ou acção, etc...

Coisas boas: camarins individuais, espaços sempre arejados e cheiro a fresquinho permanente. Quando se trabalha 12 horas num estúdio às vezes o calor é insuportável.

E o que mais lhe 'agradou' neste novo projeto, nesta vilã a que dá vida, a Amélia?

Gosto de 'fazer de Má', têm alguma coisa de invencíveis, energia de super-heróis... acho graça. A Amélia é uma vilã um bocado sofrida mas mesmo assim é divertida de criar. Sai-se do estúdio cheio de energia.

É uma 'granda' máquina, a Céuzinha. Deus a conserve entre nós por muitos anos com a sua irreverênciaTem uma boa relação com a sua mãe e não esconde o orgulho que tem por ela... O que mais aprendeu com a atriz Maria do Céu Guerra e o que mais aprendeu com a mãe Maria do Céu Guerra?

É difícil separar. Ela é una. Os valores que a regem são os mesmos na vida e na profissão. É uma 'granda' máquina, a Céuzinha. Deus a conserve entre nós por muitos anos com a sua irreverência. É uma atriz muito Punk.

E com o seu pai? Que lições ficaram?

Poucas, infelizmente. Que o bolor é penicilina, por exemplo.

Estamos a viver um marcante 2020... Qual o seu maior desejo para os próximos meses/anos?

Alegria e tranquilidade para todos (sinto-me uma Miss Universo a dizer estas coisas) mas é verdade. PAZ, a todos os níveis.

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