Dino d'Santiago esteve à conversa com Daniel Oliveira e a entrevista começou com o músico a recordar a dura infância, como o "som do roncar da barriga com fome".
"Tínhamos os iogurtes contados. O fiambre, se houvesse, também era contado. Era tudo tão contado que lembro-me dos roncares da barriga e às vezes sentia vergonha, se estivesse na escola… Aí era o único momento que causa mais desconforto porque havia pessoas mais privilegiadas, outras menos, mas sentias vergonha do som em si", lembrou.
"Não é justo só vermos imagens, na altura a UNICEF tinha grandes campanhas sobre África e a fome em África, a pobreza e a miséria… E eu lembro-me de olhar para aquilo e pensar que isso estava cá no bairro dos Pescadores. Porque é que se investe tanto a falar de lá de fora, e aqui só se fala do tráfico de droga e não se fala da miséria que está à nossa frente", desabafou.
"A água do mar entrava dentro das nossas casas e nós até disso fazíamos brincadeira", recordou, referindo que "depois vinha a porcaria toda" como os "ratos, as baratas, as osgas".
"A vida era aquilo. Água potável nós não tínhamos. O meu primeiro banho de banheira foi aos 15 anos. Tínhamos de ir buscar a água potável à bica. Eram três bicas para servir milhares de pessoas", detalhou. "Puxávamos mangueiras e quando ela já estava ali há mais tempo, cortavam a tua mangueira e tinhas de fazer remendos. Depois tínhamos de ficar de vigia na bica, mas às vezes à noite. Éramos crianças e claro que tínhamos medo. Andava ali nos becos e tinha bastante medo, mas tinha de ter a postura de um corajoso", partilhou.
"Tínhamos toxicodependentes no bairro dos Pescadores, muita gente de famílias que vinham de Lisboa e iam morrer para o bairro porque os familiares aqui tinham vergonha. Por isso, [vivíamos] entre os traficantes, as pessoas que compravam os produtos, os trabalhadores que edificavam Vila Moura... Crescemos no meio dessa combustão de sonhadores frutados. Ali eram as pessoas que não conseguiram vingar os seus sonhos, estavam todas no mesmo patamar, no mesmo lugar. Como é que podíamos ambicionar mais?", descreveu.
"E os nossos pais cultivava-nos com o ‘sê feliz com o que tens’. A forma de eles nos proteger era trancar-nos, literalmente, em casa porque não tinham dinheiro para nos colocar num ATL – mas era o que nos protegia de vários amigos meus que depois se tornaram traficantes, ou toxicodependentes, foram presos por isto ou aquilo, outros morreram", explicou, recordando ainda que as janelas eram as redes para as moscas ou que tomavam banho em bacias.
Inventavam nomes para os ratos e, diz, "sentia mais vergonha quando as roupas tinham as marcas do xixi ou das fezes dos ratos".
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"O que me dava mais vergonha era estares na sala de aula, abrias a mochila e saia de lá de dentro uma barata", partilhou também.
Fim do racismo? "A educação pode fazer toda a diferença"
Ao falar do racismo, salientou que ele "existe de forma ignorante, e por isso é que é tão perigoso. Ele foi-se enraizando na nossa cultura".
Questionado por Daniel Oliveira sobre se há forma de o combater, o artista afirmou: "Eu acredito que há".
"A educação pode fazer toda a diferença. Não termos medo da nossa geração ser a geração que vai ali, chega aos livros e não trata um corpo africano como um escravo. Quando falares do tempo da escravatura lembra-te que aquelas pessoas são seres escravizados, não existe nenhum ser humano a nascer na condição de escravo. Ela é escravizada por outra pessoa. Termos a coragem de mexer nos livros de história e contextualizar a história do lugar onde estás a viver", acrescentou.
"O Portugal de hoje é muito diferente do Portugal de há 20, 40, 50 anos. Vamos ter a coragem até de mexer no hino. Nós já não temos a necessidade de gritar ‘às armas, às armas, contra os canhões marchar, marchar’. Já temos o direito de pensar num mundo mais global onde a guerra não pode ser um alimento. As crianças como eu vão aprender a cantar o hino sem saberem ainda o que é uma arma, mas já vai estar dentro da sua alma essa questão de que para venceres tens de matar alguém", comentou ainda.
A paternidade mudou a sua vida
Dino d'Santiago acabou por falar do filho, Lucas, que nasceu no ano passado. O cantor confessou que "começou a fazer terapia porque foi pai, porque teve muito medo de educar o filho com base nos seus receios".
"É o meu grande mestre neste momento. Sinto que ele está-me a permitir resgatar uma criança que sofreu muito e que achou que foi feliz. Estou a admirá-lo. Sou fã do Lucas", realçou.
O dia em que conheceu a Madonna e a relação que nasceu
O encontro com Madonna também foi tema de conversa. "O que a encantou em mim foi a velocidade com que eu trouxe outros universos sonoros até ela".
"Uma amiga minha brasileira vinha cantar a Portugal e convidou-me para eu cantar um tema com ela, que era um tema da Cesária Évora. Uma amiga da Madonna que já viva cá, assistiu a esse concerto. Ela ouviu-me a cantar e disse-me que tinha uma amiga que era muito fã da Cesária e que ia adorar conhecer-me. Perguntou-me se podia ficar com o meu contacto. Isto a uma terça-feira e na quarta liga-me a explicar que a amiga era a Madonna, combinou o local e a hora do encontro e pediu-me para não dizer nada a ninguém", relatou.
"Ela [a Madonna] desconstruiu logo tudo porque ela quis saber mais sobre a minha vida, a minha história, do que o inverso. Talvez por ser mais óbvia a história dela", lembrou.
Ambos estiveram a falar da vida de Cesária Évora. "E eu percebi que ela sabia mais do que eu porque chegou a privar com a Cesária… A partir daí disse que já tinha um motivo bom para ficar em Portugal. E todas as semanas trazia-lhe um pouco de Moçambique, de Guiné, São Tomé, Cabo Verde, Angola, Brasil… Ela estava fascinada", disse.
"Ela disse que era impossível tanta concentração de gente tão boa, músicos incríveis, numa só cidade. Por isso é que ela ficou louca e começou a gravar um disco. Porque ela não ia gravar um disco”, contou.
O artista partilhou ainda que foi a "primeira pessoa" a quem Madonna quis mostrar o álbum quando o concluiu, pediu-lhe "ajuda em traduções" e "fez um disco incrível". "E comprometeu-se com o que ela me tinha dito que era ir para a estrada e levar pessoas de cá. Ela transportou Portugal para o palco. Fez questão de levar a história", destacou.