Há comportamentos que pensamos que são os mais corretos e inofensivos, mas é essencial que sejam evitados para o bom desenvolvimento de um bebé. Neste Dia Mundial da Criança, que se celebra a 1 de junho, conversamos com a psicóloga Clementina Almeida sobre alguns dos temas mais falados.
Uma entrevista que nos leva ainda para as marcas que a pandemia está a deixar nos mais pequenos, como o possível atraso no desenvolvimento dos bebés e das crianças devido ao uso da máscara nos adultos - um alerta já feito por especialistas.
Mas, antes, falamos da recente obra de Clementina Almeida, 'SOS Pais' – guia essencial para pais de crianças dos 0 aos 5 anos. Um livro que “tenta responder aos desafios mais comuns da parentalidade”, como destacou ao Lifestyle ao Minuto.
O que a diferencia esta obra de outras?
É que não aponta para nenhum estilo de parentalidade específico. Sou muito a favor da criatividade de cada um dos pais, porque acho que a beleza da nossa espécie está nisso, de sermos todos diferentes. Mas, acima de tudo, assenta na passagem de informação acerca do desenvolvimento cerebral para que consigamos fazer uma parentalidade neurocompatível – ou seja, compatível com o desenvolvimento do bebé em determinadas fases.
Por exemplo, no primeiro ano o sono normalmente é um grande desafio. Se nós conseguirmos perceber dentro da cabeça do nosso bebé como é que os padrões de sono se estão a organizar, se calhar conseguimos adequar as nossas expectativas, ter algumas ferramentas para lidar com algumas fases específicas pelas quais o sono vai passar... Ao dois anos, as birras, se eu conseguir perceber que um bebé que está a fazer birra não me está a tirar do sério, está simplesmente a passar por um momento de desregulação biológica que precisa da minha ajuda, se calhar também vou lidar com as birras de uma outra forma, independentemente de ser um pai mais brincalhão ou mais rígido. Depois cada um adapta ao seu estilo. Mas ter informação científica que tentei passar o mais simples possível e o mais de aproveitar logo no dia-a-dia, faz de nós melhores pais.
Um dos erros mais crassos é a vulnerabilidade que os pais têm, nomeadamente os de primeira viagem, em relação aos treinadores de bancada
Quais os principais pedidos de ajuda que mais recebe?
Essencialmente sono, depois vem a altura das birras, o desfralde também é algo que traz muitos papás à consulta… O que nós fazemos nas clínicas ForBabiesBrain, tanto no Porto como em Lisboa, é a consulta de psicologia pediátrica de rotina - ou seja, avaliamos a parte emocional e cognitiva dos bebés, tal e qual como o pediatra avalia a parte mais física. Nas consultas damos ferramentas aos papás de brincadeiras que podem acontecer, de áreas que possam não estar tão desenvolvidas e que precisem de ser mais estimuladas, e vamos acompanhando este desenvolvimento. Temos 50/50 - as consultas de SOS que são de dificuldades temporárias, e depois estas consultas de psicologia pediátrica de rotina.
Quais são os erros mais comuns que os pais cometem sem se aperceberem e que é essencial que sejam evitados?
Um dos erros mais crassos é a vulnerabilidade que os pais têm, nomeadamente os de primeira viagem, em relação aos treinadores de bancada. A toda a gente que à volta de uma recém-mamã e de um recém-papá dá palpites - ou porque está muito tempo à mama, ou só dá colo… Este tipo de coisas que faz com que as mães duvidem do seu instinto que seria aquilo que mais as levaria a ter comportamentos adequados e práticas parentais adequadas ao seu bebé, isto em termos gerais. E isso faz muitas vezes cometer muitos erros.
Depois um dos piores erros – mas isso porque há conselhos de alguns consultores e especialistas – é deixar os bebés a chorar para dormir. Esse é um erro com repercussões terríveis para o desenvolvimento do bebé.
Às vezes a falta de respeito. Nós ainda vimos de uma sociedade em que na minha altura, quando era pequenina, não podia responder de volta e não era tratada com o mesmo respeito que nós gostaríamos que nesta altura tratássemos todos os nossos bebés. Ou seja, que eles fossem vistos como pessoas, apesar de pequeninos humanos, mas com uma riqueza emocional que deve ser respeitada e que devemos ter por base a nossa conexão com eles, porque só assim é que vamos ter adultos saudáveis e felizes.
O recomendável, inclusive em termos internacionais, é que os bebés fiquem pelo menos até ao final do primeiro ano de vida no quarto com os pais
Pegando na questão do sono. De que forma é que a mudança de hora pode interferir no comportamento da criança e quais são as principais soluções?
A mudança da hora interfere porque há dois fatores que regulam o nosso sono e o dos bebés: um é a pressão do sono que se vai acumulando ao longo das horas, e do dia (no caso dos adultos); e o outro é a produção de melatonina que está de acordo com o nosso ritmo circadiano. Portanto, quando muda a hora, obviamente que isso vai ter impacto no sono dos mais pequeninos. E, regra geral, o que nós aconselhamos é fazer essa preparação prévia. Por exemplo, durante dez dias anteriores irmos alterando para a hora prevista, dez minutos, todos os dias, ou seja, suavemente para não haver aquele corte que vai fazer com que o bebé faça uma batalha para dormir ou que não queira dormir a sesta porque desregula uma hora. Depois em relação às idades, dependendo das idades, vai haver orientações e ferramentas diferentes, mas esta é a base.
O bebé deve ir dormir para o seu quarto o mais cedo possível?
O mais tarde possível. Nós somos animais de relação. Somos como todos os outros mamíferos, apesar de sermos os únicos mamíferos que inventamos coisas para meter os bebés a dormir ao lado e não colados a nós. O recomendável, inclusive em termos internacionais, é que os bebés fiquem pelo menos até ao final do primeiro ano de vida no quarto com os pais. Não têm que dormir na cama com os pais, mas pelo menos no quarto com os pais. Isso tem inúmeros benefícios tanto para a parte física - da regulação da temperatura, do batimento cardíaco, da respiração, especialmente os primeiros tempos –, mas tem depois também em termos das próprias fases que o bebé vai passando.
Por exemplo, por volta dos oito meses passamos por uma fase de angustia do estranho em que os bebés começam a estranhar as outras pessoas, porque dão-se conta que não estão ligados à mamã e ao papá. E é uma altura que coincide como múltiplos despertares exatamente por esta angustia. Portanto, é muito importante que o bebé sinta a presença dos pais ali ao lado e não acorde a sentir-se em perigo.
Quando o bebé acorda de noite e chora para ir ter com os pais é porque precisa de segurança e de proteção, mais nada - claro que também é porque precisa de comer, dependendo das horas. Nós recomendamos que ele consiga ficar até aos 18 meses porque temos algumas regressões do sono que só vão complicar a vida da mãe ou do pai que vai ter que andar a fazer piscinas entre um quarto e o outro, porque sabemos que o normal, o expectável, é o bebé despertar e para adormecer vai precisar da nossa ajuda, de uma intervenção externa.
Deixar um bebé à espera que ele se acalme sozinho é uma atrocidade, para mim é mau trato em relação ao bebé
E quando as crianças acordam e vão a meio da noite para a cama do pai e da mãe, também é saudável?
É sinal de que confiam em nós e se sentem muito seguros. Quando acordam e precisam de nós, estão a dizer-nos que somos a fonte de segurança deles. É porque eles acordaram a sentir-se em perigo. Por exemplo, aos dois anos, é uma idade de muito conflito interno. As crianças acham que são crescidas, que são capazes, querem fazer as coisas à sua maneira, mas depois ai que há muitos perigos aqui à volta e querem voltar para o seu porto seguro.
Imaginemos um bebé que durante o dia foi com os avós ao parque e no escorrega olhou para o lado e viu a cara de um senhor que lhe pareceu assustador. Ele ficou assustado naquele momento, mas não telefona para a mãe a dizer que ficou assustado, ele continua a explorar o mundo e a brincar. Mas de noite nós consolidamos todas as aprendizagem que fazemos durante o dia. Em termos emocionais, nós limamos as arestas de todas as experiências que tivemos, mesmo em adultos. E, por exemplo, esse bebé que de dia teve aquele momento que se sentiu com medo, de noite vai sonhar com isso e a mamã está lá, e pode ir lá pedir-lhe proteção, sentir que ela lhe dá segurança, mesmo não tendo a capacidade de explicar o que aconteceu. Normalmente, quando os bebés vêm ter connosco é porque sonharam com qualquer coisa que os fez sentir-se com medo e vêm ter connosco para nos dizer que somos a maior fonte de segurança, o que é extraordinário para nós.
Só que a nossa sociedade erra numa outra premissa que é querer fazer dos bebés o mais independente possível e o mais cedo possível. E isso é atropelar todo o desenvolvimento e é criar adultos inseguros e com uma saúde mental muito frágil no futuro. Quanto mais dependentes melhor.
Isto vai ao encontro da ‘lição’ de que os bebés não se conseguem acalmar sozinhos…
Exatamente. Esta capacidade de regulação que todos nós temos quando nos acontece qualquer coisa que nos deixa ansiosos e nós conseguimos pensar sobre a coisa ou, se calhar, verbalizar com um amigo… Os bebés não têm isto. Vão desenvolvendo, mas não é do dia para a noite. Vão desenvolvendo à custa de experiências de co-regulação, ou seja, só o bebé que tem um cuidador que o ajuda a acalmar, que lhe diz que está tudo bem, que lhe dá segurança, é que vai criando a experiência de regulação interna. E é uma experiência que vai crescendo, que vai aumentando até que mais velhos conseguem regular-se. Mesmo nós adultos temos situações em que difícil regular-nos porque fogem muito daquilo que é o dia adia. Mas deixar um bebé à espera que ele se acalme sozinho é uma atrocidade, para mim é mau trato em relação ao bebé.
Devemos tentar que o tempo que os bebés têm a lidar só com adultos de máscara seja o mínimo possível e que depois, em compensação, em casa consiga ter momentos de interação um a um
Recentemente houve uma notícia que dividiu opiniões sobre uma mãe que proíbe os avós de beijar a neta sem o consentimento da criança...
Nós devemos respeitar. Temos a ideia de que para ser educado temos que dar beijinho à avó e dar beijinho à tia. E, se calhar, ser educado é dizer “olá” ou acenar, e não sentir o corpo invadido, nem sentir que vou invadir o outro também. Existem muitos estudos, inclusive, que nos dizem que as crianças que são educadas neste sentido, depois mais tarde podem ter propensão a virem a ser abusadores ou vítimas. Porque o que nós estamos a ensinar é que e bom sentir-se desconfortável quando alguém nos vem dar um carinho. E o inverso, que é normal as pessoas forçarem o afeto ou o contacto próximo. Isso é uma péssima lição.
Óbvio que podemos fazer isto de forma educada porque estamos a lutar também contra algumas tradições, e compreendemos que os avós ficam tristes porque o pequenino não vai dar beijinho. Podemos explicar que é importante que ele se sinta confortável. Se calhar, mais tarde vai ser ele por iniciativa dele que vá dar um beijinho à avó ou ao avô só porque sente que faz sentido, e pode ser o avô que peça e ele dizer que sim. Obrigar, nunca, jamais. Porque não é sequer um sinal de educação. Mais uma vez, não estamos a respeitar os sentimentos e as emoções dos mais pequeninos, e ensinamos isso.
Já ouvi vários casos de crianças que na escola não falam mas em casa o mesmo não se verifica. O que pode levar a esta alteração de comportamento?
Em casa ele tem a certeza que a mamã e o papá o adoram, independentemente de às vezes mostrar as partes mais negras de si, e eles vão continuar a amá-lo incondicionalmente. Na escolinha não tem essa certeza. Os adultos que estão lá tomam conta dele, mas às vezes até vê que dão castigos a alguém ou que respondem torto a alguém, por isso não tem o à-vontade para mostrar todo o seu eu, mesmo quando se sente mal. E engole, engole e fecha. Depois o que acontece é que quando chega a casa está tipo panela de pressão, precisa que aquilo saia, e pode sair numa grande birra como numa criança que durante o dia fala muito pouquinho e no final uma grande tagarelice... Há alguma compensação.
Pior dos mitos é que o colo estraga. Que o mimo estraga. Esta ideia de que não se deve andar com os bebés ao colo porque se não eles vão-se habituar e depois ficam estragados para sempre
Especialistas alertaram que o uso da máscara pode atrasar o desenvolvimento dos bebés e das crianças. Como podemos melhorar ou combater tal situação?
Em termos das creches e dos colégios, é a utilização das máscaras transparentes. Ao contrário de nós [adultos] que conseguimos ler muito bem os olhos, os bebés leem os olhos, mas precisam da leitura da zona da boca por causa da linguagem para lerem a expressão e o estimulo da própria linguagem. Devemos tentar que o tempo que os bebés têm a lidar só com adultos de máscara seja o mínimo possível e que depois, em compensação, em casa consiga ter momentos de interação um a um. Ou seja, não é chegar a casa e meter o bebé a ver televisão ou sozinho. É muito importante que se compense - especialmente os mais pequeninos, no primeiro ano de vida - com leitura de histórias, com falar olhos nos olhos, com cantar, tudo o que quisermos, mas compensemos o número de horas em que os bebés estão só expostos a adultos com máscara.
Quais as principais marcas que especialmente o último ano pode deixar nas crianças?
Em geral, o que tenho visto em consulta é que temos alguns atrasos globais, nos mais pequeninos, porque eles foram inibidos de ter situações de estimulação sensorial que é o que mais precisa um cérebro de um bebé no primeiro ano. Foram inibidos de ir ao parque, de cheirar as flores - nem toda a gente tem jardim, nem toda a gente pode contactar com a natureza como precisaríamos para estimular os bebés. E pior do que isso, os bebés ficaram a maior parte do tempo em casa, mas com cuidadores que estavam a trabalhar.
Eu defendo que se os bebés puderem ficar só com um cuidador, seja com os avós ou com quem seja, até aos três anos, excelente. Porque no primeiro ano, em particular, precisam muito da relação um para um, e da responsividade em relação a qualquer necessidade. Mas tivemos adultos que estavam também a trabalhar, portanto, que não podiam estar a dedicar essa atenção. Acho que se perdeu muito por aí. Perdeu-me muito a oportunidade de estimulação sensorial dos mais pequeninos. Nos mais velhos temos o grande consumo de ecrãs e todas as alterações que isso provoca também em termos de funcionamento cerebral.
Um mito comum e como desmistificá-lo?
Acho que o pior deles todos é que o colo estraga. Que o mimo estraga. Esta ideia de que não se deve andar com os bebés ao colo porque se não eles vão-se habituar e depois ficam estragados para sempre. E, de facto, andar ao colo é só uma necessidade básica dos bebés quando nascem, e de todos nós que precisamos de aconchego. Só tem vantagens, inclusive nesta altura do campeonato, já temos estudos científicos a dizerem que altera inclusive o nosso DNA.
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