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"De toda a Europa, somos o país com maior incidência de cancro gástrico"

Ao Lifestyle ao Minuto, Carla Freitas, cirurgiã e coordenadora da Unidade de Patologia Esofagogástrica do Centro Hospitalar Tâmega e Sousa, realça a importância do diagnóstico precoce, através de rastreios, e as mais valias da cirurgia minimamente invasiva para tratar este tipo de cancro.

"De toda a Europa, somos o país com maior incidência de cancro gástrico"
Notícias ao Minuto

14:12 - 30/09/22 por Ana Rita Rebelo

Lifestyle Entrevista

O cancro do estômago, também chamado de cancro gástrico, é um dos tumores malignos mais frequentes em Portugal. Somos o país que apresenta a incidência mais elevada da Europa Ocidental, com 2300 mortes anuais. Pela dificuldade em identificar os sintomas que, em muitos casos, são vagos, os doentes chegam às consultas em estádios mais avançados da doença, o que reduz a eficácia do tratamento e contribui para o aumento da mortalidade.

Em entrevista ao Lifestyle ao Minuto, no Dia Mundial do Cancro Digestivo, Carla Freitas, cirurgiã e coordenadora da Unidade de Patologia  Esofagogástrica do Centro Hospitalar Tâmega e Sousa, alerta para o facto de existirem doentes em situações mais graves devido a diagnósticos tardios na sequência da pandemia de Covid-19. "Durante a pandemia, houve um grande atraso no diagnóstico, porque a endoscopia implica que o doente tenha a boca e o nariz expostos"

A médica, pioneira em Portugal na cirurgia minimamente invasiva no cancro do estômago, avança que "houve um acumular muito grande de doentes, que mesmo sintomáticos aguardavam a realização da endoscopia". Além disso, alguns doentes deixaram de ir às consultas, "mesmo aqueles que já tinham um diagnóstico e tratamento e estavam em vigilância". "Tinham medo de vir ao hospital."

Notícias ao Minuto Carla Freitas© DR

"Vamos 'pagar' estes dois anos de pandemia ao longo de vários anos, porque a recuperação vai demorar", reconhece. Para Carla Freitas, o rastreio deveria ser alargado ao cancro do estômago, nomeadamente nas zonas de maior incidência, "uma estratégia que já é sugerida pela Sociedade Portuguesa de Gastrenterologia há vários anos".

De toda a Europa, somos o país com maior incidência de cancro gástrico

Quais as particularidades do cancro do estômago?

O cancro do estômago em Portugal tem algumas particularidades no que diz respeito ao diagnóstico e à incidência do mesmo. De toda a Europa, somos o país com maior incidência de cancro gástrico. Dentro do país, a região norte tem uma incidência muito próxima das áreas de maior incidência mundial, como a Coreia e o Japão. Não temos tantos casos, mas estamos próximos. Infelizmente, no nosso país, mesmo na zona de grande incidência (norte), não há rastreio de cancro gástrico, o que faz com que os doentes sejam diagnosticados já em estádios muito avançados. Portanto, a taxa de cura e sucesso não é a que poderia ser caso tivéssemos rastreios, como o que é feito nos países asiáticos ou mesmo em Portugal no caso de outros cancros, como o colorretal e o da mama.

Estão determinadas causas para esta doença?

À semelhança de todos os outros cancros, não tem uma causa.

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Existem, no entanto, fatores promotores. 

Sim. O que mais se tem debatido nas últimas décadas é a infeção pela bactéria 'Helicobacter pylori', que tem uma incidência muito elevada no nosso país. Este é o fator externo não alimentar que mais facilmente poderia ser controlado. Depois, temos os restantes fatores ambientais, o consumo de fumados, alimentos muito salgados, a pouca ingestão de fibras e frutos frescos. Além disto, o tabagismo e o álcool contribuem para todos os tipos de cancro. Existem também cancros gástricos devido a mutações familiares, mas são raros os casos. O cancro gástrico é mais frequente a partir dos 50/60 anos, o que está relacionado com a oncogénese deste tumor e as alterações da mucosa, que vão depois levar ao seu aparecimento. Aos 20/30 anos, as neoplasias gástricas são, de facto, muito raras e estão habitualmente associadas a uma mutação genética.

Os sintomas são muito inespecíficos e podem incluir desde vómitos até ao síndrome depressivo

Uma vez que falou de tabagismo e de hábitos alimentares, é possível prevenir a doença?

Em primeiro lugar, é importante alterar os nossos hábitos de vida. O cancro gástrico a nível mundial tem mudado nas últimas décadas.  Em Portugal, prevaleciam essencialmente os cancros do estômago distal e, agora, à semelhança do que acontece nos países desenvolvidos, temos mais cancro proximal, que está mais associado, não tanto aos fumados, mas à doença de refluxo e à obesidade. Como tal, começar por ter estilos de vida mais saudáveis, evitar a obesidade, aumentar a ingestão de legumes e frutas frescos, diminuir o consumo de fumados e sal, um fator para inúmeras doenças, em excesso, seriam os primeiros passos. Ainda assim, a verdade é que, mesmo sendo um tema razoavelmente debatido, continua a não estar enraizado na cultura do nosso povo. Enquanto não conseguirmos fazer esta alteração cultural de hábitos de vida diária, não será possível reverter isto. 

Qual é o ingrediente alimentar mais tóxico?

Nada faz mal se não for em excesso. Relativamente ao cancro gástrico, quando vemos que este tem maior incidência no norte, conseguimos também perceber que os hábitos alimentares estão relacionados com isto. Existem alguns alimentos que são muito mais consumidos no norte, como os alimentos fumados.

Quais os sintomas deste cancro?

Os sintomas são muito inespecíficos e podem incluir desde vómitos até ao síndrome depressivo. A pessoa pode não ter apetite e andar cansada, mas não consegue objetivar queixa nenhuma. No entanto, habitualmente, o cancro  provoca sintomas de obstrução (os alimentos não conseguem fazer o seu percurso no tubo digestivo), com queixas de vómitos, ainda, hemorragia, desconforto, náuseas, aumento do volume abdominal, anemias, emagrecimento e o vómito ou as fezes com sangue. Habitualmente, quando o cancro gástrico é assintomático está já em fases mais avançadas. Nas fases iniciais, a pessoa pode ter um desconforto, uma indisposição ou até azia, por exemplo, que muitas vezes não são valorizados. Quando esta pessoa vai de facto procurar ajuda médica, acaba por fazê-lo já em fases mais adiantadas e tardias da doença.

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Porque é que é tão difícil identificar os sintomas?

A dificuldade prende-se precisamente com o facto de os sintomas iniciais serem tão inespecíficos, o que faz com que sejam muitas vezes desvalorizados.

Como é realizado o diagnóstico?

O diagnóstico é feito através da realização de uma endoscopia com biopsia, na qual é feita a recolha de um fragmento da lesão, que depois é analisado ao microscópio, de forma a serem identificadas as células neoplásicas. Existem outros exames, mas o diagnóstico confirmado implica sempre uma identificação celular, através da biópsia. Quanto mais precoce for o diagnóstico, maior é a probabilidade de termos um tratamento com intenção curativa. Um cancro gástrico metastizado raramente pode ser curado.

O rastreio deveria ser alargado ao cancro do estômago, à semelhança do que é feito com o cancro colorretal, nomeadamente nas zonas de maior incidência

Todos devíamos fazer endoscopias?

Não existem em Portugal recomendações definidas para o rastreio do cancro gástrico, ao contrário do que acontece em países asiáticos, por exemplo. Mas começam a haver algumas sugestões por parte dos colegas de Medicina Geral e Familiar. Por exemplo, quando o doente faz a colonoscopia, porque faz parte da indicação para o rastreio do cancro colorretal a partir dos 50 anos, acaba por fazer também a endoscopia. De facto, no período pré-pandemia, começámos a perceber que a realização destes dois exames em simultâneo estava já a ser feita com alguma frequência, pelo menos na minha área geográfica. Começaram a chegar-nos doentes que, apesar de não terem queixas, tinham a sua neoplasia diagnosticada. Ou seja, foi num exame de rastreio.

Quais os tratamentos à disposição?

São cada vez mais multimodais, por exemplo, através da cirurgia em combinação com a quimioterapia, quando ela é necessária e dependendo do estádio do doente. Em estádios precoces os doentes não são submetidos a quimioterapia, por exemplo. A cirurgia minimamente invasiva, em termos oncológicos, é apenas uma abordagem. Ou seja, são executados exatamente os mesmos gestos da cirurgia clássica (de barriga aberta), são tirados exatamente os mesmos segmentos do órgão, que dependem do tipo histológico e da localização do tumor. Estes vão definir se precisamos de fazer uma gastrectomia total. São também tirados os gânglios como numa cirurgia aberta. A grande diferença é que, como em qualquer outro ato cirúrgico, se conseguirmos fazer uma cirurgia menos agressiva, o pós operatório é incomparavelmente menor. O doente tem menos dor, mobiliza-se mais cedo, o tubo digestivo começa a trabalhar e recupera a sua função mais rapidamente. Ou seja, o pós-operatório é muito menos complicado. Adicionalmente, permite que haja menos infeções respiratórias e da parede abdominal.

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Como se compara a realidade nacional com o panorama mundial?

Em Portugal, o tratamento do cancro gástrico tem melhorado. Em termos de oferta, temos disponíveis no Serviço Nacional de Saúde todas as ferramentas terapêuticas que existem a nível mundial. O problema está na escassez de diagnósticos precoces. E é aqui que temos de mudar, principalmente nas zonas de maior incidência, como é o caso do norte do país. A nível europeu, temos resultados semelhantes ao que se faz em toda a Europa desenvolvida.

Durante a pandemia, houve um grande atraso no diagnóstico

Que estratégias devem ser adotadas para tentar contrariar a atual realidade portuguesa? O que considera que se deve mudar ou aperfeiçoar no combate ao cancro gástrico no nosso país?

O rastreio deveria ser alargado ao cancro do estômago, à semelhança do que é feito com o cancro colorretal, nomeadamente nas zonas de maior incidência, uma estratégia que já é sugerida pela Sociedade Portuguesa de Gastrenterologia há vários anos.  Resumindo, o diagnóstico deve ser realizado de forma mais precoce. Paralelamente, a população deve ser educada, de forma a evitar os fatores de risco na sua vida diária. Existem ainda outras estratégias, como a utilização da rede hospitalar. Por exemplo, no nosso hospital não existe tempo de espera. Ainda assim, se enquanto país conseguíssemos assumir que a região norte tem uma alta taxa de incidência de cancro gástrico e que temos de educar a população e promover rastreios, só isso, já nos daria resultados extraordinários.

Que investimento vai ser preciso fazer para recuperar todo o tempo perdido com a pandemia, em que os doentes ficaram para segundo plano?

Durante a pandemia, houve um grande atraso no diagnóstico, porque a endoscopia implica que o doente tenha a boca e o nariz expostos. Portanto, durante muito tempo, não se faziam endoscopias de rotina. Apenas se faziam endoscopias urgentes. Houve assim um acumular muito grande de doentes, que mesmo sintomáticos aguardavam a realização da endoscopia. Durante seis meses quase não houve diagnósticos de cancro gástrico e os doentes chegam-nos agora em estádios muito mais avançados. Além disto, alguns doentes deixaram de vir às consultas, mesmo aqueles que já tinham um diagnóstico e tratamento e estavam em vigilância. Tinham medo de vir ao hospital. Vamos 'pagar' estes dois anos de pandemia ao longo de vários anos, porque a recuperação vai demorar.

Que mensagem deixa a estes doentes?

O cancro gástrico tem tratamento e nós estamos cá para vos ajudar. Os hospitais não oncológicos também têm recursos e profissionais com qualidade e competência para vos ajudar. Venham ter connosco, estamos sempre disponíveis para vos tratar sempre que for possível e das formas possíveis. Temos recursos, estamos disponíveis e é essa a nossa missão.

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