Mais de um em cada 10 adultos – ou seja, mais de 500 milhões de pessoas em todo o mundo - tem diabetes. Em Portugal, estima-se que cerca de um milhão sofra desta doença. Contudo, "ainda há cerca de 40% da população portuguesa que apresenta diabetes sem ter a doença diagnosticada", alerta ao Lifestyle ao Minuto José Silva Nunes, especialista do Centro Hospitalar Universitário Lisboa Central, e presidente da Sociedade Portuguesa para o Estudo da Obesidade.
A propósito do Dia Mundial da Diabetes, que se assinala esta segunda-feira, 14 de novembro, explica que, "apesar da acessibilidade aos cuidados de saúde ser melhor do que há algumas décadas atrás, existe uma percentagem significativa da população nacional que não tem médico de família e, assim, não faz análises com regularidade". Mais: "O facto de, geralmente, a doença ser indolor faz com que o diagnóstico ocorra tardiamente".
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Como tal, lembra, "é necessário promover estilos de vida saudável". "Se não se conseguir parar a escalada da obesidade será de esperar um aumento correspondente na prevalência da diabetes mellitus", vaticina o especialista.
José Silva Nunes© DR
Quantas pessoas com diabetes tipo 1 e tipo 2 existem em Portugal?
Segundo os dados mais recentes, existirão cerca de um milhão de portugueses com diabetes mellitus. Não existem dados fidedignos que avaliem a prevalência de pessoas com diabetes tipo 1 e com diabetes tipo 2. No entanto, assume-se que o tipo 2, o mais frequente, corresponde entre 90 e 95% do total de pessoas com diabetes.
Em que consiste exatamente a diabetes e quais as diferenças entre o tipo 1 e tipo 2?
A glicose é o principal açúcar que o organismo utiliza para 'alimentar' as suas células. A diabetes caracteriza-se por uma elevação persistente dos níveis de glicose no sangue (glicemia). Embora esse seja o denominador comum aos vários tipos da doença, a diferença entre eles decorre dos diferentes mecanismos subjacentes ao desencadear da hiperglicemia. A diabetes tipo 1 resulta de um processo autoimune em que há destruição das células responsáveis pela secreção de insulina no pâncreas. Por outro lado, a diabetes tipo 2 tem mecanismos fisiopatológicos mais complexos mas, em grande parte, resulta de uma menor ação da insulina a nível dos seus órgãos-alvo (insulinorresistência) e de uma menor capacidade de secreção de insulina.
Em situações agudas, a descompensação da doença pode levar a risco de morte, se não for corretamente diagnosticada e tratada
Qual o mais grave?
Todos os tipos de diabetes são igualmente graves, especialmente se a doença não for devidamente controlada. A manutenção de níveis elevados de glicemia aumenta o risco de desenvolvimento de complicações da doença.
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Quais são as consequências?
Em situações agudas, a descompensação da doença pode levar a risco de morte, se não for corretamente diagnosticada e tratada. A longo prazo, a diabetes está associada ao risco de desenvolver doença cardiovascular e afeção dos pequenos vasos da retina, do rim e dos nervos. Esta é a razão pela qual a diabetes pode induzir problemas oftalmológicos (com eventual diminuição/perda da visão), nefrológicos (com perda da função renal e evolução para a necessidade de hemodiálise) ou neurológicos (com compromisso da sensibilidade à dor).
Mais de 500 milhões de pessoas em todo o mundo têm diabetes e só nas últimas duas décadas os números triplicaram. A que se deve este aumento alarmante?
Nas últimas décadas temos vindo a assistir a um aumento marcado da prevalência de diabetes mellitus. Embora exista um fundo genético, que confere uma marcada hereditariedade à diabetes tipo 2, a idade avançada também constitui um fator de risco importante, particularmente numa sociedade envelhecida como é a portuguesa. Contudo, o fator ambiental tem sido o principal culpado pela situação pandémica a que assistimos na diabetes; os erros alimentares e o sedentarismo, que caracterizam a generalidade das sociedades atuais, promovem um aumento na prevalência de obesidade e pré-obesidade. Estas condições que se caracterizam por excesso de tecido adiposo são, sem sombra de dúvida, as principais responsáveis pela expressão da diabetes mellitus na nossa sociedade.
E o que podemos esperar daqui para a frente?
Se não se conseguir parar a escalada da obesidade será de esperar um aumento correspondente na prevalência da diabetes mellitus.
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O que é urgente combater para conseguirmos alterar a estatística?
Para alterar o aumento crescente da prevalência de diabetes, é necessário promover estilos de vida saudável, evitando o aparecimento de obesidade e, secundariamente, prevenir o desenvolvimento da diabetes tipo 2.
Diabetes também confere um risco acrescido para o desenvolvimento de cancro e de demência
Quem é que deve protagonizar essas mudanças?
A promoção de um estilo de vida saudável é da responsabilidade de cada cidadão. Contudo, é possível a implementação de várias medidas que facilitam a adoção de um estilo de vida mais saudável, quer a nível governamental (por exemplo, benefícios fiscais para atividades relacionadas à prática do exercício físico e o alívio fiscal sobre alimentos saudáveis), quer a nível autárquico, por exemplo: a criação de espaços verdes que convidem para a prática de atividade física.
Estima-se que 6,7 milhões de pessoas tenham morrido de causas associadas à diabetes só em 2021. Destas, quais as patologias de que pouco ou nada se fala?
Existe um conjunto de complicações que podem surgir a longo prazo, aceleradas mediante um controlo inadequado da doença. A diabetes é, atualmente, a principal causa de entrada em insuficiência renal terminal que culmina em necessidade de diálise. É, igualmente, uma das principais causas de defeitos visuais que podem necessitar de tratamento com laser ou, mesmo, culminar em perda total da visão. Outra das complicações da doença que pode surgir é a situação de 'pé diabético'. Esta condição pode resultar em necessidade de amputação de parte de um ou de ambos os membros inferiores. As consequências da diabetes e a frequente concomitância com outros fatores de risco cardiovascular (como a hipertensão arterial e a dislipidemia), também fazem com que seja acelerado o processo de aterosclerose, com aumento do risco de ocorrência de um enfarte agudo do miocárdio ou um acidente vascular cerebral. Como se todas estas condições não fossem suficientes, a diabetes também confere um risco acrescido para o desenvolvimento de cancro e de demência.
Ainda pior é o facto de muitas pessoas viverem com diabetes sem saberem que têm a doença. Isso ainda acontece porquê? Considere que a doença é subestimada?
Ainda há cerca de 40% da população portuguesa que apresenta diabetes sem ter a doença diagnosticada. Apesar da acessibilidade aos cuidados de saúde ser melhor do que há algumas décadas atrás, existe uma percentagem significativa da população nacional que não tem médico de família e, assim, não faz análises com regularidade. O facto de, geralmente, a doença ser indolor faz com que o diagnóstico ocorra tardiamente.
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A que sintomas e sinais devemos estar atentos?
Nas situações de maior descompensação, a diabetes pode manifestar-se por um quadro de cansaço, sede, urinar mais do que o habitual e aumento do apetite, apesar de a pessoa não aumentar de peso ou mesmo ocorrer perda de peso. Contudo, na maioria dos casos de diabetes tipo 2 (o mais frequente), o diagnóstico é efetuado através de análises de rotina em pessoas que não tinham sintomatologia valorizável.
Um em cada cinco doentes hospitalizados com Covid-19 com diabetes morreu nos 28 dias após a admissão
Um inquérito encomendado à YouGov pela Merck, que envolveu oito mil adultos de oito países, mostra que a pandemia veio piorar uma situação que já era, por si só, delicada, devido à alteração dos estilos de vida. A mortalidade destes doentes aumentou?
Enquanto algumas pessoas conseguiram implementar bons hábitos e aproveitar a oportunidade para fazer mudanças positivas, para outras ocorreu o oposto efeito, com os bons hábitos existentes substituídos por outros menos saudáveis. Muitos entrevistados relataram uma melhora na quantidade de frutas e legumes que consumiam durante a pandemia e um aumento na quantidade de exercícios que conseguiam realizar. Por outro lado, um número significativo de entrevistados também relatou que as suas dietas continham mais alimentos ricos em gordura e açúcar, mais comida processada e que haviam visto uma diminuição na quantidade de exercícios que eram capazes de realizar. Esses resultados contrastantes mostram quão diferentemente os estilos de vida das pessoas foram impactados pela pandemia e, se esses hábitos recém-formados persistirem após o bloqueio, isso poderá afetar as taxas de diabetes no futuro. Em relação às implicações sobre as taxas de mortalidade, existe um estudo europeu realizado durante o primeiro ano da pandemia que verificou que um em cada cinco doentes hospitalizados com Covid-19 com diabetes morreu nos 28 dias após a admissão.
Quanto a tratamentos, quais os avanços mais inovadores dos últimos anos?
Sem sombra de dúvida que a possibilidade de administração de insulina, desde 1922, foi um passo maior na terapêutica da diabetes. Nos últimos 100 anos, vários avanços foram conseguidos na melhoria da saúde das pessoas com diabetes, quer através do desenvolvimento de novos fármacos seguros e eficazes, quer através de dispositivos de controlo da doença. Passámos a ter insulinas que atuam de forma mais fisiológica e outros fármacos que contrariam vários dos defeitos fisiológicos que caracterizam a diabetes tipo 2. Contudo, nos últimos anos verificou-se uma mudança de paradigma com o aparecimento de fármacos que, além do seu efeito antidiabético, modificam o prognóstico de vida da pessoa com diabetes tipo 2, exercendo efeitos benéficos múltiplos.
Uma pessoa com diabetes pode curar-se?
A diabetes tipo 1 e tipo 2 são doenças crónicas, ou seja, para toda a vida. Contudo, várias pessoas com diabetes tipo 2 podem deixar de necessitar de terapêutica farmacológica por se verificar uma redução significativa no seu peso corporal. Neste caso, não se deve falar de cura mas, antes, de remissão. Estes relatos são mais frequentes nos doentes submetidos a cirurgia bariátrica (a cirurgia para tratamento da obesidade) que, em virtude dos resultados obtidos na remissão da diabetes tipo 2, levou ao desenvolvimento da cirurgia metabólica (a cirurgia para tratamento primário de pessoas com diabetes tipo 2).
A insulina surgiu há precisamente 100 anos. O que mudou de lá para cá?
Nos últimos 100 anos verificou-se uma melhoria marcadíssima na qualidade de tratamento das pessoas com diabetes, nomeadamente no que concerne à administração de insulina (o único tratamento para a diabetes tipo 1 e, igualmente, um tratamento para muitas das pessoas com diabetes tipo 2) ocorreu uma evolução significativa. Passaram a estar disponíveis sistemas de administração de insulina mais seguros, sem necessidade de desinfeção dos mesmos, alguns deles descartáveis e, num futuro próximo, com tecnologia de ponta. A própria insulina, hormona usada para terapêutica de substituição nos casos em que o pâncreas não a produz em quantidade suficiente, também evoluiu para modificações genéticas da molécula original: os chamados análogos de insulina (rápidos e lentos). Com os análogos lentos consegue-se manter níveis basais de insulina durante as 24 horas do dia e com os análogos rápidos consegue-se uma maior aproximação àquela que seria a resposta fisiológica à ingestão de alimentos, se o pâncreas ainda produzisse a insulina necessária.
Estas pessoas precisam de um cuidado extra na época gripal?
As pessoas com diabetes de qualquer tipo apresentam uma menor capacidade imunológica, nomeadamente no combate às infeções virais. Verificou-se isso com a situação de Covid-19 e já era reconhecido, há muito tempo, para a infeção pelo vírus da gripe. Embora a melhoria no controlo da diabetes diminua o risco, as pessoas com diabetes têm uma maior probabilidade de desenvolver formas graves. Este risco acrescido sustenta o aconselhamento para que as pessoas com diabetes devam efetuar a vacina antigripal todos os anos.
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