E quando não está tudo bem? "Estigma face à doença mental ainda perdura"

Em entrevista ao Lifestyle ao Minuto, o enfermeiro Carlos Sequeira, presidente da Sociedade Portuguesa de Enfermagem de Saúde Mental, alerta que o número de casos de depressão está a aumentar e as políticas de saúde existentes não chegam para fazer frente a este problema.

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Ana Rita Rebelo
16/06/2023 08:20 ‧ 16/06/2023 por Ana Rita Rebelo

Lifestyle

Entrevista

O enfermeiro Carlos Sequeira, presidente da Sociedade Portuguesa de Enfermagem de Saúde Mental (ASPESM) define a depressão como "uma doença afetiva que tem múltiplas repercussões". Afeta cerca de 350 milhões de pessoas a nível mundial e Portugal está entre os países da Europa com maior prevalência de doenças psiquiátricas. Cerca de 700 mil pessoas apresentam sintomas depressivos.

Segundo a Sociedade Portuguesa de Psiquiatria e Saúde Mental, as perturbações mentais e do comportamento representam 11,8% da carga global das doenças do país - mais do que as oncológicas (10,4%) e apenas ultrapassadas pelas patologias cérebro-cardiovasculares (13,7%). E a pandemia de Covid-19 e as consequências que a guerra na Ucrânia trouxe à economia europeia só terão vindo agravar os números.

Por isso, o responsável da ASPESM defende, em entrevista ao Lifestyle ao Minuto, que "o investimento nesta área é fundamental", pelo que "deveria existir um consenso suprapartidário, centrado nas pessoas ao nível do seu desenvolvimento pessoal e nos diferentes contextos, iniciando-se na gravidez e terminando na velhice". "Apesar dos imensos progressos e de uma maior consciencialização geral, o estigma face à doença mental ainda perdura", lamenta Carlos Sequeira, sublinhando que uma das consequências é "o hiato que existe entre o surgimento dos primeiros sintomas e a efetiva procura de ajuda".

Notícias ao Minuto © Carlos Sequeira

O receio da discriminação foi justamente o pretexto para avançar com a campanha de sensibilização 'Depressão Sem Rodeios' e, assim, mostrar que "a depressão é mais do que um estado de humor".

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Fale-me um pouco sobre a campanha de sensibilização 'Depressão sem Rodeios'. Quando arrancou e com que objetivos?

A Lundbeck Portugal lançou, em 2011, esta campanha que é, no fundo, um alerta à população para uma doença que afeta milhares de portugueses. Com o mote 'a depressão é mais do que um estado de humor', a iniciativa teve como principais objetivos reduzir o estigma e a desvalorização associados à doença e alertar para a necessidade de procurar ajuda médica atempadamente, assim como chamar a atenção para os sintomas, desmistificar a psiquiatria como especialidade médica responsável pelo tratamento das doenças mentais e o acesso ao tratamento adequado, para além de diminuir a discriminação social relacionada com esta patologia. A primeira fase da campanha englobou um conjunto de ações de divulgação, desde um website especialmente criado para a campanha, um vox pop, spots de vídeo nos cinemas e na televisão, mini curtas-metragens, mupis e distribuição de flyers em locais públicos. A segunda fase da campanha, iniciada em março de 2022, somou à primeira fase, o lançamento de oito episódios em formato podcast, intitulado 'Podcast Sem Rodeios: Vamos falar de depressão', que reuniu para debate descontraído profissionais de saúde, doentes, sociedades e associações médicas especializadas na área, fomentando o sucesso já desencadeado anteriormente. Depois do sucesso do 'Podcast Sem Rodeios: Vamos falar de depressão', a campanha 'Depressão Sem Rodeios' entra agora numa nova fase através de num formato inovador: videocast. 'Questionar é Elemental' é um talk-show que tem vindo a ser emitido quinzenalmente e que tem contado com a presença de convidados especialistas na área da saúde mental e um testemunho, entrevistados por Catarina Miranda e Vanda Miranda. Esta série pretende dar continuidade à missão de sensibilizar, desmistificar e informar a população portuguesa para a importância da saúde mental, de forma mais próxima, descontraída e sem tabus. Desenvolvido pela farmacêutica Lundbeck, em parceria com a Sociedade Portuguesa de Psiquiatria e Saúde Mental, a Associação Portuguesa de Medicina Geral e Familiar, a Federação Portuguesa das Associações das Famílias de Pessoas Com Experiência de Doença Mental, a Associação para a promoção da saúde mental, aos quais se juntaram nesta fase a Sociedade Portuguesa de Enfermagem de Saúde Mental e a European Depression Association. O objetivo é sensibilizar e desmistificar o estigma associado à depressão, uma das doenças com maior incidência em Portugal e no mundo.

Procura de ajuda é determinante para a recuperação e minimização das repercussões da doença e deve ser pedida assim que seja identificada uma alteração profunda da forma de ser e estar do doente, seja pelo próprio ou pelos que o rodeiam

Como define a depressão?

É uma doença afetiva que tem múltiplas repercussões na pessoa na família e no seu contexto. A nível individual tem consequências cognitivas emocionais e comportamentais que podem ser muito incapacitantes e interferir com o círculo familiar mais próximo, amigos e até na relação que o doente tem com ele mesmo.

O que acontece com quem vive com depressão?

As principais manifestações individuais da depressão são a tristeza persistente, humor depressivo, perceção de incapacidade, anedonia, diminuição da autoestima e da volição, ausências de prazer nas atividades habituais, dificuldades de concentração, sentimento de incapacidade para trabalhar e para agir socialmente, pelo que não procura as interações sociais nem ajuda de terceiros, pensamentos negativos sobre si e acerca do futuro. Trata-se de um conjunto de manifestações que, no seu todo, descaracterizam a forma de ser habitual da pessoa.

Quando é que se deve pedir ajuda?

A literacia desempenha hoje um papel fundamental na depressão, pois é por esta via que a pessoa toma consciência dos sintomas, percebe a sua gravidade e procura ajuda adequada, o mais precocemente possível. Esta procura de ajuda é determinante para a recuperação e minimização das repercussões da doença e deve ser pedida assim que seja identificada uma alteração profunda da forma de ser e estar do doente, seja pelo próprio ou pelos que o rodeiam.

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Existe preconceito quando se fala de doença mental?

Apesar dos imensos progressos e de uma maior consciencialização geral, o estigma face à doença mental ainda perdura. Na realidade, está associado à incompreensão sobre a depressão e à baixa literacia da população. Trata-se de uma doença com manifestações complexas e muitas vezes são confundidas de forma errada com o facto de uma pessoa ser 'preguiçosa' ou 'não querer trabalhar'. Um exemplo de como o estigma existe em contexto laboral é que se alguém faltar quatro ou cinco vezes durante um ano devido a uma lombalgia, os colegas compreendem. Se alguém começar a faltar de forma sucessiva devido a uma depressão, os colegas desconfiam e eventualmente farão comentários relacionados com os preconceitos face à doença. Outro exemplo está relacionado com a terapêutica. Um diabético habitualmente aceita que irá tomar a terapêutica por um longo período como uma condicionante da patologia, enquanto nos problemas de saúde mental existe, por norma, receio de ficar dependente da terapêutica e das consequências da medicação, o que, atualmente, é uma ideia infundada.

Há um estigma em relação a antidepressivos?

Ainda existe muito preconceito face à medicação, em virtude da pouca literacia, dos medos dos efeitos secundários da medicação, da eficácia da terapêutica, pelo que o papel dos diferentes profissionais de saúde é cada vez mais fundamental nesta área para desmistificar mitos como estes.

A Covid-19 e a crise económica que se vive desde o despontar da guerra na Ucrânia agravaram os números?

É natural que a depressão tenha aumentado com a Covid-19 e a atual crise económica relacionada com a inflação e subida das taxas de juro, pois são situações que interferem com a interação social e as perspetivas futuras das pessoas. Isso são variáveis determinantes para o aparecimento da depressão. As situações de dificuldade económica geram um contexto negativo favorável ao aparecimento de sintomas depressivos. Adicionalmente, verificou-se uma maior consciencialização para os problemas de saúde mental, o que levou a uma maior procura de ajuda e, por consequência, um maior número de pessoas a serem diagnosticadas. É fundamental proceder a um maior investimento na saúde mental das pessoas, ajudando-as a serem mais resilientes, a adquirirem mais estratégias para promoção do seu bem-estar/satisfação e a saber lidar com as adversidades.

Existem estados de depressão coletiva?

A depressão coletiva é uma expressão que se utiliza para descrever uma situação de crise que afeta um grande número de pessoas, mas não tem uma forma clínica. Existem determinados ecossistemas que promovem a depressão em termos genéricos, mas a depressão, em si, é individual.

A procura de ajuda só acontece quando os sintomas têm uma regularidade ou intensidade significativa, ou seja, com o problema já instalado

Fala-se pouco sobre a necessidade de dar resposta aos problemas de saúde mental latentes. Porquê?

Os problemas de saúde mental são muito diversos, ou seja, referem-se a um espetro muito vasto de situações. Parece que atualmente existe mais 'sensibilidade' por via da comunicação social e da maior literacia das pessoas para a sua identificação e acompanhamento. Existe um conjunto de respostas padrão em função da tipologia dos problemas, contudo é importante salientar que as intervenções devem sempre ser adaptadas às pessoas e ao seu contexto. Considerando a multiplicidade de fatores concorrentes para os problemas de saúde mental e considerando que os resultados apenas são visíveis a longo prazo, o investimento na saúde mental torna-se pouco apelativo em termos políticos onde se joga no imediato. No entanto, o investimento nesta área é fundamental para termos uma sociedade mais produtiva, mais satisfeita e com mais saúde, pelo que deveria existir um consenso suprapartidário, centrado nas pessoas ao nível do seu desenvolvimento pessoal e nos diferentes contextos, iniciando-se na gravidez e terminando na velhice. Isso tornava-se possível, por exemplo, investindo num plano individual de cuidados, focado nos aspetos da promoção da saúde mental, na prevenção e no tratamento/recuperação (após surgimento da doença), investindo na promoção da saúde mental nos espaços escolares, nos espaços de trabalho, nas autarquias, em suma, investir na amplificação de estratégias em prol da saúde mental.

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Essa falta de investimento na saúde mental explica o facto de o intervalo de tempo entre o início dos sintomas e a procura por tratamento médico ser tão longo?

Um dos problemas em saúde mental está efetivamente relacionado com o hiato que existe entre o surgimento dos primeiros sintomas e a efetiva procura de ajuda, na medida em que muitos dos sintomas se confundem com as alterações que ocorrem no quotidiano como a tristeza, as alterações do pensamento e da memória. Por isso, a procura de ajuda só acontece quando os sintomas têm uma regularidade ou intensidade significativa, ou seja, com o problema já instalado.  Daí a importância da literacia e da primeira ajuda em saúde mental, pois permitem identificar e diferenciar os sintomas entre a 'normalidade' e o problema, auxiliar e solicitar ajuda adequada. O investimento nesta área no âmbito das pessoas, das famílias, das empresas e das comunidades seria fundamental para melhorar a intervenção.

O que é que já devia estar a ser feito para antecipar estes problemas?

Uma maior participação dos enfermeiros especialistas em saúde mental com programas específicos de intervenção e intervenções psicoterapêuticas poderiam ser um contributo significativo para a promoção da saúde mental e para uma melhor recuperação destas pessoas. A título de exemplo, os enfermeiros especialistas em saúde mental, nas unidades de cuidados na comunidade existentes nos centros de saúde poderiam fazer o acompanhamento das pessoas com depressão, capacitando-as para lidarem com as adversidades e para uma adoção de estratégias de promoção da sua saúde mental, através de hábitos de 'higiene mental' ou 'ventilação emocional'. Isto teria diversos ganhos para a pessoa, por via da melhor recuperação e menor número de recaídas, para a família, pois teriam mais literacia e, por essa via, seriam um elemento de apoio para a pessoa com depressão, e para o sistema de saúde, pois os custos seriam menores, considerando os ganhos objetivos e subjetivos.

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Serviços telefónicos de apoio emocional em Portugal

SOS Voz Amiga (entre as 16 horas e as meia-noite) -  213 544 545 (número gratuito) - 912 802 669 - 963 524 660 

Conversa Amiga (entre as 15 e as 22 horas) - 808 237 327 (número gratuito) e 210 027 159

SOS Estudante (entre as 20 horas e a uma da madrugada) - 239 484 020 - 915246060 - 969554545

Telefone da Esperança (entre as 20 e as 23 horas) - 222 080 707 

Telefone da Amizade (entre as 16 e as 23 horas) – 228 323 535

Todos estes contatos garantem anonimato tanto a quem liga como a quem atende. No SNS24 (808 24 24 24), o contacto é assumido por profissionais de saúde. Deve selecionar a opção 4 para o aconselhamento psicológico. O serviço está disponível 24 horas por dia, sete dias por semana.

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