Em Portugal, estima-se que cerca de 400 mil pessoas vivam com insuficiência cardíaca (IC). Contudo, um inquérito realizado recentemente pela Spirituc, em parceria com a Associação de Apoio aos Doentes com Insuficiência Cardíaca (AADIC), veio alertar para o desconhecimento sobre a doença. Mais de metade dos doentes (67%) admitiram que não sabiam nada sobre IC no momento do diagnóstico.
Em entrevista ao Lifestyle ao Minuto, Maria José Rebocho, médica cardiologista e membro do Conselho Técnico-Científico da AADIC, considerou urgente aumentar a literacia nesta área para prevenir episódios de descompensação e evitar os internamentos hospitalares, que são frequentes, quando a doença não está devidamente tratada. Dados do mesmo inquérito mostram que cerca de 70% dos doentes tiveram, pelo menos, um episódio de descompensação nos últimos dois anos. Desses, 21% foram internados, em média, duas vezes.
A médica deixou ainda vários recados. "A medicação para a insuficiência cardíaca deve ser comparticipada pelo Serviço Nacional de Saúde a 90%, tal como para outras doenças crónicas, o que não acontece atualmente", diz. Além disso, "deve ser implementada a criação de mais clínicas de insuficiência cardíaca multidisciplinares nos hospitais". "O número existente em Portugal é atualmente insuficiente", alerta Maria José Rebocho.
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O que é exatamente a insuficiência cardíaca?
De acordo com a definição da própria Direção-Geral da Saúde, a insuficiência cardíaca é uma doença grave e crónica, que ocorre quando o coração é incapaz de bombear o sangue para o corpo na quantidade necessária ou relaxar e receber novamente o sangue de forma normal. Estas alterações fazem com que o coração não consiga fornecer ao organismo a quantidade de sangue necessária - oxigénio e nutrientes - para um normal funcionamento.
Além de ser uma doença grave, também não tem cura.
A insuficiência cardíaca não tem cura, mas com uma medicação adequada, com controlo médico e, principalmente, com uma completa adesão do doente ao tratamento, haverá uma melhoria dos sintomas com melhor qualidade de vida, uma diminuição das hospitalizações e uma melhoria na sobreviva.
Existe uma percentagem elevada de doentes cujo primeiro diagnóstico de insuficiência cardíaca é feito no serviço de urgência, por vezes, com necessidade de internamento hospitalar
Afeta quantas pessoas em Portugal? E o que se prevê no futuro?
A prevalência da insuficiência cardíaca na Europa é, em média, de cerca de 2%. Em Portugal, estima-se uma prevalência de aproximadamente 4%, o que equivale a cerca de 400 mil doentes. Este valor baseia-se num estudo (EPICA) feito há mais de 20 anos, estando atualmente a decorrer um novo estudo epidemiológico (PORTHOS) em Portugal Continental, que irá incluir 5616 utentes. Aguardemos os números deste estudo. Para além de abranger um grande número de participantes de todo o continente, estará atualizado de acordo com o envelhecimento da população portuguesa.
Quem está em risco?
As duas causas mais frequentes que levam ao aparecimento de insuficiência cardíaca são o enfarte de miocárdio e a hipertensão arterial de longa duração não controlada. A prevenção dos fatores de risco associados a estas duas patologias é de primordial importância para diminuir o desenvolvimento da insuficiência cardíaca.
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E a que sintomas devemos estar atentos?
Os sintomas iniciais mais frequentes são a fadiga, cansaço excessivo para esforços, inchaço (edema) nos tornozelos e no abdómen. Mas também podem existir outros como a falta de ar, a necessidade de elevar a cabeceira, sensação de batimentos cardíacos rápidos e irregulares (arritmias e palpitações), tonturas e desmaios.
São facilmente confundidos ou desvalorizados?
Os sintomas descritos podem ser comuns a outras doenças e, por vezes, de aparecimento lento, o que leva o doente a não valorizá-los.
Um inquérito realizado recentemente pela Spirituc, em parceria com a Associação de Apoio aos Doentes com Insuficiência Cardíaca, indica que mais de metade dos doentes (67%) revelaram que não sabiam nada sobre a insuficiência cardíaca no momento do diagnóstico. Considera que esta é uma doença mal compreendida em Portugal.
Sim. Esta é, de facto, uma doença desconhecida no país. Ainda assim, este ano, a Associação de Apoio Doentes com Insuficiência Cardíaca, com a colaboração de Salvador Sobral, lançou uma campanha de sensibilização e divulgação da insuficiência cardíaca, com o tema 'Olhe pelo Coração, o seu e o dos que o rodeiam. Vigie os sinais de Insuficiência Cardíaca'. Temos desenvolvido ações de sensibilização e divulgação da insuficiência cardíaca junto da comunidade, em universidades seniores e em escolas com alunos do 9.° e 11.° anos.
Quais os riscos deste desconhecimento da doença por parte da população? E como podemos combatê-lo?
Se a população não reconhece os sintomas, não procura o seu médico e o diagnóstico não será feito em tempo útil, antes do agravamento desta condição. Existe uma percentagem elevada de doentes cujo primeiro diagnóstico de insuficiência cardíaca é feito no serviço de urgência, por vezes, com necessidade de internamento hospitalar. Consequentemente, existe um atraso no início de terapêutica adequada, com reflexo na qualidade de vida e na sobrevivência. Entendo, por isso, que são necessárias mais campanhas de sensibilização e divulgação da insuficiência cardíaca junto da população, com especial incidência nos seniores. A realização destas campanhas apenas uma vez por ano, em maio, no mês do coração, é manifestamente insuficiente.
Como é feito o diagnóstico da insuficiência cardíaca?
Quando o doente refere sintomas sugestivos de insuficiência cardíaca é feita a história clínica, o exame objetivo, um eletrocardiograma, uma radiografia ao tórax e análises de rotina. Ao confirmar-se a suspeita de um diagnóstico de insuficiência cardíaca, de acordo com as recomendações da Sociedade Europeia de Cardiologia, deve ser feita a análise NT-proBNP, se disponível - ainda não está disponível nos cuidados primários em Portugal. Esta análise tem um valor preditivo negativo. Se o valor for inferior ao valor de referência, a possibilidade do diagnóstico de insuficiência cardíaca é muito improvável e deverá ser pesquisada outra causa para os sintomas. Se o valor do NT-proBNP estiver elevado, ou se esta análise não estiver disponível, o passo a seguir é a realização de um ecocardiograma transtorácico com doppler para confirmar o diagnóstico de insuficiência cardíaca e classificar o tipo de insuficiência cardíaca, para que seja iniciada uma terapêutica médica adequada. Poderá ser necessário fazer mais alguns exames para melhor esclarecimento da causa da insuficiência cardíaca.
O mesmo estudo feito pela Spirituc revela que 20% dos doentes receberam o diagnóstico durante um episódio de urgência ou hospitalização. Isto continua a acontecer porquê?
Deve-se a várias situações. Ou porque o doente não valorizou os sintomas e não procurou o seu médico, ou pela dificuldade de acesso a uma consulta nos cuidados primários. Isto está também relacionado com os atrasos ou o não acesso aos exames complementares para confirmação do diagnóstico.
A medicação para a insuficiência cardíaca deve ser comparticipada pelo Serviço Nacional de Saúde a 90%, tal como para outras doenças crónicas, o que não acontece atualmente
O que se pode fazer para obter um diagnóstico precoce?
A possibilidade de efetuar, em tempo útil, o doseamento do NT-proBNP e de um ecocardiograma completo irá diminuir o tempo até à confirmação do diagnóstico e ao início da terapêutica adequada para uma melhoria clínica, reduzir os internamentos e conseguir uma maior sobrevivência do doente.
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Quais os tratamentos disponíveis para insuficiência cardíaca? Há riscos?
O tratamento deve ser individualizado e depende do tipo de insuficiência cardíaca. Atualmente, existem fármacos que, além de melhorarem os sintomas, são modificadores da doença, diminuindo os episódios de descompensação e, consequentemente, os internamentos hospitalares, aumentando assim a sobrevivência. O tratamento atual da insuficiência cardíaca vai para além de uma medicação otimizada. Alguns doentes têm indicação para a terapêutica de ressincronização cardíaca, complemento da terapêutica médica. Devido a alterações importantes do ritmo cardíaco ou diminuição grave da força de contração do ventrículo esquerdo, alguns doentes tem indicação para implantação de um dispositivo (desfibrilhador interno conhecido por CDI), que pode efetuar uma descarga elétrica quando detetar uma arritmia grave que poderá levar à perda de conhecimento ou mesmo morte.
Que medidas de prevenção devem ser adotadas?
São as recomendações preconizadas para o controlo dos fatores de risco para as doenças cérebro-cardiovasculares. Como um dos fatores de risco principal é a idade, algo que não podemos modificar, o ênfase deve ser ser dado aos fatores modificáveis como a adoção de um estilo de vida saudável, que inclui uma alimentação equilibrada, o controlo do peso, o exercício físico, evitar excessos de álcool e deixar de fumar. Deve também existir um controlo do colesterol, especialmente o LDL (colesterol 'mau'), da diabetes e da hipertensão arterial.
Se a insuficiência cardíaca é uma patologia grave e crónica, porque é que os doentes não são considerados doentes crónicos?
A medicação para a insuficiência cardíaca deve ser comparticipada pelo Serviço Nacional de Saúde a 90%, tal como para outras doenças crónicas, o que não acontece atualmente. O custo mensal de uma terapêutica médica otimizada pode atingir valores dificilmente comportáveis para a maioria dos doentes, sobretudo, no grupo etário de mais de 65 anos, para o qual há maior prevalência da insuficiência cardíaca. A Associação de Apoio aos Doentes com Insuficiência Cardíaca tem vindo a alertar para este problema.
O que deve ser feito para um seguimento correto dos doentes com insuficiência cardíaca?
Deve ser implementada a criação de mais clínicas de insuficiência cardíaca multidisciplinares nos hospitais, com diferentes profissionais saúde e com apoio de hospital de dia. O número existente em Portugal é atualmente insuficiente.
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