Muito mais intensa do que uma 'simples' dor de cabeça, a enxaqueca é a doença neurológica mais comum no mundo e a segunda principal causa de anos vividos com incapacidade em todo o mundo. Em Portugal, estima-se que cerca de um milhão e meio de pessoas sofra desta patologia. Contudo, este número poderá ser superior, uma vez que, de acordo com um estudo realizado pela MiGRA - Associação Portuguesa de Doentes com Enxaquecas e Cefaleias, cerca de 40% dos doentes não tem acompanhamento médico.
"Infelizmente, ainda existe a convicção de que não há nada a fazer para esta doença e que as pessoas têm pura e simplesmente que viver com as crises", lamenta a neurologista Isabel Pavão Martins, em entrevista ao Lifestyle ao Minuto, a propósito do Dia Europeu de Ação na Enxaqueca, que se assinala esta terça-feira, 12 de setembro. Porém, "isso não é verdade". "Atualmente, existem várias terapêuticas que melhoram as crises, tornam-nas mais curtas ou podem mesmo evitá-las", afirma a também professora da Faculdade de Medicina de Lisboa, coordenadora da consulta de dores de cabeça do Hospital de Santa Maria, em Lisboa, e membro do núcleo de Cefaleias do Hospital Cuf Tejo.
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A especialista sublinha ainda que "têm sido dados passos" em direção à cura e admite que "é possível que, um dia, tenhamos fármacos ainda mais eficazes" contra as enxaquecas.
O que é exatamente uma enxaqueca?
É uma doença do cérebro e a mais frequente do sistema nervoso. Caracteriza-se por uma predisposição para sofrer episódios de dor de cabeça muito intensos e incapacitantes.
As pessoas que têm crise quase diárias de enxaqueca, situação a que se chama enxaqueca crónica, podem ter algumas alterações cerebrais
O que é que a acontece no cérebro durante uma crise de enxaqueca?
Dão-se várias alterações no cérebro. Existe uma ativação das áreas cerebrais responsáveis pela dor (ativação do núcleo do nervo trigémeo do lado da dor) e pelo processamento sensorial (áreas que processam a luz e os ruídos) e também das áreas associadas às náuseas e vómitos. Existe também alguma dilatação dos vasos cranianos. E estas alterações não acontecem só durante a crise. Na realidade, começam um a dois dias antes da dor de cabeça se desenvolver, como que em preparação da crise.
© Isabel Pavão Martins
O que desencadeia esta crise?
Os fatores que desencadeiam as crises são vários. Variam de pessoa a pessoa. Os mais habituais são as flutuações hormonais, que ocorrem na mulher no ciclo hormonal, mas também as alterações do sono (excesso ou carência de sono), períodos de jejum prolongado, as alterações climáticas, stress ou pós stress, e, entre outras, as bebidas alcoólicas.
Uma enxaqueca pode provocar danos permanentes no cérebro?
A enxaqueca é considerada uma doença benigna. Como tal, não tende a provocar danos permanentes no cérebro. Contudo, sabe-se que as pessoas que têm crise quase diárias de enxaqueca, situação a que se chama enxaqueca crónica, podem ter algumas alterações cerebrais e uma modificação dos circuitos neuronais talvez resultantes de tantas crises.
Existem casos de enxaqueca nas crianças e em pessoas com idade mais avançada
A enxaqueca atinge quantas pessoas no mundo e em Portugal?
A enxaqueca afeta cerca de 14% dos adultos, 20% das mulheres e 9% dos homens. É a principal causa de incapacidade nas pessoas com menos de 50 anos. Tanto quanto se sabe a frequência da doença em Portugal é idêntica à de outros países industrializados.
Pode surgir em qualquer idade?
É mais frequente nas idades mais produtivas, ou seja, entre os 20 e os 40 anos e, sobretudo, nas mulheres. Mas também existem casos de enxaqueca nas crianças e em pessoas com idade mais avançada.
São conhecidas causas?
A causa mais habitual é genética. É uma doença hereditária e quase sempre existe um caso na família que também sofre de crises, sobretudo do lado materno (mãe, tias maternas, avó materna). Em alguns casos, os fatores hereditários não são tão óbvios.
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Como distinguir a enxaqueca de uma 'simples' dor de cabeça? Quais os sintomas mais comuns?
A enxaqueca distingue-se de várias formas. Em primeiro lugar, é uma dor muito mais intensa do que uma 'simples' dor de cabeça e mais incapacitante. Por outro lado, a crise tem outros sintomas além da dor. As pessoas ficam muito enjoadas, nauseadas, não conseguem comer e podem mesmo ter vómitos. Ficam com uma grande intolerância à luz e ao ruído. Durante as crises de enxaqueca, as pessoas tendem a permanecer deitadas imóveis no escuro e no silêncio. Qualquer esforço físico ou qualquer atividade agrava a dor. A dor de cabeça da enxaqueca é ainda mais latejante e sentida apenas de um dos lados da cabeça, podendo mudar de lado de crise para crise. Outro aspeto distintivo da enxaqueca é aquilo que chamamos de aura. A aura afeta 15 a 20% das pessoas com enxaqueca e consiste em sintomas visuais que antecedem ou acompanham a dor de cabeça. As pessoas vêm luzes, riscos brilhantes ou sentem-se ofuscadas, como se tivessem sido expostas a uma luz muito intensa. Além destas características, outro sintoma muito frequente é a incapacidade de pensar, de raciocinar e de se lembrar de nomes durante as crises de enxaqueca. Esta queixa parece ser relativamente específica desta doença, mais do que de outras dores de cabeça. Desaparece quando a crise acaba.
Há relação entre a alimentação e a enxaqueca?
A relação das crises com a alimentação não é muito clara. O jejum prolongado sim. Sabe-se que estar muito tempo sem comer é um fator desencadeante das crises e as bebidas alcoólicas também podem desencadear crises nas pessoas predispostas. Existem alguns doentes que associam as crises à ingestão de alimentos específicos, sumo de laranja, chocolate ou refeições mais pesadas, mas isso não é regra, nem existe uma demonstração científica para tal.
Os doentes procuram ajuda?
Nem todos os doentes são devidamente diagnosticados nem tratados. Alguns estudos têm mostrado que só metade dos doentes, ou menos de metade, é que recebe a terapêutica apropriada e nem todos procuram ajuda. Infelizmente, ainda existe a convicção de que não há nada a fazer para esta doença e que as pessoas têm pura e simplesmente que viver com as crises. Isso não é verdade. Atualmente, existem várias terapêuticas que melhoram as crises, tornam-nas mais curtas ou podem mesmo evitá-las. É fundamental que as pessoas que sofrem de enxaqueca recebam o tratamento adequado.
O impacto da enxaqueca é enorme, quer em termos da qualidade de vida, como em absentismo e perda da produtividade laboral. Tem ainda elevados custos económicos, tanto para a pessoa como para a sociedade
Basta irem ao médico de família?
As medidas mais simples podem ser iniciadas pelo médico de família. Em casos mais complexos ou mais resistentes, pode ser necessário recorrer a um especialista em dores de cabeça ou a um neurologista.
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Como é efetuado o diagnóstico?
O diagnóstico é clínico, ou seja, é feito pelo médico a partir dos sintomas que a pessoas descreve e pela observação, em regra negativa. Os exames de imagem (tomografia computadorizada e ressonância magnética) e outros só servem para excluir outra patologia, pois são normais na enxaqueca.
Qual o impacto das enxaquecas na vida dos doentes?
O impacto da enxaqueca é enorme, quer em termos da qualidade de vida, como em absentismo e perda da produtividade laboral. Tem ainda elevados custos económicos, tanto para a pessoa como para a sociedade. E os custos devem-se, sobretudo, à perda da produtividade laboral, mais do que propriamente a custos com medicamentos ou com exames complementares de diagnóstico.
Embora não tenha cura, sabe-se que a enxaqueca pode ser controlada. Nesse sentido, que medidas podem as pessoas implementar no seu dia a dia para prevenir crises? Será necessário recorrer a medicamentos de uso diário em alguns casos?
Sim, a enxaqueca pode ser controlada. Por um lado, as pessoas podem evitar os fatores desencadeantes. Levar uma vida mais regular, não saltar refeições, nem ter grandes alterações do sono. Também é importante tratar cedo a crise, quando esta se instala. Caso essas medidas não sejam suficientes, existem muitos fármacos e outras medidas preventivas que tornam as crises menos prováveis.
Têm sido dados passos em direção à cura? Alguma vez teremos uma cura?
Não só têm sido dados passos como é possível que, um dia, tenhamos fármacos ainda mais eficazes. Um dos passos mais importantes que se deu nas últimas décadas foi o reconhecimento dos mecanismos moleculares que iniciam as crises e o desenvolvimento de terapêuticas que interrompem a sequência de eventos que levam à crise. Essas terapêuticas podem ser tomadas diariamente ou podem ser administradas de forma subcutânea, uma vez por mês ou de três em três meses.
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