Os dados da Organização Mundial da Saúde são inequívocos. O cancro do pulmão continua a ser dos mais mortais no mundo e Portugal não é exceção à regra. O que faltava saber era que cerca de 13% de todos os casos são de pequenas células, um tipo de tumor agressivo e que metastiza rapidamente para outras partes do corpo
Um novo estudo português, baseado em informações do Registo Oncológico Nacional, revela que em cada 10 novos diagnósticos de cancro do pulmão de pequenas células, aproximadamente sete apresentam doença extensa. Desses, existem 17,6% para os quais o mercado não apresenta atualmente uma opção de tratamento 'válida'.
Em declarações ao Lifestyle ao Minuto, António Araújo, diretor do serviço de oncologia do Centro Hospitalar Universitário do Porto, afirma que o "rastreio de base populacional do cancro do pulmão já demonstrou que permite diagnosticar mais precocemente a doença e salvar vidas. Estima-se que permitirá salvar cerca de 20% dos doentes". Lembra que, no final de 2022, o ministro da Saúde, Manuel Pizarro, anunciou que, no ano seguinte, se avançaria com rastreios a mais três tipos de cancro: pulmão, próstata e estômago. Porém, nunca chegaram a avançar.
Quais as principais conclusões retiradas do estudo?
Em cada 10 novos diagnósticos de cancro do pulmão de pequenas células, aproximadamente sete apresentam doença extensa. Destes, existem 17,6% para os quais atualmente o mercado não oferece uma opção de tratamento 'válida'. Além disso, quatro em cada 10 doentes (40,9%) têm idade inferior a 65 anos e 95% são ou já foram fumadores.
Quantas pessoas são diagnosticadas, por ano, com cancro do pulmão em Portugal?
Em Portugal, a incidência deste tipo de cancro aumenta 0.5% ao ano, sendo que todos os anos são diagnosticados mais de cinco mil novos casos e são registados, no Registo Oncológico Nacional, cerca de 4500 mortes.
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Porque é que o cancro do pulmão continua a ser um dos que mais mata no mundo e em Portugal?
Porque é diagnosticado, na grande maioria dos casos, em estádios avançados, pois os sintomas e sinais que os doentes apresentam são muito semelhantes aos de doutras doenças benignas, como a doença pulmonar obstrutiva crónica do fumador. E porque é uma doença que tem um 'turnover' celular rápido. Ou seja, desenvolve-se com alguma rapidez, invade os tecidos adjacentes e metastiza rápida e frequentemente.
Quais os sintomas e sinais mais comuns?
Podem dividir-se em: de origem loco-regional, como o aparecimento ou agravamento de tosse persistente, tosse com sangue, dor no peito, falta de ar; sintomas constitucionais, como a fadiga, o cansaço fácil, a perda de apetite e de peso sem causa conhecida; sintomas e sinais de metastização à distância, como alteração súbita do estado de consciência, do comportamento ou de défices neurológicos (por metastização cerebral), fractura óssea por esforço ligeiro (por metastização óssea) ou o aparecimento de icterícia (por metastização hepátuca).
Há estudos publicados que demonstram que um rastreio de base populacional salvaria cerca de 20% das vidas dos doentes com cancro do pulmão
Se fosse diagnosticado mais cedo, seria menos mortal?
Este é um tipo de tumor bastante silencioso, mas de crescimento rápido e que só se deteta, habitualmente, numa fase avançada da doença. Acresce que muitos dos sintomas iniciais que o tumor provoca são, em tudo, semelhantes aos que o doente já tem pelo facto de ser um grande fumador, como a tosse, a expetoração ou a falta de ar, o que também contribui para o atraso no diagnóstico. No entanto, é certo que quanto mais cedo se diagnosticar, maior é a probabilidade de existir um tratamento de sucesso para estes doentes. Há estudos publicados que demonstram que um rastreio de base populacional salvaria cerca de 20% das vidas dos doentes com cancro do pulmão.
Existe alguma estratégia para detetar este cancro numa fase mais precoce?
A estratégia para diminuir o número de casos deste tumor e diagnosticá-lo numa fase mais precoce, envolve o aumento da literacia da população acerca dos sintomas e sinais da doença, diminuir consideravelmente o consumo de tabaco pelos cidadãos e, por fim, estabelecer um rastreio de base populacional do cancro do pulmão.
É defensor de um rastreio do cancro do pulmão em Portugal?
Sim. O rastreio de base populacional do cancro do pulmão já demonstrou que permite diagnosticar mais precocemente a doença e salvar vidas. Estima-se que permitirá salvar cerca de 20% dos doentes. Há vários projetos para a implementação de um programa-piloto de rastreio. O senhor ministro da Saúde falou nisso em finais de 2022, dizendo que até 2023 seria implementado, mas não foi. Havia uma linha de financiamento da União Europeia para esses programas-piloto, só que os serviços da tutela deixaram passar o prazo, perdeu-se essa linha de financiamento em finais de agosto de 2023 e o rastreio não avançou.
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Este cancro está mais associado ao sexo masculino. Porquê?
Cerca de 80% dos casos de cancro do pulmão estão associados ao consumo de tabaco, sendo que os homens são os principais consumidores, o que se reflete numa maior incidência no sexo masculino. No entanto, há casos que não têm uma ligação direta com o tabagismo, pelo menos de forma evidente. Estes podem estar relacionados com a exposição ao radão, um gás radioativo presente no granito, por exemplo. Também pode estar associada a profissionais que trabalham em áreas onde a cobertura é feita com fibrocimento, rico em fibras de amianto, que podem provocar inflamação crónica das vias aéreas.
Existem diversos tipos de cancro do pulmão?
O cancro do pulmão classicamente e pelas suas características fenotípicas divide-se em carcinoma de pequenas células, que corresponde a cerca de 13% do total, e carcinoma de não pequenas células, que compreende os outros 87%. Estes últimos, subdividem-se, ainda do ponto de vista microscópico, em adenocarcinomas (55%), carcinomas escamosos (45%), carcinoma de grandes células e os mistos adeno-escamosos (5%). Mas, atualmente, as características mais importantes para se definir o cancro do pulmão são as que espelham o seu genótipo. E este tem inúmeras variações, sendo as mais conhecidas e importantes as que definem os adenocarcinomas. Por tudo isto, podemos afirmar que existe um número incomensurável de cancros do pulmão.
Em alguns casos, pode não existir opção de tratamento 'válido'?
Por vezes, seja pelas comorbilidades ou pelo estado geral que o doente apresenta, a única opção é apenas serem tomadas medidas de suporte, de forma a aliviar os sintomas que vai referindo. Como consta do Juramento de Hipócrates que os médicos realizam no início da sua atividade profissional, "curar quando possível, aliviar quando necessário, consolar sempre".
Os dados recolhidos a partir dos doentes seguidos em hospitais de Norte a Sul do País confirmam aquilo que a ciência já tinha concluído: a associação entre a doença e o histórico de hábitos tabágicosCom os cancros de pequenas células, a situação é diferente?
Se os doentes forem identificados mais cedo têm maiores hipóteses de receber um tratamento mais consistente. Contudo, ainda não existem tratamentos 100% eficazes, quer em Portugal como a nível mundial. É um tumor com características especiais e não tem sido possível desenvolver terapias que sejam respostas viáveis, mas isso pode estar a mudar com o constante surgimento de novas terapêuticas.
O que são exatamente cancros de pequenas células?
As suas células são 'especiais', não expressando os biomarcadores que estamos habituados a ver nos outros tipos de tumores malignos do pulmão, pelo que não respondem aos tratamentos dirigidos que temos disponíveis. Normalmente, é um tipo de tumor muito sensível à quimioterapia clássica e à radioterapia, mas que rapidamente adquire resistência e progride, tendo sempre um prognóstico mais sombrio.
O tabagismo é um fator de risco determinante para o cancro do pulmão, mas não é o único.
Sim, de facto este é um tipo de tumor muito ligado ao consumo de tabaco e a fatores tóxicos externos, como a exposição ao rádon e a asbestos. Assim, a grande maioria destes doentes são fumadores com uma alta carga tabágica e, menos frequentemente, aqueles que estiveram expostos a altas concentrações de asbestos ou ao rádon.
Os doentes mais frequentes continuam a ser os fumadores?
Os dados recolhidos a partir dos doentes seguidos em hospitais de Norte a Sul do País confirmam aquilo que a ciência já tinha concluído: a associação entre a doença e o histórico de hábitos tabágicos. De facto, 95% dos doentes são ou já foram fumadores. Esta tendência só irá inverter-se quando o número de fumadores reduzir-se consideravelmente, diminuindo drasticamente o número destes doentes.
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Há muitos doentes que nunca fumaram?
Existe uma percentagem de doentes que nunca fumou ativamente, mas constituem apenas cerca de 20% do total de doentes com cancro do pulmão e menos de 5% dos doentes com cancro do pulmão de pequenas células.
No meio disto tudo, onde entra o tabagismo passivo?
O tabagismo passivo confere sensivelmente o mesmo risco que o tabagismo ativo, apenas por ser inalado em menor concentração, o nível desse risco é menor.
Para os doentes com tumores avançados, os novos medicamentos, particularmente a medicina personalizada e a imunoterapia, estão a tornar esta doença uma doença crónica. Pelo que há muita esperança no futuro para os doentes com cancro do pulmão
A severidade da doença é diferente entre fumadores e não fumadores?
As características genéticas do tumor de um fumador são completamente diferentes das características genéticas do tumor de um não fumador porque o tabaco condiciona alterações genéticas no epitélio brônquico. Há dois estudos publicados na revista científica Nature há cerca de 10 anos que demonstram que cada cinco cigarros fumados deixam uma alteração genética no epitélio pulmonar. E é da conjunção dessas alterações genéticas, que vão ficando no campo pulmonar, que surge depois a doença oncológica. Por outro lado, o próprio tabaco, e isso também ficou demonstrado num artigo da Nature nesta última semana, altera a resposta imunológica do fumador, fazendo com que este fique muito mais deprimido e atreito a infeções respiratórias, sendo estas mais graves do que as que se desenvolvem num não fumador. Por tudo isto, o cancro do pulmão de um fumador tem características genéticas diferentes do de um não fumador, geralmente é mais agressivo, temos menos hipóteses de personalizar o tratamento, pelo que o prognóstico para um mesmo estado de evolução da doença é pior.
Que avanços podemos esperar quer no diagnóstico como no tratamento do cancro, mais especificamente do cancro do pulmão?
Primeiro e sempre, devemos apostar no aumento da literacia em saúde da nossa população, particularmente no que se relaciona com os malefícios do consumo de tabaco. Depois, produzir informação e efetuar campanhas para não se iniciar o consumo de tabaco e incentivar os fumadores a deixarem de fumar. Simultaneamente, estimular as consultas de cessação tabágica, particularmente fora das horas de trabalho. Evidentemente, é fundamental implementar um rastreio de base populacional, que permita aumentar o diagnóstico precoce desta doença.
Por fim, a introdução de outros fármacos no armamentário terapêutico para esta doença pode permitir aumentar progressivamente a esperança de vida destes doentes e melhorar a sua qualidade de vida. Além de estarmos a tentar otimizar e personalizar a utilização da imunoterapia, têm surgido novos fármacos, como os conjugados de fármacos com anticorpos, que trazem nova esperança a estes doentes.
Ainda há um estigma sobre cancro, como se fosse uma sentença de morte, ou isso já mudou?
Está a mudar lentamente, porque tentamos cada vez mais fazer o diagnóstico precoce e atempado. Para os doentes com tumores avançados, os novos medicamentos, particularmente a medicina personalizada e a imunoterapia, estão a tornar esta doença uma doença crónica. Pelo que há muita esperança no futuro para os doentes com cancro do pulmão.
Como é que se anuncia a má notícia a um doente?
Não existe uma forma fácil de dar más notícias a alguém, sejam elas de que natureza forem. Temos de ser honestos, verdadeiros, capazes de explicar o que se passa e quais são as alternativas de tratamento, de uma forma clara e adequado ao grau de literacia do doente. Temos que ter tempo e paciência para responder a todas as suas questões e dar-lhe tempo para assimilar a informação e compreendê-la. Tempo para envolver os familiares próximos ou os cuidadores neste processo. Tempo para criar uma relação de empatia e de humanismo. Tempo para, dando a informação correta e claramente, deixar sempre uma luz de esperança e de que estaremos sempre a seu lado nesta fase das suas vidas.
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