Considerado o maior museu de História Natural da América Latina, com um espólio comparado, em termos de importância, ao Louvre, em Paris, o Museu Nacional do Rio de Janeiro tinha cerca de 20 milhões de peças de valor incalculável e uma biblioteca com mais de 530 mil títulos. Foi consumido pelas chamas no passado domingo, perante o desinvestimento dos sucessivos governos brasileiros na sua preservação.
A antropóloga Susana de Matos Viegas, investigadora do Instituto de Ciências Sociais (ICS) da Universidade de Lisboa, contactou de perto com o Museu Nacional do Rio de Janeiro, local que visitou várias vezes. Considera que a interlocução com os antropólogos de Pós-Graduação em Antropologia do Museu Nacional mudou a sua vida, que, no campo da investigação, tem sido dedicada, sobretudo, ao estudo dos povos indígenas.
Numa entrevista por e-mail ao Notícias ao Minuto, a autora do livro 'Terra Calada - Os Tupinambá na Mata Atlântica do Sul da Bahia' fala não só sobre a importância do Museu Nacional e da perda que a sua destruição representa, mas também dos desafios que se colocam no futuro.
"Devastada e em choque", Susana de Matos Viegas retrata o Museu como um "ícone que sobrepõe a história de uma nação à sua posição no mundo" e fala nesta tragédia como uma "segunda extinção da história ameríndia".
A investigadora do ICS lamenta os "ataques explícitos do atual governo brasileiro à antropologia" e considera que Portugal tem muito a aprender com o incêndio que destruiu 200 anos de História. "Portugal deve tirar como lição desta tragédia a necessidade de fazer a segunda Revolução dos Cravos", refere a antropóloga.
Sinto que essa entrada naquele edifício [Museu Nacional do Rio de Janeiro] mudou a minha vidaContactou várias vezes com o Museu Nacional do Rio de Janeiro. Com que frequência utilizou o arquivo ou outros serviços do Museu e que importância é que este assumiu no seu trabalho de investigação?
Sou antropóloga e uma das minhas áreas de especialização é o estudo dos povos indígenas que habitam nas Terras Baixas da América do Sul. Iniciei a minha pesquisa de campo em 1996, no Brasil, entre índios da grande família Tupi que habitam numa região de mata atlântica no sul da Bahia. Foi nessa altura que entrei pela primeira vez no edifício que agora ardeu. Sinto que essa entrada naquele edifício que me levou a uma interlocução continuada com os antropólogos do programa de Pós-Graduação em Antropologia do Museu Nacional, mudou a minha vida. Li o trabalho de todos os antropólogos que trabalham nesta área, fui muito inspirada pelo trabalho de alguns, e, durante estes últimos 22 anos, colaborei de múltiplas formas com antropólogos do Museu Nacional cujo trabalho admiro muito.
Terminei o doutoramento em 2003 e até 2008 fui anualmente ao Brasil, liderando um processo de demarcação de terra indígena. No Museu encontrei e fotografei uma peça de cerâmica dos Tupi com desenho identificável com o que em campo, em 2004, havia encontrado num abrigo debaixo de uma gameleira entretanto rodeada de uma plantação de cacau. Este tipo de cruzamentos que fazem a pesquisa ser a descoberta por vezes inesperada mas certeira de redes, evidencia bem o quanto significa a perda do espólio. A minha última estadia na Museu Nacional foi como investigadora visitante, em 2010, num período de dois meses.
O meu primeiro pensamento foi que era um ataque, que a guerra que existe no Brasil hoje ganhava agora a forma de uma luta armadaO que sentiu quando tomou conhecimento do incêndio que destruiu o Museu?
Recebi a notícia por mensagens de Whatsapp, quase em tempo real, de um grupo de colegas que estão numa luta contra ataques explícitos do atual governo à antropologia. Então, o meu primeiro pensamento foi que era um ataque, que a guerra que existe no Brasil hoje ganhava agora a forma de uma luta armada. Depois pensei: é 'só' um incêndio. Devastada e em choque, mesmo estando há três dias conectada com amigos e colegas, diariamente acordo a pensar que talvez tenha sido um pesadelo.
Chamas consumiram o Museu Nacional do Rio, que tinha mais de 20 milhões de peças© Reuters
Qual a importância do Museu Nacional do Rio, não só no Brasil, mas em todo o mundo, particularmente em Portugal?
Já foi escrito e publicado muito sobre a importância do espólio do Museu Nacional e a sua justa comparação ao Louvre. Ela é teoricamente justa, porque em ambos os casos se trata de um ícone que sobrepõe a história de uma nação à sua posição no mundo. Quanto à sua importância específica para Portugal, no que toca à história da elite, também já foi tornada publica por colegas meus historiadores. Não julgo que se deva descurar, mas não consigo sentir-me mobilizada por ela.
Em relação ao espólio arqueológico, botânico, zoológico e no que diz respeito ao período colonial, a pergunta é: o que fizemos nós? Se no ano 2000 houve um programa de resgate de toda a documentação colonial em papel devidamente partilhada entre Portugal e Brasil, porque se deixaram de fora os objetos que falariam de um mundo emergente e coevo às falas coloniais? A importância do Museu Nacional para Portugal é a da história que também é nossa, que negligenciámos e negligenciamos.
Esta foi uma segunda extinção da história ameríndia. E uma extinção num tempo promissor, particularmente promissor A perda do acervo do Museu tem sido descrita como “irreparável”. É possível contabilizar o prejuízo, não só a nível económico mas sobretudo a nível da memória e da investigação?
Muitos artigos já publicados têm descrito o valor intrínseco da coleção do Museu Nacional. Acrescento a esse aspeto dois outros, menos identificados, mas de importância fulcral.
Primeiro, que as coleções existentes no museu e particularmente as coleções ameríndias estavam apenas em parte estudadas. Além daquelas que foram recolhidas de forma pouco científica, a partir do início do século XX muitas das coleções são recolhas do Curt de Nimuendaju e outros etnógrafos que trouxeram peças, gravações linguísticas, música, entre outras, cuja integração num conhecimento mais substantivo do seu significado sociocultural é fiável. A extinção deste material é efetiva. Não havia cópias, porque mesmo nos casos em que elas seriam tecnicamente possíveis, são enormes as verbas para o garantir.
Houve destruição e extinção, e elas não devem ser vistas como uma excreção menor, nem precisam de ser vistas como uma punição maiorEm segundo lugar, essas coleções eram, em alguns casos, um espólio material de populações indígenas que nunca tiveram oportunidade de as salvaguardar. Como afirmaram índios Guarani que foram olhar o incêndio devastador, esta foi uma segunda extinção da história ameríndia. E uma extinção num tempo promissor, particularmente promissor. A abertura a quotas de índios e negros nas universidades brasileiras tem viabilizado a realização de investigação de coleções etnográficas, não apenas por antropólogos, mas também por antropólogos em colaboração com índios e de índios antropólogos ou historiadores ou botânicos ou arqueólogos.
Muitas têm sido as críticas à falta de apoio dos sucessivos governos brasileiros para a manutenção do Museu. O que revela o desinvestimento das autoridades brasileiras no Museu Nacional do Rio? E que lições é que Portugal deve retirar desta tragédia?
Prefiro não me alongar com as críticas aos governos brasileiros. Seria demasiado longa a conversa e o que de mais imediato havia a dizer tem sido gritado por vozes bem mais capacitadas. Sendo portuguesa e cientista (como classifico a antropologia), ocorre-me como 'lição' para Portugal aquela de sermos capazes de fazer a revolução que só tem ocorrido nas margens dos meios científicos e intelectuais e não num programa de governo corajoso. O espólio arqueológico, botânico, zoológico do Museu Nacional afinal poderia ter feito parte do programa de resgate de toda a documentação colonial em papel devidamente partilhada entre Portugal e Brasil na altura das comemorações do ano 2000. Se não foi e se todos sentimos a perda neste trágico incêndio do museu, significa que a nossa atitude pode e tem que mudar.
Portugal deve tirar como lição desta tragédia a necessidade de fazer a segunda Revolução dos Cravos, aquela que não se fez em 1974O Brasil integra a nossa história e se há uma dimensão que a integra de forma mais contundente é na relação com os índios e os afrobrasileiros, os pobres e excluídos que foram inegáveis interlocutores dos portugueses que lá chegaram e permaneceram. Houve destruição e extinção, e elas não devem ser vistas como uma excreção menor, nem precisam de ser vistas como uma punição maior. Precisam ser e tão simplesmente vistas. Se é genuína a vontade que o Governo português tem manifesto publicamente em apoiar qualquer ação que vá ao encontro da destruição causada por este incêndio, enfrentemos a perda como nossa também, porque a pluralidade da história que o espólio encerrava permitia que nos situássemos no mundo de forma muito mais humana.
Portugal deve tirar como lição desta tragédia a necessidade de fazer a segunda Revolução dos Cravos, aquela que não se fez em 1974 e que talvez as gerações que têm tido múltiplas vozes despidas de preconceitos e olham com igual energia a viagem das caravelas e a extinção e subjugação de povos indígenas e africanos sejam capazes, agora, de fazer. Esse reconhecimento, hoje, em Portugal, é o que equivale ao dos brasileiros verem a sua história naquele edifício que os poderes públicos deveriam ter salvaguardado. E como esse reconhecimento da história em Portugal está anexado a este outro dos brasileiros, diria que essa é não só a lição como a ação que dignamente poderia ser tomada.