Na altura do massacre, Rui Marques acompanhava o nascimento da revista Fórum Estudante e foi surpreendido por aquelas imagens, não por ignorar o que se passava naquele país ocupado pela Indonésia, mas pelo facto de terem sido filmadas e divulgadas para o mundo.
O massacre aconteceu em 12 de novembro de 1991, quando as forças indonésias atiraram contra centenas de jovens que protestavam contra a ocupação, durante as cerimónias fúnebres no cemitério de Santa Cruz, em Díli, de um ativista que tinha sido morto por militares indonésios.
No cemitério, os militares indonésios abriram fogo sobre a multidão e provocaram a morte de 74 pessoas no local. Nos dias seguintes, mais de 120 jovens morreram no hospital ou em resultado da perseguição das forças ocupantes.
O jornalista britânico Max Stahl, falecido no final de outubro, que tinha entrado no país como operador turístico, ao abrigo de uma suposta abertura da Indonésia, filmou o massacre e conseguiu trazer a gravação para fora do país, divulgando as imagens, que correram mundo.
"Enquanto movimento de estudantes decidimos que era fundamental fazer qualquer coisa e nasce, a partir das imagens de Santa Cruz, a missão Paz em Timor e, mais tarde, o Lusitânia Expresso", o navio com jovens de várias nacionalidades e uma forte cobertura mediática que tinha como objetivo chegar a Timor-Leste e depositar uma coroa de flores no cemitério de Santa Cruz.
O objetivo não foi alcançado porque a Indonésia ameaçou afundar o navio, caso este prosseguisse nas águas indonésias e a embarcação regressou, não sem antes se realizar uma cerimónia simbólica de lançamento da coroa de flores ao mar.
Rui Marques não tem dúvidas: "As imagens foram absolutamente vitais na história de Timor, porque, pela primeira vez, se tornou evidente para a opinião publica mundial as provas de um genocídio em curso".
As imagens, prosseguiu, conseguiram "furar o bloqueio de silêncio que existia". "Sabia-se que existia um massacre em curso em Timor, mas não havia provas, não havia imagens. E as imagens têm um poder fortíssimo na cultura mediática, provam essa dimensão da tragédia e foram muito importantes".
"A partir daí, nunca mais nada foi o mesmo na história de Timor, porque seguiu-se um conjunto de eventos, entre os quais também está a Missão Paz em Timor e que vai até ao referendo, entre 91 e 99 [1991 e 1999 do século XX], que mudou a história recente de Timor, mérito seguramente de todos os timorenses, da luta e resistência contra a invasão indonésia e pela sua autodeterminação, mas figuras como Max Stahl foram completamente fundamentais neste processo", adiantou.
Opinião semelhante tem Ana Gomes, que já antes do massacre de Santa Cruz estava envolvida na denúncia do que se passava em Timor-Leste.
A diplomata considerou que as imagens do massacre tiveram "uma importância fundamental. Infelizmente, existiram muitos outros massacres em Timor, mas aquele foi o primeiro que foi filmado e o filme trazido para o exterior e mostrado ao mundo inteiro. Foi um murro no estômago de todas as pessoas que o viram", disse à agência Lusa.
Em Portugal, as imagens do massacre "acordaram o povo português para o problema de Timor".
"Até aí, a opinião pública portuguesa, compreensivelmente, estava muito letárgica e desconhecedora da realidade de Timor e do problema de Timor, em resultado da ocupação da indonésia, mas também o mundo inteiro", afirmou.
Para Ana Gomes, que na altura do massacre estava a chegar a Londres, para mais uma missão diplomática, as imagens deste massacre "tiveram uma contribuição decisiva para acordar a opinião pública mundial para a situação do Timor-Leste ocupado pelas forças indonésias".
"Sem dúvida que as filmagens mudaram completamente a opinião pública. A partir daí não havia gato nem cão responsável político que não quisesse ser visto como mais papista que o papa na questão de Timor", referiu.
A diplomata considerou que os tempos seguintes revelaram até um efeito extremo: "Parecia que todos os indonésios eram culpados pelo caso de Timor, quando nós, que acompanhámos a questão de Timor, sabíamos que havia muitos indonésios corajosos e amigos de Timor, solidários, e que era graças a eles que íamos tendo muita informação".
Ana Gomes contou que, quando chegou à Indonésia, em 1999, como chefe de missão e embaixadora de Portugal em Jacarta, "existia muita gente que achava que tudo na Indonésia era feio, porco e mau, quando não era".
"Havia imensos indonésios que, por um lado, eram oprimidos pelo mesmo regime que oprimia Timor, que era o regime de Suharto, a ditadura de Suharto. Havia indonésios extraordinários, que se batiam pela democracia e eram solidários com a causa de Timor e que foram os grandes amigos e apoiantes, mas na Indonésia".
Ana Gomes foi chefe de missão e embaixadora em Jacarta entre 1999 e 2003, tendo acompanhado o processo de independência de Timor-Leste e de restabelecimento das relações diplomáticas entre Portugal e a Indonésia.
Leia Também: Massacre de Santa Cruz mobilizou resposta da diplomacia portuguesa