Ucrânia. Da "descomunização" à "desrrussificação"
Desde a independência em 1991 que a Ucrânia tenta apagar os vestígios do seu passado soviético no espaço público e hoje é a história imperial russa que é visada em período de acentuada radicalização, apesar das resistências que persistem.
© Reuters
Mundo Conflito
Avenida Kreschatky, centro de Kiev, início da tarde de terça-feira. Sob um tímido sol de inverno e uma temperatura a rondar dos dez graus negativos, milhares de pessoas manifestam-se contra o Governo do Presidente Volodymyr Zelenski.
Muitos erguem as bandeiras do Plataforma de Oposição -- Pela Vida (OPZZh), liderado por Viktor Medvedchuk, definido como um partido "pró-russo e eurocético" e que, segundo alguns estudos, foi considerado em 2020 o partido mais popular do país.
Os manifestantes insurgem-se em nome de um partido que contesta a atual escalada de tensão com a vizinha Rússia e exigem medidas de contenção ao Governo de Kiev, que tem recebido nas últimas semanas importantes quantidades de armamento, provenientes dos Estados Unidos, Reino Unido, dos países do Báltico, ou promessas de empréstimos e ajudas económicas da União Europeia.
Na Ucrânia, o conflito de 2014 alterou os dados em jogo na sequência da anexação da Crimeia pela Rússia, e sobretudo após o início da guerra entre o exército ucraniano e os separatistas pró-russos da região do Donbass (leste), que declararam "duas repúblicas populares" em Donetsk e Lugansk, ainda não reconhecidas por Moscovo.
O OPZZh é o maior partido pró-russo presente na Verkhovna Rada, o parlamento unicameral ucraniano, num hemiciclo dominado pelo Servo do Povo (SN), proveniente da "vaga de fundo" em torno do atual Presidente e que lhe garantiu uma clara vitória nas eleições de 2019 contra o ex-chefe de Estado Petro Poroshenko.
Este é alvo de um processo judicial por "alta traição" por alegado envolvimento na compra de carvão nas decadentes regiões industriais sob controlo separatista.
A Ucrânia sobrevive a estas contradições, enquanto prossegue o braço de ferro com a Rússia, com crescente concentração de soldados ucranianos na "linha da frente" do Donbass e de forças militares da NATO em países do Leste que foram aderindo à Aliança desde 1991, após a Rússia ser acusada de pretender invadir a Ucrânia com uma poderosa força militar posicionada junto às fronteiras. O que o Kremlin continua a desmentir.
"Queremos sanções dolorosas aplicadas à Rússia", indica Volodymir Ariev perante um grupo de jornalistas estrangeiros convidados a visitar o país, na sede da União Nacional de Jornalistas da Ucrânia, situada na Avenida Avenida Kreschatky, atravessada pouco antes pela manifestação "pró-russa".
Dirigente do partido Solidariedade Europeia, de Petro Poroshenko, e chefe da delegação ucraniana na Assembleia Parlamentar do Conselho da Europa, Ariev reproduz um discurso onde as referências nacionalistas e as medidas para conter a "agressão de Putin" se confundem.
Mas a grande Kiev, uma cidade com mais de quatro milhões de habitantes, vive em calma aparente. O tráfego é intenso e permanente, edifícios em estilo neoclássico, outros da época soviética, rivalizam com modernos edifícios onde as lojas oferecem os melhores produtos ocidentais. Anúncios recordam os 30 anos de independência, com as cores amarela e azul da bandeira nacional e a frase "juntos e unidos".
O fantasma da guerra, da invasão, parece distante num país que transporta o pesado peso da História do século XX, a efémera independência da década de 1920, a invasão alemã em 1941 com nova declaração de "independência", os tempos soviéticos que se querem conspurcados e a afirmação face ao vizinho e gigante russo.
"A atual situação está a ser exagerada, é como confundir um inseto com um elefante", diz Alex, um jovem funcionário público natural da capital.
Mas a atual liderança ucraniana, os principais partidos nacionalistas e "pró-europeus" radicalizaram o discurso por considerarem que o atual contexto pode colocar o país no caminho da ambicionada esfera euro-atlântica.
As reivindicações dos separatistas pró-russos, que passa por um amplo estatuto de autonomia, são liminarmente rejeitadas, por serem considerados uma "guarda avançada" de Moscovo nos territórios do Leste, mas o país conta com uma importante população russófona e o russo permanece uma língua corrente, apesar dos persistentes esforços para um definitivo predomínio da língua nacional.
"A Rússia pretende controlar o conflito para bloquear todo o processo", assinala Serhiy Garmash, membro da delegação ucraniana no Grupo Trilateral de Contacto sobre o Donbass, um dos fóruns provenientes dos acordos de Minsk, que tentaram solucionar um conflito que, ao fim de quase nove anos, mais de 13.000 mortos e mais de um milhão de deslocados, permanece "congelado", com frequentes incidentes na linha de separação.
A tentativa de "desrrussificação" assumiu uma nova dimensão depois da "revolução do Maidan", que destituiu o Presidente "pró-russo" Viktor Ianukovich, após a sua recusa em promover um acordo de associação comercial com a União Europeia.
O ano de 2014 suscitou uma forte tomada de consciência nacional. O passado soviético foi assimilado a um passado russo com o qual era necessário romper e o derrube da estátua de Lenine em Kharkov, em setembro daquele ano, foi disso testemunho.
Kiev é talvez o exemplo mais significativo dessa nova abordagem. Em maio de 2015, o parlamento ucraniano votou quatro leis de "descomunização" sob a influência do Instituto da memória nacional, sobre a proibição da simbologia dos regimes comunista e nazi no espaço público, a alteração do nome das ruas e o desmantelamento de estátuas, a abertura total dos arquivos soviéticos e medidas em favor dos combatentes pela independência da Ucrânia.
Em consequência, 965 estátuas de Lenine foram removidas entre 2013 e 2016 e as autoridades anunciavam a "queda de Lenine". Por todo o país foram rebatizadas 52.000 ruas, 986 localidades e 32 cidades mudaram de nome, como sucedeu a Dnipropetrovsk que se tornou Dnipro, abandonando o nome de Grigori Petrovski, dirigente bolchevique originário da cidade.
A ingerência russa na Crimeia e no Donbass acrescentou uma nova dimensão a estas mudanças, a partir de então com o objetivo de apagar qualquer referência à Rússia, apesar dos prolongados laços históricos.
Na capital, a ponte de Moscovo, que atravessa o Dniepr, foi pintada de azul e amarelo, as cores da bandeira ucraniana, antes de ser rebatizada em 2018 ponte "do Norte". A praça e a avenida de Moscovo também mudaram de nome, em conformidade com um discurso cada vez mais presente no país e que tende a apresentar o passado como um período de colonização russa.
A formação do primeiro principado o Rus de Kiev, a partir do século VIII, "quando a Rússia nem sequer existia" é argumento recorrente e Ivan Mazepa, o chefe dos cossacos que no início do século XVIII se aliou a Carlos XII da Suécia contra o czar russo Pedro o Grande, foi elevado ao estatuto de herói nacional e figura numa nota da moeda nacional (Grívnia).
Também o poeta do século XIX Taras Chevtchenko, adulado pelos nacionalistas, permanece a personalidade mais elogiada do país, e Stepan Bandera, apesar da sua colaboração com os nazis e a sua participação em numerosos crimes de guerra, é ainda considerado um herói nacional por ter proclamado a independência da Ucrânia em 1941, após a invasão da União Soviética pela Alemanha de Hitler.
Pulsões nacionais, algumas recordadas por Volodymir Ariev, que no final da sua exposição também reivindicou o legado de Pyotr Tchaikovsky. "A mãe era de origem francesa e o pai ucraniano. Tchaikovsky era ucraniano!".
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